Não se assume como fotojornalista, nem tem pretensões a sê-lo. Contudo, a sua dedicação, ao longo dos últimos cinco anos, à captura fotográfica da actividade nocturna de grande parte dos mamíferos da nossa fauna, é pioneira e revela os seus hábitos... enquanto dormimos. Gonçalo Rosa lançou agora um novo site de fotografia Goncalorosaphoto.com.
Entrevista Gonçalo Pereira
Quando começou o seu trabalho com as células?
Em 2011 e tem decorrido ininterruptamente até agora.
Qual era o objectivo definido à partida?
Passava por reportar as espécies mais emblemáticas da fauna portuguesa, sem estar demasiado preso ao seu estatuto de conservação. Interessava-me tanto fotografar espécies raras como espécies mais fáceis, mas muito importantes para as restantes, como o coelho. Nas martas e nas fuinhas, espécies visualmente muito semelhantes, pensei que bastaria ter apenas uma. No caso dos morcegos, à excepção de uma ou duas espécies mais diferentes, o público tende a não conseguir diferenciá-las. Duas espécies com orelhas muito amplas distinguem-se, mas as outras são morfologicamente parecidas. Eu queria captar estes animais com enquadramentos especiais e diferentes entre si para contar as suas histórias.
Foi muito difícil dominar as capacidades para fotografar no mundo nocturno?
É acima de tudo uma questão de escolha do local, de controlo da iluminação e do enquadramento, mas é perfeitamente exequível. E, de facto, desde o início decidi que me interessava fotografar animais no seu respectivo ambiente, de modo a que, com a fotografia, possa dispensar as palavras.
Como selecciona os sítios?
É a minha observação prévia de campo. Durante um ano, em cerca de 90% dos dias, as máquinas não saem do carro. A prospecção passa pela procura de indícios para interpretar que animal passa ali, como passa e supera obstáculos e o padrão de passagem – se é diurno ou nocturno, se é ocasional ou regular. Se eu o perceber, posso controlar a fotografia. Noutros casos, tento travar o animal, forçá-lo a enveredar por um ponto ligeiramente mais afastado, que me convenha mais.
A maioria das fotos resulta de actividade nocturna.
Porque os animais da fauna portuguesa têm actividade nocturna, embora com alguma movimentação crepuscular ou diurna.
Já perdi câmaras mas nunca por roubo. Perdi por fogos e por cheias.
Que factores influenciam a escolha de um cenário?
Quando sabem que eu faço fotoarmadilhagem, perguntam-me sempre se não receio que me roubem o material. Na verdade, nunca aconteceu. Já perdi câmaras mas nunca por roubo. Perdi por fogos e por cheias. Não vou atrás de um animal que queira fotografar. Normalmente, quero fotografar grupos de animais e identifico as regiões onde eles ocorrem. Procuro então uma área que me dê condições de segurança para montar um set. Para os morcegos, monto e desmonto o set em duas ou três noites; para a outra fauna, porém, o set chega a ficar montado durante um ano no campo e faço monitorização uma vez por mês, o que implica a selecção de um local traquilo e seguro.
Há riscos?
Vários. O set pode ser perturbado ou destruído por um evento inesperado – um ramo partido, vegetação alterada. Mas também tenho de ponderar outro risco: alguém que encontre as máquinas com má intenção pode usá-las para fins terríveis. Se alguém vê o cartão e percebe que andam lá lobos, no dia seguinte, é tudo incendiado. Não há bicho mais odiado em Portugal.
Em situação normal, quantos sets tem montado em simultâneo?
Varia muito. A carga máxima são onze armadilhas diferentes, com cerca de sessenta câmaras. Nos lobos, tenho de ter muitas armadilhas em simultâneo porque o retorno é escasso e esta [Setembro] é uma das melhores épocas para eles. Neste momento, tenho dez no terreno. Monitorizo-as mês a mês, embora tenham autonomia para dois meses.
Abri a caixa numa das últimas monitorizações e fui de imediato picado por quatro ou cinco vespas.
