A linha surgiu no horizonte como um fio cinzento sobre uma colcha verde-pálida, mas, à medida que o avião se aproximava, transformou-se numa coluna composta por algumas centenas de animais, serpenteando pela planície. “Gnus”, gritou Charlie, elevando a voz acima do rugido do motor. “É um grupo pequeno.” Estávamos a norte da cratera do Ngorongoro, na Tanzânia, e, como era Março, sabíamos que os gnus iriam, em breve, deslocar-se para noroeste, entrando no Quénia.

Ali estavam eles, numa caravana perfeitamente ordenada, seguindo a direito. Eu conseguia distinguir os seus chifres curvos e cabeças compridas, subindo e descendo enquanto caminhavam penosamente sob o sol da manhã. Várias crias avançavam encostadas aos flancos das progenitoras.

Há milhares de anos que as manadas de gnus atravessam o grande ecossistema do Serengeti num circuito em sentido horário. Cada animal percorre cerca de 2.800 quilómetros, a distância aproximada entre Lisboa e Berlim. Seguem as chuvas e comem a vegetação, adubando o solo e tornando-se alimento para os predadores. E aqui, marchando ao longo do trilho intemporal dos seus antepassados, esta manada dirigia-se para noroeste.

Atenção! Desta vez, não se encaminhavam para noroeste.

“Por que estão a avançar para sul?”, perguntei a Charlie em voz alta.

“Não sei”, respondeu. “Andam à procura de erva. Não há muito para comer aqui.”

Viajei até à Tanzânia para assistir à grande migração de gnus, reunindo-me a Charlie Hamilton James, que documenta as suas viagens há dois anos. Partimos de Arusha, com o monte Kilimanjaro a pairar no horizonte. A terra desdobrara-se como um mar de tons luxuriantes de verde, uma manta de retalhos de explorações de café e manchas de floresta densa, mas, depois de sobrevoarmos a cratera, o terreno deu lugar a planícies amplas, formadas por fluxos de lava antigos cobertos por camadas férteis de cinzas depositadas pelos vulcões vizinhos.

GNUS

Apenas um mês antes, a área que se estendia lá em baixo era um tapete de erva altamente nutritivo, mas as chuvas tinham acabado e agora, praticamente em todas as direcções, o solo parecia ressequido, com escassos tufos de erva. A coluna de gnus parecia uma tribo perdida à deriva, apanhada em campo aberto, alvo fácil para qualquer grupo de leões ou família de hienas.

Foi então que reparei num gnu tresmalhado. O animal olhara em redor e começara a andar na direcção oposta, como se tivesse concluído que o grupo estava a ir para o sítio errado e tivesse decidido aventurar-se sozinho. Parecia morte certa para uma criatura solitária. A manada ignorara o rebelde e seguira o seu caminho. Aquele gnu está condenado, pensei.

Tendo em conta a pista de obstáculos que havia adiante, é normal concluirmos que muitas manadas de gnus estão condenadas. Vão ficar à mercê dos padrões inconstantes do clima, corrigindo frequentemente o seu rumo e percorrendo longas distâncias para encontrar pasto fresco. Vão ser incessantemente atacadas por predadores. Nos últimos anos, também tiveram de se debater com obstáculos humanos e a concorrência de crescentes rebanhos de ovelhas e cabras.

No entanto, o teste mais intimidante poderá ser outro: o rio Mara, que os animais são obrigados a transpor para chegarem às melhores terras de pasto na Reserva Nacional de Masai Mara, no Quénia, e, mais tarde, para regressarem à Tanzânia. Charlie, que filma e fotografa o Serengeti há mais de duas décadas, já assistiu a dezenas de travessias e viu milhares de gnus seguirem-se despreocupadamente uns aos outros até à morte. “Estive cá no ano passado e havia centenas de carcaças empilhadas nas margens e a flutuar no rio”, disse-me. “É um pesadelo.”

Muitos dos mais jovens e fracos são pisados quando as manadas descem as margens escarpadas cobertas de lama e mergulham no rio. Centenas afogam-se ou são arrastados sob as águas pelos crocodilos que abundam no rio. Quanto aos gnus que conseguem chegar à outra margem, muitos são imediatamente perseguidos pelos leões ou hienas que os aguardam.

