A savana protegida ajuda os geladas a prosperar. Mas isso pode mudar.

 

É alvorada e estamos a 3.300 metros de altitude. Lá em baixo, reina o rebuliço entre os macacos.

Admassu Getaneh caminha através do manto de vegetação rasteira e do capim grosso, num planalto das Terras Altas da Etiópia. O sol incide sobre a sua arma. A seus pés, as rochas descem até às profundezas do Grande Vale do Rifte, na África Oriental. Em breve, ouvir-se-á um guincho sobrenatural quando centenas de primatas despertarem do sono à beira do penhasco e irromperem pelo planalto.

Admassu não está aqui para assistir. Vira as costas à escarpa. Ergue o binóculo. “Consigo ver tudo o que se passa”, explica. Talvez o Theropithecus gelada, por vezes apelidado de “macaco-de-coração-sangrento”, não lhe atraia a atenção, mas a presença de Admassu aqui explica a presença dos geladas nestas paragens.

De forma intermitente ao longo de meio milénio, agentes de controlo rural fizeram aquilo que ele faz hoje: patrulharam a savana planáltica com quase cem quilómetros quadrados hoje conhecida como Zona de Conservação Comunitária de Menz-Guassa, ou simplesmente Guassa. Antigo militar, Admassu foi contratado para garantir que ninguém rouba nem estraga o capim.

A preservação do capim é um bom início para proteger o único macaco graminívoro do mundo. No entanto, os antepassados de Admassu não agiram em prol dos geladas: estavam, sim, a tentar salvar-se a si próprios. A vegetação endémica está limitada às Terras Altas. Caules esguios e resistentes são tecidos, formando colmo para os telhados. Os homens entrançam erva e fazem cordas. As mulheres e as crianças atam folhas, bainhas e caules para fabricar vassouras e tochas. O capim serve de enchimento para colchões.

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Os geladas alimentam-se na Zona de Conservação Comunitária de Menz-Guassa porque a vegetação é diversificada. Admassu Getaneh, um antigo soldado que gere a zona conhecida como Guassa, patrulha-a para desencorajar infractores que aqui pastoreiem o gado ou colham capim.

Contudo, um pouco por todo este território coberto por bruma e onde vivem cerca de 80% dos etíopes, prados, pradarias, bosques, moitas, charnecas e pântanos estão a degradar-se, transformando-se em rocha e terra estéril. A população está a aumentar exponencialmente: com cerca de cem milhões de habitantes, a Etiópia é o segundo país mais povoado de África. As explorações agrícolas estendem-se sobre terras húmidas e férteis, desalojando as plantas autóctones que ajudam o solo a reter a água. A erosão elimina anualmente 1.500 milhões de terra da camada superior do solo, empurrando os agricultores para terrenos ainda mais marginais. Os animais de criação esmagam o solo. A Etiópia possui mais cabeças de gado do que qualquer outro país africano. Isto perturba um equilíbrio delicado entre a flora nativa e os roedores, reduzindo as fontes de alimento de todo o tipo de criaturas, desde a lebre ao íbis.


Este padrão observa-se em quase toda a Etiópia, mas, em Guassa, o capim é alto e ondulante, os lírios e as lobélias crescem durante anos a fio. Não existe aqui a figura da área protegida. Este território é apenas gerido pela comunidade local. Um complexo sistema comunitário determina onde o gado pasta, quem corta a erva e quando. Com que resultados? Esta paisagem, com um sexto do tamanho de Nairobi, é uma das mais saudáveis da África Oriental. Vivem aqui quase um quarto das espécies endémicas de mamíferos do país, entre os quais cerca de duas dezenas de indivíduos de uma das espécies de canídeos mais ameaçada do mundo, o lobo-da-etiópia. Guassa é um ponto de grande concentração de cabras-das-pedras, civetas, lobos-dourados-africanos e hienas. E, ao contrário de qualquer outro sítio na Etiópia, os seus cerca de oitocentos geladas mantêm comportamentos e hábitos de há milhares de anos.

Esta curta história de vida selvagem é, por outras palavras, um acaso feliz. Vim até à Etiópia para averiguar se Guassa poderia servir de modelo de conservação. O que encontrei foi uma região a mudar tão depressa que tive de me interrogar: conseguirão os macacos e os agricultores de Guassa lidar com as pressões que se avizinham?