Nos intervalos de monitorização, não tem maneira de saber se está a ser bem ou mal-sucedido?
Não. É sempre uma surpresa e um acto de fé! Encontro regularmente surpresas desagradáveis, variáveis que não se comportaram como esperava. Na última vez, tinha uma caixa montada para proteger a câmara porque ela está exposta ao frio, ao calor, à chuva e precisa de alguma protecção. Tenho uma caixa há seis meses numa charca onde javalis e veados tomam banho. É uma caixa preta, com dois furos mínimos para a saída do cabo dos flashes e do cabo da célula. Abri a caixa numa das últimas monitorizações e fui de imediato picado por quatro ou cinco vespas. Tinham passado pelos orifícios e construído o vespeiro no interior. É daquelas coisas imprevisíveis e improváveis que acontecem. Como cair uma giesta da grossura da minha perna, levando consigo todo o set. Estaria no limite da probabilidade, mas aconteceu.
Esse é o carácter imprevisível de um projecto como este?
Claro. Há muito que percebi que não posso controlar todas as variáveis, nem prever por completo a fotografia que dali resultará. Algumas das minhas melhores fotografias ocorreram com animais que eu não esperava em movimentos não antecipados. Claro que há coisas que melhoraram: quando comecei a trabalhar com armadilhas, a autonomia era de cinco horas; hoje em dia, é de dois meses em condições normais. Fui eu que evoluí e a tecnologia também. Eu não podia montar um set às 10 horas da noite e regressar lá às 3 da madrugada. Passei depois para dois dias, o que também era curto. Hoje, avancei para dois meses, até porque sempre que um ser humano lá vai deixa cheiro que os animais reconhecem.
Isso é palpável?
Os animais têm um olfacto quase inconcebível para nós. Muito superior ao nosso. Sentem o suor no equipamento. Sentem substâncias que nós não distinguimos. Sentem a diferença de cheiro entre dois seres humanos. É o suficiente para um lobo ficar alerta. Vê o flash, vê a câmara – eu camuflo ao máximo, mas a óptica tem de ficar liberta. Ele cheira algo diferente, vê esses elementos estranhos e contorna. E o lobo, já por si, vagueia por sítios complexos, escarpados, o que apresenta dificuldades acrescidas, tanto mais que a área a iluminar tem de ser ampla, pois o próprio animal ocupa um espaço maior do que o dos outros carnívoros.
Que percentagem da fotografia que vai captar consegue prever a priori?
Quando comecei, naturalmente fiz pesquisa e consultei o trabalho de quem já fazia armadilhas, mas as realidades são diferentes. Há animais para os quais o set não tem de ser camuflado e que até pode partir tudo quando lá chega. E um factor inesperado – mas que faz sentido agora – é que os fotógrafos consagrados contam os sucessos, mas não os insucessos. E portanto quem começa tem de desbloquear problemas por si.
No caso de uma gineta, até consegui uma coisa engraçadíssima, que foi captá-la a dormir.
Quais foram esses problemas?
O uso de infravermelhos requer experiência. Ao usar infravermelhos, temos basicamente uma lanterna e um sensor: a lanterna emite luz que não temos capacidade de ver, mas que os animais conseguem; e o sensor que, ao sentir o foco de luz, dispara. O animal foge a sete pés, mas a fotografia fica captada. A dificuldade é domesticar este sistema, de forma a que a passagem do animal ocorra no ponto exacto onde o queremos e não dependente de outras variáveis. Há muito que aceitei que há factores que não controlo e percebi que perderia uma panóplia de fotos valiosas se tentasse ir sempre em busca da foto perfeita. Tento prever o tipo de passagem que ali ocorrerá, mas sou sempre surpreendido. No caso de uma gineta, até consegui uma coisa engraçadíssima, que foi captá-la a dormir. Parece uma ironia porque o equipamento dispara com o movimento, mas, com um dispositivo muito sensível de infravermelhos passivos, qualquer movimento de cabeça ou da barriga faz disparar a máquina! E criou-se ali uma fotografia imprevista.