Charlie contou-me que, certa vez, avistou um sobrevivente de uma difícil travessia mudar inexplicavelmente de ideias minutos mais tarde e voltar para trás, repetindo todo o sofrimento, para morrer ao tentar regressar ao local de onde acabara de sair. É esse o grande enigma do gnu: a sua migração anual é um exemplo requintado do elaborado funcionamento do mecanismo da natureza. Observados de perto, porém, são criaturas de aspecto divertido e enigmático que podem parecer irremediavelmente burras. Contudo, há milénios que vivem nesta paisagem complicada e implacável. Pensei no gnu solitário que ia aventurar-se sozinho e não pude deixar de me perguntar: como conseguiu esta espécie improvável sobreviver?

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Pouco depois de o sol nascer em Masai Mara, estou enrolado num olkarasha, o pano axadrezado que os masai usam tradicionalmente como manto, para afastar o frio, e a beber café de uma garrafa térmica com Ekai Ekalale, um guia queniano.

Observamos alguns gnus a pastar à frente do nosso Land Rover. Estão suficientemente perto para conseguirmos ouvi-los mastigar bocas cheias de erva. Uma hora antes, vimos duas leoas matarem uma cria de búfalo para depois serem assaltadas por um bando de hienas. Isso aconteceu a menos de 1,5 quilómetros e este grupo deve ter ouvido os gritos e guinchos frenéticos das hienas, mas os gnus parecem alheios ao perigo. Comem alegremente, abanando as orelhas grandes e as caudas para espantar pequenas nuvens de moscas.

Pergunto a Ekai se ele acha que os gnus são estúpidos. “Nenhum animal é estúpido”, diz. “Alguns são mais espertos do que outros.” No entanto, comenta que não sou o único a fazer essa pergunta. Há séculos que os gnus confundem as pessoas que vivem mais perto deles: os masai e outras tribos da região. Uma lenda local explica que o gnu foi criado com partes que sobraram de outros animais. “Recebeu a cabeça de um facoquero, o pescoço de um búfalo, as riscas de uma zebra e a cauda de uma girafa”, diz Ekai. Há muitas versões deste mito, incluindo uma que diz que o gnu tem o cérebro de uma pulga.

Pode ser um mito, mas parece uma boa descrição. Os gnus parecem de facto desajeitados e simplórios. São membros da família dos antílopes, algo em que é difícil acreditar quando os vemos ao lado dos seus primos – a elegante impala ou a graciosa, mas acrobática, gazela de Thomson. Os seus pequenos chifres e olhos minúsculos parecem demasiado pequenos para o seu focinho longo, acentuado por exageradas barbas compridas e desgrenhadas. E os seus corpos parecem desconfortavelmente desequilibrados, com grandes corcundas atrás dos ombros, que dão lugar a quartos traseiros inclinados, como um halterofilista que trabalhou apenas na parte superior do corpo. 

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Esta constituição, mais pesada na parte dianteira e equilibrada sobre pernas finas, confere ao animal uma passada deselegante. Depois, há ainda o ruído incessante e entorpecedor que produzem que levou os primeiros nómadas africanos a chamarem-lhe “gnu” numa tentativa de replicar o seu som.

O resultado é uma criatura tão estranha mas tão despretensiosa que os colonos holandeses, quando a viram pela primeira vez, lhe deram um dos nomes menos imaginativos do léxico animal: animal selvagem. Como terá a natureza inventado este Frankenstein do reino animal?

Para descobrir, telefonei a Anna Estes, ecologista de Carleton College que trabalha na Tanzânia. “Pode parar aí”, disse-me. “O meu pai levaria a peito se alguém tentasse impugnar o wildebeest.” Telefonei a Anna porque o seu pai, o biólogo Richard Estes, escreveu “The Gnu’s World”, uma história minuciosa sobre a vida do gnu e uma contra-argumentação abrangente para todas as piadas que possam ser feitas. Richard iniciou a sua pesquisa em 1962 e foi um dos primeiros cientistas a estudar o comportamento da subespécie de gnu Connochaetes taurinus mearnsi no Serengeti. Anna cresceu aos saltos num Land Cruiser amolgado, seguindo as manadas enquanto o pai via os animais acasalar, parir, afastar predadores e, sim, a morrer em grandes números. O pai reformou-se e Anna continuou a estudar a ecologia do Serengeti.

Pensemos no assunto desta forma, sugeriu ela: uma das medidas do sucesso evolutivo é a população. Neste aspecto, o gnu, com mais de 1,3 milhões de indivíduos, é, de longe o mamífero de grande porte mais bem-sucedido do Serengeti. Os elefantes, com a sua tão apregoada inteligência e incontestável força, são apenas cerca de 8.500; os leões, os chamados reis da planície, são uns insignificantes 3.000. Os concorrentes mais próximos são as gazelas de Thomson e as zebras (com umas poucas centenas de milhares cada) e ambas bem atrás dos gnus.

