Na realidade, tudo começou aqui, em Idanha-a-Nova”, diz Carlos Neto de Carvalho, com um sorriso simples. Carlos Neto é o jovem coordenador científico do Geopark Naturtejo, mas é, acima de tudo, um geólogo por devoção e paixão, a mesma devoção e paixão que o levaram a deixar Lisboa para trás há quase uma década e a abraçar o projecto do primeiro geoparque português.

A frase foi dita no seu geossítio preferido, Penha Garcia, enquanto descíamos o caminho que conduz ao trilho dos fósseis. O suor escorre-nos pelas costas, prova do esforço da caminhada e do sol de Verão, inclemente nesta região do interior, a escassos quilómetros da fronteira espanhola. Em redor, impressionantes formações rochosas quartzíticas de todos os tamanhos e feitios conferem uma escala volumosa a este Parque Icnológico de Penha Garcia. Nos céus, uma ave de rapina observa-nos, vigilante, procurando medir o grau de ameaça da nossa actividade até perceber que somos inofensivos. O geólogo olha para uma gruta embutida na rocha, a Lapa de Penha Garcia, e aponta nessa direcção: “Foi aqui que a ideia germinou, num workshop de 2003 sobre os fósseis da área. Uma coisa levou a outra e a ideia de um geoparque ganhou asas”.

Continuamos a descer, observando as paredes de rocha distorcidas, contornando blocos e moinhos de água recuperados. De permeio, passamos por um numeroso grupo de visitantes. Recordo, de memória, as palavras de outra personagem-chave na constituição do Geopark: “O sucesso passará pela integração dos agentes sociais no terreno, mas o Geopark, acima de tudo, é para as pessoas”, disse-me, certa tarde, Armindo Jacinto, presidente do Geopark e vice-presidente da Câmara Municipal de Idanha-a-Nova. Neste vale de interesse geológico, vigiado pela imponente torre do Castelo de Penha Garcia e abraçado pelo espelho de água da barragem, Carlos Neto confirma: “O Geopark não é uma área protegida como um parque natural, é um conjunto de concelhos que integra geomonumentos, paisagens, vestígios históricos… e habitantes.” E só funcionará na medida em que constituir um benefício para a população residente e esse benefício for reconhecido, tal como já é em Penha Garcia, onde os residentes deixaram de estranhar os turistas de calções e camisolas de alças, de máquinas fotográficas a tiracolo, caminhando na direcção da parede vertical com estranhos relevos.

Naturtejo gere o primeiro geoparque português. Em 2006, quando a Rede Europeia de Geoparques, apoiada pela UNESCO e formada a partir do ano 2000, aprovou a candidatura dos municípios de Nisa, Oleiros, Proença-a-Nova, Castelo Branco, Vila Velha de Ródão e Idanha-a-Nova, havia alguma desconfiança sobre a morosidade do processo de integração do conceito de geoparque numa região pouco bafejada pelos rendimentos do turismo. No entanto, como diria Mark Twain, as notícias sobre essa desconfiança foram fortemente exageradas.

Provamo-lo ao passarmos pelo restaurante Petiscos & Granitos de Monsanto, homenagem do fundador aos inselbergues característicos desta aldeia inimitável. Ao longo das caminhadas pelos 4.617km2 do Geopark, outros projectos tornam-se palpáveis. Em Salvaterra do Extremo, última localidade antes da fronteira com Espanha, nasceu um Geo-Refúgio, disponibilizando alojamento para os visitantes e uma geopadaria que propõe, no menu, a “pizza tectónica no prato”. Multiplicam-se também os geoprodutos típicos da região e com a chancela do Geopark, como o geovinho Súbito, as carnes Montes da Raia, uma aguardente de medronho e várias marcas de azeite e queijo locais. “É uma dinâmica muito interessante para a região”, lembra Armindo Jacinto. “Quando os geoprodutos ganham prémios em feiras nacionais ou internacionais, como tem sucedido, fazem também a promoção do território, sublinhando o nosso potencial agrícola nos sectores dos queijos ou dos vinhos.”


 

O geoturismo, por si, não pode ser a salvação para este conjunto de municípios a contas com problemas consideráveis de desertificação e envelhecimento. “O mundo rural tem de ser redinamizado na região”, argumenta Armindo Jacinto. “Em Idanha-a-Nova, criámos uma incubadora de empresas de base rural, que constitui o maior cluster de empresas biológicas do país, porque acreditamos que o desenvolvimento sustentável implica uma melhoria considerável da actividade produtiva.” Nessa visão, o Geopark é o pólo aglutinador, o elemento que agrega o azeite biológico, o vinho beirão ou outros geoprodutos associados aos fósseis de Penha Garcia ou a outros geomonumentos.

O pastoreio ainda é uma imagem habitual nas zonas rurais do Geopark, documentando a resistência do sector primário numa região marcada por fortes tradições de apego à terra e aos animais.