Fale-me da taxa de sucesso desta técnica.
O retorno é muito baixo com esta técnica. Um fotógrafo que trabalhe com macros consegue material bom com muito menos esforço e mais rapidez; um fotógrafo que use um abrigo numa zona húmida também. Mas eu aceito essa limitação. Posso passar um mês sem produzir uma fotografia utilizável e isso obriga-me a ser resistente ao fracasso. Mas esta é a técnica que abracei e que me dá particular prazer por me forçar a entender os animais e os seus comportamentos.
Quero fotografar os animais no seu contexto, agindo com naturalidade.
Qual é a sua primeira preocupação?
Tento respeitar os bichos. Uma gineta não anda aos saltos. Salta quando está em pânico. Não me interessa nela a foto invulgar, mas sim aquela que representa o seu comportamento regular: a caçar, a mover-se. Essa é a barreira que eu não quero ultrapassar. Quero fotografar os animais no seu contexto, agindo com naturalidade.
Em 2015, teve a sorte e o talento para encontrar um novo roedor em território português…
Foi sorte. Calhou. Não estava à procura desse ratinho. Mas acho que o que deve ser realçado nesse caso é a ausência de conhecimento que ainda persiste sobre a nossa fauna. Nas aves, há muito voluntariado; no caso dos mamíferos, ninguém faz isto porque gosta. O normal é haver um projecto de investigação, um acompanhamento durante determinado tempo, seguido de novo desinteresse. E o caso da nova espécie de rato para território português é exemplar do muito que ainda não conhecemos.
Qual foi a espécie que provocou maiores dificuldades?
As que ainda não fotografei. Ainda não penso no lince porque os esforços de reintrodução estão a começar e estão ainda muito focados numa zona complexa do país – o concelho de Mértola –, com limites de acesso a propriedades, onde não desejo trabalhar. Mais para a frente se verá, até porque, se eu fotografasse agora um lince, captaria o animal com um colar e, para mim, um lince com um colar é um gato! Não o quero neste projecto. Percebo a relevância científica, mas ainda não me interessa trabalhar com essa espécie. Preocupa-me mais não ter toupeira-de-água. Ela exige afinamento dos sets. Tenho câmaras preparadas para trabalhar com células debaixo de água, mas ainda não consegui dedicar-me a essa espécie. Neste momento, estou concentrado no lobo no Norte e, na Companhia das Lezírias, com os texugos.
No mesmo sítio onde consegui lobo, conseguira raposas, ginetas, javalis, veados e martas.
Qual a fotografia que lhe deu mais gozo?
A primeira que consegui com um lobo. Demorei imenso tempo a afinar variáveis e a perceber o animal. Durante muito tempo, percebi que não tinha desenvolvido todos os skills necessários. No mesmo sítio onde consegui lobo, conseguira raposas, ginetas, javalis, veados e martas. Pensava que já não podia utilizar mais aquele local porque ele estava “gasto” até porque não costumo repetir cenários – não é honesto. Mas um dia passaram lá lobos. O sistema captou a imagem de um lobo no momento em que começava a nevar, caíam os primeiros flocos. Deu-me particular prazer.
Trilhando um caminho diferente, tem de alguma maneira a responsabilidade de abrir um novo horizonte de fotografia de natureza.
Mas não penso assim. Coloco a questão de outra maneira. Penso no exemplo do comportamento dos veados. Metade da actividade do animal decorre durante a noite, mas a esmagadora maioria das imagens representa o animal durante o dia. É um paradoxo. De alguma maneira, proponho-me mostrar essa metade escondida. O mesmo para javalis. Ou para sapos. Descontando o exagero, é como fazer um filme sobre trutas e representá-las apenas nos raros momentos em que elas saltam fora de água. E eu acho que essa distorção interfere com a própria visibilidade do animal: um leitor que veja 40 fotografias de veados durante o dia concluirá obviamente que o animal só está activo durante o dia.