Semanas antes de nos encontrarmos com Admassu, fugimos das multidões e da poeira de Adis Abeba e subimos a estrada serpenteante que nos levou a Guassa. Eu e o cientista e fotógrafo Jeffrey Kerby passámos por quintas secas e casas de pedra. Haverá quem se lembre da Etiópia por causa de imagens de camelos e planícies de sal áridas, mas o país é maioritariamente montanhoso. Íamos a caminho do tecto de África, onde Jeffrey participa num projecto de investigação sobre geladas em curso há uma década e fundado e gerido pelos antropólogos Peter Fashing e Nga Nguyen.

Chegados ao topo da última subida, a terra ressequida e as árvores deram lugar a um tapete verde vívido e luxuriante. Os nossos anfitriões apareceram quase de imediato. Três geladas atravessaram a estrada a galope, com o mais pequeno a fazer meias-rodas repletas de ritmo. Um aterrou numa rocha a três metros de distância. A cabeleira cor de palha caía-lhe pelos ombros. Os braços e punhos pareciam enfiados em luvas pretas de cerimónia. Tinha um aspecto quase imperial.

Os geladas são uma das espécies emblemáticas representantes dos prados alpinos africanos e a sua distribuição limita-se às Terras Altas da Etiópia. São o mais pequeno vestígio de um género que, há milhões de anos, se estendeu da África do Sul até à Península Ibérica e à Índia. Outrora, foi um dos primatas mais proeminentes, mas extinguiu-se provavelmente devido a alterações climáticas, à concorrência com espécies mais adaptáveis e aos nossos antepassados, que os matavam. Actualmente tudo o que resta do Theropithecus são os geladas – um vestígio valioso, embora imperfeito, de conhecimento do mundo habitado pelos nossos antepassados. Não há outro animal igual.

Algumas horas depois de chegarmos ao acampamento de investigação, eu e Jeffrey fizemo-nos à estrada. Sessenta e cinco macacos estavam sentados na pradaria. Os macacos não olharam para cima enquanto passávamos.

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Um manto ondulante desce pelos ombros de um macho adulto. Os cientistas suspeitam que, tal como a mancha de pele vermelha do seu peito, poderá ser um sinal sexual, alertando as fêmeas para a sua virilidade ou exibindo força perante outros machos. 

As características mais reconhecíveis dos geladas são as manchas de pele nua carmesim no peito. Nas fêmeas, esta zona muda de cor e pequenas bolsas enchem-se de fluido, indicando frequentemente que estão prontas para acasalar. Nos machos dominantes, o cor-de-rosa escurece, tornando-se vermelho. Outros primatas mostram a predisposição sexual através dos quadris, mas estes macacos passam a maior parte do dia arrastando-se em cima do traseiro, empanturrando-se. A maioria dos primatas trepa às árvores para comer fruta e folhas. Os geladas usam os polegares oponíveis para arrancar as folhas e as ervas. À semelhança das zebras, trituram os alimentos com os molares. Em teoria, segundo Jeffrey Kerby, “os primatas não deveriam ingerir capim”. Do ponto de vista nutricional, a erva fornece pouca energia. A ingestão de uma quantidade suficiente exige tempo e trabalho. Esta ineficiência teria dificultado o desenvolvimento de um cérebro de grandes dimensões, o que talvez explique por que motivo os geladas são menos curiosos do que os babuínos-negros, por exemplo, quando lhes mostramos bonecos ou bolas de palha. Mas isso não significa que estes macacos não sejam habilidosos.


 

Jeffrey e eu acocorámo-nos e ficámos à escuta. O ar encheu-se do som de mastigadelas estridentes. Um animal emitiu um som gutural. Ouvi guinchos parecidos com gritos de corvos. Os geladas formam cidades de primatas itinerantes, organizando-se em grupos com várias centenas de animais. Comunicam utilizando um dos maiores reportórios vocais de qualquer primata não-humano. A sua “conversa” em estalidos com os lábios pode até indiciar que os ruídos faciais foram precursores do discurso humano. Para documentar o seu comportamento e dinâmica familiar, os investigadores dão nomes memoráveis aos geladas.

Tiny Astral, por exemplo, é famosa por provocar discussões, passando junto dos macacos maiores, agachando-se de seguida atrás da progenitora, Autumn, agindo como uma menina mimada e malvada. Lydia não é a melhor mãe para Lobelia, por isso a irmã de Lydia, Lox, assume com frequência essa posição. Quando Lydia abandona a cria, o que acontece muitas vezes, Lox deixa Lobelia andar às suas cavalitas.