Porque falamos de comida, é legítimo lembrar o provérbio alemão segundo o qual muitos cozinheiros arriscam-se a estragar a sopa. Uma das reservas colocadas inicialmente ao modelo de gestão do Geopark temia o destino de uma área protegida gerida por seis municípios diferentes, com necessidades e grandezas distintas e, pontualmente, dirigidos por forças partidárias contraditórias. Armindo Jacinto sorri com a evocação. “O entusiasmo e o espírito de iniciativa foram enormes. O próprio lema do projecto é ‘Unidos por Natureza’, explicitando o que nos move em comum.” As autarquias envolvidas cedo perceberam que quanto mais apoios, melhor. E, aos poucos, outros parceiros foram incorporados, como os departamentos de turismo de cada região, as associações das Aldeias Históricas e das Aldeias do Xisto e algumas dezenas de empresas. Passo a passo, o “corpo” foi ganhando “alma” e os primeiros resultados têm sido animadores: segundo o Instituto Nacional de Estatística, desde 2009, houve um aumento de 100 por cento de dormidas totais e um crescimento de 300 por cento em relação aos visitantes estrangeiros, a maioria proveniente do país vizinho. Para Armindo Jacinto, o céu é o limite: “Não queremos ser catalogados apenas como uma região do interior profundo, com a carga negativa inerente. Queremos, sim, ser vistos como uma região a meio caminho entre Lisboa, Porto e Madrid, o que capitaliza algo como cerca de dez milhões de potenciais visitantes por ano.”


 

Em qualquer área protegida, é fundamental gerir adequadamente as expectativas, de forma a que a população local não espere do novo sítio protegido nem um maná de riqueza súbita, nem uma fonte de problemas, restrições e normas regulatórias. Um bom indício da delicadeza institucional do Geopark Naturtejo foi produzido aquando da ampliação de um parque eólico na serra da Gardunha, que poderá penetrar nas formas graníticas da serra.
O parecer negativo do Geopark foi apenas indicativo. Ao contrário de um parque natural, um geoparque não tem verdadeiro poder restritivo e isso é um obstáculo.

Vigiando a paisagem a várias dezenas de metros de altitude, o abutre do Egipto é uma das aves mais icónicas do território beirão. Em Portugal, tem o estatuto de ave em perigo, mas é facilmente avistável ao longo da Rota dos Abutres.

"Vamos só ver rochas?”, pergunta uma criança aos pais, à entrada de um dos postos de turismo do Geopark. A pergunta esconde um dos desafios dos promotores da geodiversidade como oferta turística, sempre confrontados com o apelo mais fácil da biodiversidade e do próprio património construído. O geomonumento do Parque Icnológico de Penha Garcia é um dos mais visitados, juntamente com as Portas de Ródão e as Cascatas da Fraga de Água d’Alta. As formações geológicas da serra da Gardunha são igualmente um ponto de paragem obrigatório, mas a beleza de um geoparque, de acordo com a visão de Carlos Neto, é todo o conjunto: “Tem havido cada vez mais visitas de professores e alunos, fazemos congressos e workshops, programas de animação nas aldeias históricas, feiras medievais e gastronómicas, exposições, espectáculos musicais com expoente no Festival Boom, que atrai cerca de vinte mil visitantes à barragem de Idanha-a-Nova.” Depois, há toda a gama de turismo ecológico, associado aos trilhos pedestres, às rotas da biodiversidade, aos desportos de aventura e ao contacto com a natureza. O próprio património imaterial é um factor de valorização, com a música, a comida e as tradições religiosas bem impregnadas no tecido social da região.

Enquanto falamos, entramos num dos moinhos recuperados e encontramos uma imensidão de fósseis. Em Penha Garcia, abundam as Cruziana, ou seja, os vestígios dos rastos e túneis que trilobites fizeram no fundo do mar há milhões de anos e que sobreviveram até aos dias de hoje. É uma das maiores concentrações conhecidas no planeta e testemunha uma importante página no livro da Terra, escrita há cerca de 480 milhões de anos, muito antes dos dinossauros, dos primeiros mamíferos ou dos nossos antepassados hominídeos.

“A geologia tem alguma culpa pelo facto de o cidadão só conhecer uma porção da sua riqueza e dimensão”, argumenta Mário Cachão, paleontólogo da Faculdade de Ciências de Lisboa e entusiasta do conceito de geoparque enquanto modelo de valorização do património geológico. “Esforçámo-nos apenas por contar as histórias dos dinossauros e dos vulcões e há muito mais para dizer ao público. Só temos de encontrar a narrativa certa.”


 

É esse o esforço de investigadores como Carlos Neto de Carvalho. Em Salvaterra do Extremo, existem fósseis de cianobactérias, alvo de publicações recentes pela sua raridade e importância científica. “Dito assim, não parece imponente”, resume Carlos Neto. “Mas se eu lhe disser que são os fósseis mais antigos da Península Ibérica, talvez essa narrativa já o convença a visitar o local.”