Este sucesso está directamente relacionado com o aspecto estranho das partes do seu corpo, que são adaptações meticulosamente afinadas ao longo de mais de um milhão de anos para ajudá-los a percorrer enormes distâncias e a colher todos os benefícios do singular ecossistema do Serengeti. Os pequenos chifres são minúsculos, se comparados com os enormes capacetes cornudos do búfalo-africano, mas implicam menos peso para carregar ao percorrer longas distâncias, ou ao atravessar rios a nado, e têm menos probabilidades de ficar presos no meio de vegetação densa. Os focinhos achatados permitem pastar rente ao solo, como um cortador de relva. O dorso inclinado promove uma passada altamente eficiente e os tornozelos têm grande elasticidade, permitindo-lhes saltar quando correm e contribuindo para a poupança de energia durante a longa migração. Por mais desajeitados que pareçam, os gnus são capazes de acelerar a 80 quilómetros por hora, fugindo às hienas e ultrapassando os leões. Também são bons a sentir onde a chuva cai e a dirigirem-se na direcção de tempestades distantes, que terão dado origem ao crescimento de mais erva quando a manada lá chegar.

Contudo, a mais impressionante adaptação do gnu é a sua estratégia para trazer a nova geração ao mundo. A partir do final de Janeiro, as manadas juntam-se nas mesmas planícies que eu e Charlie sobrevoámos, quando ainda estão cobertas de erva luxuriante, alimentada por chuvas sazonais e com um solo rico em nutrientes vulcânicos. Ao contrário de muitas outras espécies de antílopes, o gnu não esconde os seus juvenis e as fêmeas parem em campo aberto. Cerca de 500 mil crias de gnu nascem em três semanas: aproximadamente 24 mil por dia. Sete minutos depois de emergir do útero, a cria está de pé e, 24 horas depois, pode correr ao lado da progenitora.

Os predadores estão preparados para este festim anual e deliciam-se com os recém-nascidos, mas só conseguem consumir uma pequena fracção deles. Passadas algumas semanas, as crias e os adultos já começaram a avançar para a paragem seguinte, com os números engrossados em quase um terço.

Fui à procura de outros exemplos do comportamento engenhoso dos gnus. Descobri que parem sempre em plena luz do dia e isto pode parecer torná-los mais vulneráveis, só que os leões e as hienas costumam caçar entre o crepúsculo e a alvorada do dia seguinte. E as glândulas odoríferas dos seus cascos deixam um rasto de hormonas que ajudam os animais a encontrar o caminho.

Em seguida, deparei-me com um exemplo que me levou de volta ao avião, ao lado de Charlie, recordando o mistério do gnu que parecia ter-se aventurado sozinho. Se uma progenitora se separar da sua cria, sai da coluna e começa a andar na direcção oposta – para o fim da fila, onde as crias se agrupam naturalmente quando se perdem.

Antes de partir para o Serengeti, li sobre um jovem ecologista que mudou a forma como os cientistas viam o gnu. Tony Sinclair cresceu na Tanzânia, estudou zoologia em Oxford e passou mais de uma década a contar as populações de animais do Serengeti. 

Em Abril de 1982, viajou até à África do Sul para participar numa conferência de conservacionistas, onde subiu ao pódio para anunciar notícias espantosas: ele e outro ecologista, Mike Norton-Griffiths, tinham contado a maior manada de ungulados de que havia registo.

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O feito de calcular com precisão o tamanho de uma manada migratória tão grande antes de ser possível usar satélites e outras tecnologias avançadas era impressionante, mas ainda mais espectacular era o facto de esta manada representar a maior população de gnus do Serengeti.

A partir da década de 1890, os gnus começaram a ser dizimados por surtos de um vírus conhecido como peste bovina, mortal para o gado doméstico e os seus primos selvagens, incluindo o búfalo-africano e o gnu.

Uma vacina eficaz fora amplamente administrada no início da década de 1960, travando os surtos entre o gado e o gnu estava a recuperar. Antes de a vacina erradicar a peste bovina, a população de gnus do Serengeti era aproximadamente de 260 mil. Em apenas 17 anos, porém, entre 1961 e 1977, mais do que quintuplicara para 1,4 milhões. Tony Sinclair mostrou-me uma fotografia a preto e branco captada num dos seus inúmeros voos: uma enorme manada de gnus a cobrir a terra, de uma ponta à outra do horizonte.

Em Pretória, porém, os seus colegas não partilharam o entusiasmo.

“Muitas pessoas acusaram-nos de irresponsabilidade”, recordou na nossa conversa via Zoom. “E aconselharam-nos a propor medidas para extinguir metade da população.”