As fêmeas formam uma irmandade, deslocando-se em unidades reprodutoras que integram um macho ou um punhado deles. Os geladas não são monogâmicos, pelo que os encontros entre machos costumam ser intensos. Vejamos o caso de Reverend Lovejoy. Quando este líder avistava a cria de um rival num local com capim de qualidade, punha-se a gritar. Batia as pálpebras e enrolava os lábios para cima. Mostrava assim os caninos impressionantes, semelhantes a punhais. Os geladas não se servem destes dentes para caçar: utilizam-nos para impressionar e lutar. Reverend Lovejoy corria para assustar os mais novos, mas depois o seu rival intervinha. Confrontavam-se, bufando, até um dos rivais desistir.

Os investigadores de Guassa, oriundos da Etiópia e do estrangeiro, têm acompanhado as minudências da vida quotidiana de quase quinhentos indivíduos. Vigiam a sua actividade, estudam as relações, registam nascimentos e documentam mortes, mas ainda há muito por descobrir sobre os geladas. Em 1974, uma revolução depôs Haile Selassie e a guerra civil dificultou o trabalho de campo. No início da década de 1990, levantamentos populares afastaram o partido dirigente, o Derg, e os cientistas regressaram. Ainda não se sabe quantos geladas restam hoje. Algumas centenas de milhares? Dezenas de milhares? A maior parte do país foi transformada em campo de cultivo. Existem demasiadas explorações agrícolas e demasiada erosão para sustentar a diversidade do capim. O número de geladas é elevado nas montanhas Simien, mas essa região setentrional está dominada pelos animais de criação. Muitos predadores naturais desapareceram do local. Nas Terras Altas, os cientistas encontraram pequenas populações de macacos sobreviventes, mesmo quando cercados por explorações agrícolas. Mas por quanto tempo?

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Os molares especializados do gelada não têm comparação com os de mais nenhum primata vivo, ajudando os macacos a mastigar erva.

Em Guassa, a situação é diferente. Há carnívoros em abundância. O regime alimentar dos geladas costuma ser composto por 90% de capim, mas aqui comem mais de sessenta tipos de plantas. Reproduz-se assim uma dieta talvez equiparável à dos primeiros hominídeos. O Theropithecus está a ajudar os cientistas a perceber de que forma o antepassado humano Paranthropus boisei poderá um dia ter prosperado alimentando-se de vegetação semelhante. “O estudo aqui dos geladas não é igual à investigação noutros locais”, diz Jeffrey.
“É uma janela aberta para tempos passados.


 

Admassu fita-me, com um sorriso paciente e enviesado. Eu, ele e Jeffrey estamos a patrulhar. Subimos e descemos pequenos outeiros. Caminhamos entre a vegetação rasteira. Procuramos ladrões. Temos de continuar. Ainda faltam quase vinte quilómetros.

Admassu gere o Gabinete de Conservação de Guassa. Protege-a daqueles que poderiam prejudicá-la. Ninguém vive em Guassa, mas existem 45 mil habitantes nas redondezas. Os residentes plantam cevada, lentilhas, batatas e, por vezes, trigo. Criam vacas e ovelhas e queimam o esterco dos animais para cozinhar o pão ázimo típico da Etópia, a injera. Pequenos grupos agrícolas elegem representantes para vigiar a paisagem. Os gestores encerram zonas de pasto durante meses ou anos até a festuca (o capim que dá nome a Guassa) estar viçosa e pronta a cortar. Mas isso não inibe ninguém. Ladrões munidos de foices atravessam os montes, cortando ilegalmente o capim para vendê-lo em locais tão distantes como Debre Birhan. Os caçadores ilegais desenterram as raízes de plantas com flor para utilizá-las como lenha. Por vezes, Admassu segue os criminosos com equipas de batedores. Os batedores patrulham frequentemente o local com ele. Quando está sozinho, porém, Admassu usa as suas habilidades furtivas. Parece um fantasma furioso.