Despedimo-nos de Penha Garcia e rumamos a Monsanto, a aldeia mais portuguesa de Portugal. Subimos a ladeira íngreme, detemo-nos diante dos exemplares de casas que se adossam nos blocos de granito e trocamos algumas palavras com as vendedoras de marafonas que se abrigam à sombra.
Muito provavelmente, desconhecem que vivem num inselberg, numa antiga câmara magmática, mas o certo é que o peso da tradição e dos antigos costumes é bem visível. Lá do cimo, a partir do castelo templário, Carlos Neto aponta para as planícies em redor pontuadas por elevações montanhosas e vai indicando, com entusiasmo, toda a “cartografia” do terreno, sublinhando falhas e movimentos tectónicos. Tudo parece fazer sentido e tem lógica numa região que se gaba das suas comendas, lugares templários, património construído e papel histórico na construção da identidade portuguesa.

As Portas de Ródão são a única formação geológica classificada como Monumento Natural no Geopark Naturtejo. Há indícios de ocupação humana continuada desde a pré-história nesta região. 

São 16 os geomonumentos do Geopark distribuídos por seis concelhos: os fósseis de Penha Garcia, as Portas do Almourão, a Garganta do Zêzere, as Minas de Segura, o Inselberg Granítico de Monsanto, a Escarpa da Falha do Pônsul, os Troncos Fósseis de Vila Velha de Ródão, os Canhões Fluviais do Erges, as Cascatas da Fraga de Água d’Alta, as Portas de Ródão, os Blocos Pedunculados de Arês e Alpalhão, as Minas de Monforte da Beira, as Minas Romanas do Conhal do Arneiro, o Miradouro Geomorfológico das Corgas, os Meandros do Rio Zêzere e as Morfologias Graníticas da Gardunha. Poderia haver mais e, em rigor, um dos troncos fósseis de Perais já desapareceu, vítima do vandalismo, o que sugere que a educação ambiental é uma tarefa incompleta por definição.

Passa-se e passeia-se pelas aldeias históricas de Monsanto e Idanha-a-Velha, pelas aldeias do xisto de Sarzedas, Figueira, Martim Branco, Álvaro e Foz do Cobrão, refresca-se a vista com os rios Erges, Pônsul, Ocreza, Zêzere e Tejo. Árvores seculares, como uma oliveira nos Montes da Senhora ou um ulmeiro na Sobreira Formosa, expressam a teimosia da paisagem e a resistência dos monumentos vivos à mudança.

Seguimos novamente para a zona conhecida por “raia perdida”, dado o isolamento da região e a proximidade de Espanha. É aqui que existe o oásis de frescura do rio Erges e que serve como idílico pano de fundo às Termas de Monfortinho. As suas propriedades curativas ecoam no tempo, fruto da água que brota a 29ºC das nascentes da serra de Penha Garcia. “Qué encanto, es muy bonita!”, ouvimos ao nosso lado.
É um casal de Salamanca, que não se cansa de fotografar a histórica fachada da estância. As termas foram remodeladas recentemente e, além das curas, existe um spa ao nível dos melhores que se podem encontrar em Portugal.

Vencemos os 200 metros que nos separam do Hotel da Fonte Santa, remodelado em 2005 num misto de classicismo e design e descemos para a esplanada à beira da piscina. De súbito, Carlos Neto estanca a meio da escadaria, vira-se para Sandra, a relações-públicas das termas, e aponta para o degrau: “Não sabia que o hotel também tinha fósseis de Cruziana nas escadas…” Com respeito, contornamos o vestígio milenar, e passamos a ter cuidado ao pisarmos cada pedra. Nunca se sabe quando podemos ter história debaixo dos pés. Literalmente.

Do grande rio ibérico, despedimo-nos num passeio de barco que parte do porto de Vila Velha de Ródão e vai até às Portas de Ródão. Admiramos a imponência dos blocos quartzíticos vistos cá de baixo, vemos os voos dos grifos e das águias-de-bonelli e tentamos perscrutar as aves mais raras aqui registadas, como o grifo-de-rüppel ou a águia-imperial-ibérica.

Navegando através das Portas de Ródão, detectamos uma modificação radical na profundidade do Tejo, que subitamente alarga dos 15 metros até aos 60, o que sugere a existência de uma antiga queda de água nesta área. Reparamos no terreno marginal aplainado pela prospecção de ouro. Sabemos que, mais atrás, há gravuras rupestres do importante Complexo de Arte Rupestre do Vale do Tejo dentro e fora de água, e subimos ao alto da Torre do Rei Wamba. Olhamos para baixo e vemos um pescador na margem do Tejo. Não é difícil imaginar nesta paisagem um grupo de caçadores-recolectores a pescar ou a caçar elefantes ou veados há milhares de anos, rodeados pelas mesmas escarpas e delimitados pelo mesmo rio. Ontem como hoje, tudo faz sentido.