Era esse o dogma prevalecente defendido por muitos cientistas em África, lembrou. As populações de animais selvagens teriam de ser manipuladas para manter o equilíbrio. “Tinham de ser controladas”, disse-me, explicando o seu raciocínio. “De outro modo, iriam enlouquecer e destruir tudo.”

Tony Sinclair não estava convencido. “Ocorreu-me que poderíamos demonstrar que não era esse o caso da população de gnus do Serengeti.” Regressou ao Serengeti e, ao longo dos anos que se seguiram, começou a notar mudanças significativas juntamente com os seus colegas. Em primeiro lugar, as populações de predadores estavam a crescer. Não era assim tão surpreendente, pois mais presas implicam mais alimento para leões, hienas, chitas e leopardos. Porém, também se detectaram menos incêndios. Os dois investigadores constataram que a grande manada de gnus mantinha a erva mais pequena e consequentemente não havia fogos tão frequentes, nem tão quentes, permitindo às árvores crescer. Subitamente, grandes áreas que eram pradarias há quase um século estavam a ser reflorestadas.

Mais árvores significavam mais insectos, mais aves e mais animais que comem as folhas das árvores, incluindo girafas e elefantes. Além disso, enquanto viajavam, os gnus espalhavam os seus excrementos, melhorando os solos e produzindo mais erva para si e para outras espécies. As populações de elefantes cresceram, as borboletas proliferaram, até espécies modestas como o escaravelho-bosteiro prosperaram.

Tony Sinclair apercebeu-se de que o Serengeti estava a ser transformado num lugar de que poucos seres humanos vivos conseguiam lembrar-se. E o gatilho dessa mudança fora o humilde gnu. Nessa época, o conceito de espécie fundamental (um animal singularmente essencial para a estrutura e saúde de um ecossistema) era relativamente novo. Até então, todas as espécies fundamentais identificadas eram predadores de topo. No Serengeti, porém, o leão não era o rei: eram as suas presas.

Pondo as coisas de uma forma simples, “não existe Serengeti, pelo menos um que reconhecêssemos, sem o gnu”, disse-me Tony Sinclair.

Enquanto conduzia nas planícies, mesmo quando não avistava gnus, vislumbrava frequentemente os seus restos, identificáveis por um crânio adornado com os reveladores chifres do gnu nas proximidades.

Tomei conhecimento de que um dos protegidos de Sinclair, Grant Hopcraft, um ecologista da Universidade de Glasgow, estava a estudar restos de gnus e telefonei-lhe.

Eu presumira que a maioria dos animais tinha sido morta, mas Grant relativizou essa ideia. “As pessoas pensam que os gnus são mortos por leões, hienas ou crocodilos”, disse. “Mas os predadores são responsáveis por apenas cerca de 25 a 30% das mortes entre adultos.” A primeira causa de morte? Fome.

Grant e a sua equipa estudam ossos de gnu, sobretudo fémures. “Uma das tarefas que fazemos é examinar o conteúdo de medula óssea”, disse, explicando que, mesmo após a morte, esta continua a conter a maior reserva de gordura do animal. Se o conteúdo de gordura da medula estiver esgotado, isso informa que o animal metabolizara toda a energia armazenada nas camadas adiposas existentes sob a pele e em redor dos órgãos, até mesmo parte do seu tecido muscular, mergulhando, por fim, nas reservas de emergência dos seus ossos. Por essa altura, disse, “estes animais são aquilo a que chamamos uma carcaça com pulsação”. Um predador pode desferir o golpe mortal, mas só porque o animal já estava enfraquecido pela fome extrema.

A equipa de Grant também está a estudar os pêlos da cauda de um gnu. Os pêlos, com cerca de trinta centímetros de comprimento, contam a história do último ano e meio da vida do animal. Os cientistas cortam-nos em segmentos minúsculos, representando cada um cerca de duas semanas de crescimento, e depois analisam-nos em busca de isótopos e hormonas que revelam uma variedade de dados sobre o indivíduo. “Imagine que o animal escreve um diário todos os dias”, disse Hopcraft. “‘Estou prenhe. Tenho fome. Estou nervosa. É aqui que tenho andado a comer.’ É essa a informação que nos conta.”

E o que revelam estes diários do gnu? Os animais estão sempre cheios de fome, sobretudo as fêmeas. “Uma fêmea de gnu está à beira de morrer de fome ao longo de quase toda a vida”, disse Grant. “Porque nunca pára de se reproduzir.”