A ética de planeamento do território seguida em Guassa está enraizada em lendas e na religião. No final do século XVI, segundo relatos orais, dois cristãos ortodoxos coptas, Asbo e Gera, chegaram a Guassa. Ambos se apoderaram das suas riquezas. Montaram a cavalo e dividiram a terra no ponto onde o primeiro garanhão caiu. As comunidades dividiram-se em paróquias que respondiam perante um líder eleito que protegia o capim a todo o custo. Sem uma gestão forte, a partilha de recursos costuma ser inviabilizada por actos individuais egoístas. A pressão interpares e a colaboração com a Igreja parecem ter dado o seu contributo em Guassa. A preservação era uma obrigação quase espiritual. Os aldeãos orgulhavam-se do seu trabalho de guarda. As estações de pasto terminavam em feriados religiosos.
(“Geralmente quando estes tipos de propriedades comunitárias dependem do apoio de instituições sagradas, tornam-se elas próprias sagradas”, sublinhou o cientista etíope Zelealem Tefera Ashenafi, perito em Guassa.) E, quando tudo o resto falhava, havia homens como Admassu.

O seu trabalho também comporta riscos. Bandidos atravessam o local, vendendo armas abandonadas pela guerra civil ou pelos conflitos com a Eritreia. Admassu já foi alvejado e atacado com pedras. Um caçador furtivo armado com uma faca tentou lutar com ele. Homens embriagados que frequentam bares na vila vizinha de Mehal Meda já lhe juraram morte.

Actualmente, os ladrões costumam enfrentar multas ou penas de prisão, mas aqui a memória estende-se por longos anos e a história nunca parece muito remota. Durante séculos, as penalizações foram brutais para gerarem dissuasão. As multas eram pagas em peles de leão ou sementes de couve, ambas inexistentes em Guassa. Por isso, as autoridades espancavam e excomungavam os caçadores ilegais. As vacas que pastavam ilegalmente no local eram abatidas e as suas peles esticadas e oferecidas à igreja para fabrico de tambores. As casas com telhados de capim roubado eram incendiadas.

Recomeçamos a andar. Um quilómetro depois, Admassu aponta uma fogueira recente. Em redor, o solo está chamuscado. Andaram por aqui caçadores furtivos. Admassu dirige-se para um ponto alto e examina o planalto. “Não estão aqui”, afirma. Pergunto-lhe se acha que vai apanhá-los. Ele encolhe os ombros e senta-se. Sem vigilância, comenta, o roubo do capim seria desenfreado. Agricultores com vacas doentes entrariam em pradarias fechadas. À medida que o prado encolhesse, os macacos roubariam mais alimentos das explorações agrícolas. O processo reproduzido mil vezes conduziria a um aumento no número de macacos mortos.

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Os geladas reúnem-se em grupo para se aquecerem. A obtenção de calorias suficientes a partir de capim e de sementes dá muito trabalho. Por isso, eles passam a maior parte do dia deslocando-se sobre as nádegas, libertando as mãos para arrancar mais capim.


 

Dobramos um cruzamento. Empoleirado numa rocha junto de uma moita, um francolim estende o olhar sobre o vale. Andei junto deste local com Jeffrey alguns dias antes. De repente, a ave imobilizou-se, assustada. Um grande felino malhado correra para o mato. Não era um cerval, suspeitava, mas um leopardo. Penso nisso agora, bem como neste lugar. Resta apenas uma fracção de vegetação autóctone das Terras Altas na Etiópia, mas Guassa continua a ter diversidade ecológica. Este ecossistema sobreviveu a revoluções, ocupações, fome e corrupção. Perdurou sobre governos nacionais. Reunidas as condições certas, a conservação local funciona. Mas os ecossistemas são frágeis. O governo do Derg e as mudanças subtis ocorridas desde então sugerem a facilidade com que tudo pode ser desfeito.

Os agricultores de guassa não gostam dos macacos. Os aldeãos toleram-nos. Os geladas inteligentes trepam para cima de pilhas de cevada acabadas de ceifar para se banquetearem. Os aldeãos perseguem macacos esfomeados que assaltam as culturas. Quando o capim é bem gerido, há quantidade suficiente para humanos e macacos. Segundo alguns aldeãos, o capim não era minimamente gerido quando o Derg estava no poder.

Certa manhã, eu e Jeffrey caminhámos sob chuva miudinha, descendo um trilho íngreme para visitar Tasso Wudimagegn, agricultor e batedor do Projecto de Investigação Gelada de Guassa. Ele assistira a uma transformação em Guassa.
E também passara por uma.

No interior da sua casa, a mulher preparava café em lume aberto. Sentámo-nos sob paredes revestidas com páginas rasgadas de revistas, mostrando imagens de jogos de basebol, de crianças sorridentes e de praias serenas. Em miúdo, ele desprezava os geladas. Culpava o Derg, que nacionalizara terrenos e desmantelara a supervisão de Guassa, por incitar o ódio.

