falcões

O xeque Butti bin Maktoum bin Juma al Maktoum, membro sénior da família real do Dubai, posa com alguns dos seus falcões preferidos. O xeque contribuiu para introduzir alterações importantes na falcoaria do Médio Oriente, trocando as aves selvagens por aves criadas em cativeiro.

A luz azul da madrugada revela os contornos sombreados do deserto da Arábia, enquanto o xeque Butti bin Maktoum bin Juma al Maktoum e o seu filho se ajoelham para orar.

A areia está fria e vêem-se os rastos das caminhadas nocturnas de uma raposa do deserto. Ali perto, as silhuetas de 12 pequenos pilares marcam a base de uma duna, no topo da qual um homem instala uma mesa para chá. Ao fundo, é possível avistar o brilho da linha do horizonte do Dubai, uma antiga povoação isolada transformada em cidade portuária hipermoderna pelo xeque Rashid bin Saeed al Maktoum, avô do xeque actual. 

Ao fundo, uma cascata de preocupações e obrigações aguarda o xeque Butti: decisões administrativas, negócios de imobiliário, assuntos da família real, pedidos de consultoria de vários locais do Médio Oriente e mais além. No entanto, tudo isto está a um mundo de distância. Aqui, na paisagem silenciosa dos seus antepassados beduínos, o xeque encontra paz junto dos seus falcões.

Estamos em Setembro e os falcoeiros dos Emirados Árabes Unidos (EAU) treinam afanosamente as aves para a caça e para a temporada de corridas que se avizinha. Todos os dias, o xeque Butti, o filho Maktoum e o seu séquito levantam-se às quatro horas da manhã e conduzem mais de uma hora até ao deserto para treinarem as suas aves, antes que o calor se torne escaldante.

À medida que o céu vai clareando, reparo que os 12 pilares são falcões encapuçados, pousados em poleiros, aguardando em silêncio o treino do dia. Há falcões-peregrinos em tons de chocolate e nata, falcões-gerifaltes com pintas brancas, sacres castanhos-claros e híbridos de diferentes espécies. O grupo integra linhagens europeias, asiáticas e outras provenientes de regiões selvagens do Árctico. Estas são apenas algumas das centenas de aves do xeque e compõem, possivelmente, uma das mais requintadas colecções de falcões de todos os tempos. 

Pani, um dos assistentes do xeque, oferece-me uma chávena de chá e apressa-se a preparar o isco para o primeiro falcão a treinar. “Bom dia, Howard”, diz o xeque ao homem careca e magro ao meu lado. Howard Waller, de 57 anos, é o seu criador de falcões, amigo e confidente. A voz do xeque é animada e entusiástica e os dois homens iniciam uma conversa animada sobre falcões, saltitando de tópico em tópico.

Falam sobre as aves que ali estão, equipadas, e de outras que vivem nos aviários do xeque. Discutem os méritos das dietas à base de codorniz e pombo, da forma adequada para desenvolver massa muscular, dos pormenores de doenças como a aspergilose e a pododermatite ulcerativa. Distinguem os juvenis que demonstram personalidades agressivas daqueles que parecem passivos. Também comentam boatos sobre aquisições de outros falcoeiros do Dubai e novidades das comunidades de falcoaria de países vizinhos, como a Arábia Saudita, o Qatar e o Bahrein. Prevêem, com entusiasmo, as respostas um do outro e comunicam usando termos ininteligíveis para qualquer outra pessoa.

Falam nas suas aves preferidas: Delua, Dedo Branco, Velho Bedford e, claro, o falecido Hasheem e as linhagens que deles derivaram, cada qual com a sua própria combinação genética de esquemas de cores e personalidades. E depois há a Branca. As suas vozes vibram de emoção ao mencionarem a Branca, uma ave com um ano que poderá ser o falcão mais belo que qualquer deles alguma vez viu na vida.