Como me explicou, ao longo do ano as fêmeas ora estão prenhes ora andam a amamentar. E durante quatro meses, entre Junho e Setembro, estão a fazer as duas tarefas enquanto migram, o que exige enorme necessidade de energia aos seus organismos. “Isso leva-as a concentrarem-se completamente em consumir o máximo possível da erva mais nutritiva até se irem embora, disse. Depois têm de perceber imediatamente onde está a chover, correrem cinco ou seis quilómetros até ao pasto disponível mais próximo e começarem a comer, competindo com os outros milhões de gnus que estão a fazer exactamente o mesmo. “Este é o motor da migração.”

Lembrei-me do gnu que Charlie vira atravessar o rio Mara duas vezes no mesmo dia e perguntei a Grant se a fome poderá levar um animal a ignorar ameaças tão evidentes. “Sim”, disse. “Alguns dos seus comportamentos são moldados pelo esforço de evitar predadores, mas a fome é a força dominante.”

Há muitos anos, reservei um safari barato em Nairobi e, em menos de uma hora, estávamos no meio de uma manada de gnus, emoldurados pela linha do horizonte da cidade. O ar cheirava ao seu pungente estrume e ecoava o seu perpétuo ga-nu.

O guia explicou que esta manada com cerca de 20 mil animais migraria depois para as vizinhas planícies de Athi-Kaputiei para, em seguida, regressar. Era uma versão em miniatura da grande migração Serengeti-Mara, que circulava mais longe, a sudoeste.

Referi isto a Joseph Ogutu e ele acenou tristemente com a cabeça. Já era tarde em Nairobi quando conversámos via Zoom e ele puxava os óculos para cima e esfregava os olhos com o cansaço de um homem que passa os dias a analisar dados referentes a uma história perturbadora. Nascido e criado na zona ocidental do Quénia, Joseph é analista sénior de estatística da Universidade de Hohenheim, em Estugarda. A sua especialidade é contar as populações de animais selvagens do Quénia e modelar as suas alterações ao longo do tempo.

Ele conhece demasiado bem a história da manada de Athi-Kaputiei. No início da década de 2000, começou a reconstruir os conjuntos de dados referentes a estes gnus recolhidos pelo governo do Quénia. “O governo fez um belíssimo trabalho na recolha de dados”, disse. Mas estavam espalhados por antigas unidades de fita, disquetes, discos rígidos e documentos trancados em arquivadores cujas chaves tinham desaparecido.

Enquanto recuperava a informação e a comparava com os números actuais, surgiu uma imagem preocupante: a migração colapsara. A manada diminuíra de cerca de trinta mil animais em meados da década de 1970 para menos de três mil em 2014. Foram identificadas causas humanas, incluindo o crescimento urbano de Nairobi, mais quintas vedadas e a expansão dos caminhos-de-ferro, entre outras. Por fim, estas pressões invasoras asfixiaram as rotas seguidas pelos gnus para encontrar pasto suficiente. Sem capacidade de se deslocarem em liberdade, os gnus remanescentes pararam de migrar.

Joseph Ogutu disse-me que muitos desses obstáculos constrangem agora a migração do Serengeti em Masai Mara. Enquanto os enumerava (mais rebanhos de ovelhas e cabras, mais vedações nas comunidades masai, mais água desviada pelas explorações agrícolas), imaginei um cardiologista a examinar uma ressonância magnética, revelando bloqueios no sistema circulatório de um paciente e a calcular durante quanto mais tempo o coração continuará a bater. O número de gnus que vem para o Quénia está a diminuir, disse o meu interlocutor. “E os que vêm passam um mês e meio a menos por ano em Mara do que antigamente.”

Se deixassem de vir, haveria uma alteração dramática no ecossistema, mas também na economia queniana, uma vez que milhares de turistas estrangeiros visitam Mara para assistir ao espectáculo. Perguntei a Ogutu se ele achava que a tendência era reversível. “Os sinais dos dados que tenho estado a analisar e as previsões para o futuro não dão grandes esperanças”, disse. “Excepto se reservarmos terra e a protegermos, para sempre, para o gnu.”

Num dos últimos dias que passei em Mara, estava a passear de carro pela savana com Charlie e Ekai quando avistámos um jovem gnu sozinho, a galopar pela estrada. Não parecia perseguido. Ia simplesmente a correr sozinho, um comportamento estranho para um gnu. Conseguimos aproximarmo-nos e conduzimos ao seu lado durante algum tempo. Ele ignorou-nos, com a cabeça a subir e a descer e os olhinhos focados na estrada à sua frente. Onde iria este animal? Em que estaria a pensar? Na altura, pensei que estava, seguramente, condenado a morrer, mas agora não tenho tanta certeza.