O pastoreio e o corte aumentaram. Muitos agricultores defendiam que os prados tinham diminuído. Devido ao aumento da pressão humana no seu território de alimentação, os geladas atacavam explorações agrícolas com maior frequência.

Com 5 ou 6 anos, Tasso tentava afugentar os macacos. As crianças gritavam e atiravam-lhes pedras, mas os geladas mostravam-lhes os dentes e as crianças fugiam. Quando cresceu, começou a construir armadilhas. Batia nos geladas com um bastão etíope chamado dula.

Actualmente, Tasso envergonha-se desses maus-tratos. “Era errado pensar assim”, afirmou. A supervisão de Guassa corre melhor do que nunca, mas a comunidade está a mudar. O sistema de propriedade mudou. Em tempos governada pela Igreja e limitada aos descendentes dos fundadores, a guarda de Guassa é agora mais laica, mais aberta a recém-chegados que não partilham a sua história. A dinâmica que faz a conservação funcionar é a percepção de que todos estão no mesmo barco.
Actualmente, porém, o ressentimento está a crescer e o sentimento de pertença a desaparecer.

Tasso admitiu que por vezes olha para as paredes com desejo de mudança. As revistas mostram “sítios melhores”, diz ele. Quer mudar-se para a cidade, ganhar dinheiro, dar uma educação melhor aos filhos. É uma história universal: os seres humanos pessoas querem a vida que os outros têm.

Depois de uma caminhada esgotante de nove horas, eu, Admassu e Jeffrey chegamos ao fim de Guassa. Apanhamos boleia até Mehal Meda. Pelo caminho, vemos uma paisagem diferente: hectares de campos agrícolas e terra desagregada a perder de vista, com lotes arados e encostados uns aos outros, num mar de culturas. É este o aspecto da maior parte das Terras Altas, resume Jeffrey Kerby.

Em Guassa evitou-se esse destino em parte porque as populações mantiveram o controlo e estabeleceram regras claras, criando uma supervisão rigorosa e firmando compromissos com os utilizadores. Elinor Ostrom, vencedora de um Prémio Nobel, descobriu que estratégias semelhantes também encontram sucesso em aldeias agrícolas suíças, florestas japonesas ou bancos de pesca de lagosta de Nova Inglaterra. Esforços comparáveis estão a ser empreendidos na Namíbia para proteger a vida selvagem. Guassa contou durante séculos com a ajuda da altitude e do isolamento para manter os estranhos à distância. Agora, porém, existem novas pressões. O Derg desapareceu, mas outras regiões do país voltaram a registar instabilidade política. As alterações climáticas tornam as terras altas ainda mais propícias à agricultura. Em 2050, a população da Etiópia poderá ser dez vezes superior à de 1950, ascendendo a 188 milhões.
O rendimento aumenta, mas um terço dos etíopes ainda vive em condições de pobreza extrema.

Ao regressar a Guassa, vejo uma pradaria repleta de geladas. Na última década, foram instalados cabos eléctricos, postes telefónicos e uma estalagem rudimentar. A vida aqui é dura e as oportunidades são escassas. O desenvolvimento, o ecoturismo e o acesso a mais mercados poderiam retirar as pessoas da pobreza e modernizar a economia. Mas isso constituirá um teste para a região.

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Quando a noite cai em Guassa, os geladas irrompem numa corrida em direcção aos penhascos onde dormem. Passarão a noite empoleirados em saliências rochosas, tentando manter-se a salvo de leopardos, hienas e cães selvagens.

De regresso ao acampamento numa das minhas últimas noites, eu e Jeffrey seguimos os macacos enquanto eles se deslocam em formação cerrada sob o sol poente. Um a um, entre guinchos e grunhidos, os geladas regressam aos penhascos íngremes, onde ficarão agrupados até de madrugada sobre saliências rochosas estreitas. Aperfeiçoada ao longo de milénios, esta prática protege-os de hienas esfomeadas ou outros predadores nocturnos quando dormem. Enquanto vejo os retardatários avançarem num trote lânguido, é difícil evitar uma sensação de desconforto. A evolução preparou os nossos companheiros primatas para várias ameaças, mas não haverá esconderijo possível para aquilo que estamos prestes a fazer-lhes.