Foi assim todas as manhãs durante as quase duas semanas que o xeque, amavelmente, me deixou observar as suas sessões de treino, acompanhado pelo fotógrafo Brent Stirton. Antes de os primeiros raios de sol cruzarem a linha do horizonte, os dois falcoeiros caminhavam deserto adentro – apenas os dois – imersos na sua conversa.

O Dubai tem um centro comercial inteiramente dedicado às necessidades de falcões de caça e de corrida.

Nos últimos 20 anos, o xeque Butti e Howard contribuíram para alterações importantes na falcoaria árabe. Cruzam e criam à mão cada ave que usam, uma prática que se considerava impossível antes de falcões-peregrinos criados em cativeiro serem cruzados com sucesso em 1942 pelo falcoeiro do líder nazi Hermann Göring, Renz Waller (sem qualquer relação de parentesco com Howard). Também é uma prática que Howard e o xeque Butti consideram ter grandes repercussões para a conservação dos falcões, numa altura em que várias espécies enfrentam ameaças, desde a perda de habitat ao tráfico ilegal de animais selvagens.

Assim que o Sol se torna uma bola cor de laranja no horizonte, a conversa termina abruptamente e a sessão de treino inicia-se. Maktoum, de 27 anos, calça uma pesada luva de cabedal e retira delicadamente do poleiro um dos falcões encapuçados, um jovem peregrino. Entra num Toyota 4x4 e conduz algumas centenas de metros. O xeque Butti segura aquilo que parece uma cana de pesca com uma corda presa na extremidade e uma asa de codorniz atada ao fim da corda e começa a abanar a vara, desenhando arcos amplos com a asa esvoaçante.

Lá ao fundo, Maktoum desaperta o capuz de cabedal da cabeça do falcão e liberta-o. A ave bate as asas e sobe na atmosfera límpida e fresca, detectando imediatamente o isco e voando na sua direcção, com a cabeça seguindo os arcos da asa oscilante. O xeque Butti grita-lhe: “Ha!” O falcão ganha altitude, descreve uma curva apertada e mergulha sobre o isco; no último segundo, porém, o xeque afasta a asa de codorniz. “Ha!”, chama o xeque. O falcão ziguezagueia desajeitadamente enquanto corrige a trajectória. Quando me sobrevoa, consigo ouvir o silvo suave do batimento das asas. Os seus olhos (oito vezes mais aguçados do que os do ser humano) estão fixados no isco como raios laser. O falcão ganha altitude e mergulha. O xeque volta a puxar o isco no último segundo. 

Por fim, à terceira tentativa, o xeque Butti deixa a ave capturar a asa e pousar com ela na areia fina. Pani substitui rapidamente o isco por um peito de codorniz e o falcão começa a desfazer a carne fresca.
O xeque dá instruções explícitas sobre a quantidade exacta que a ave pode comer. Se comer demasiado, o peregrino ficará gordo e lento. Se não comer o suficiente, não ganhará músculo.

“É um jovem macho”, diz Howard. “Ainda está a aprender como se caça. O segredo é não o deixar ficar frustrado. Queremos que ele apanhe o isco antes de desistir.”


 

falcões

Um beduíno do século XIX posa com os seus falcões. Durante milénios, beduínos capturaram falcões enquanto migravam através da península Arábica. Os nómadas ensinavam as aves a caçar animais selvagens durante uma temporada e depois soltavam-nos. Fonte: ADOC-PHOTOS/ART RESOURCE,  NOVA IORQUE

O xeque e o filho repetem o treino com cada um dos falcões. As aves mais velhas fazem as mais novas parecerem amadoras. Maktoum leva-as para um local mais distante, libertando-as a cerca de quilómetro e meio de distância. Elas sobem sem esforço, como se fossem imunes à gravidade. Apresentam trajectórias de voo muito mais eficientes e estratégicas, com as asas batendo, aplanando e curvando-se para envolver o ar, girando e mergulhando atrás do isco rodopiante. À semelhança dos pilotos da Força Aérea, algumas aproximam-se com o Sol a erguer-se atrás de si, aproveitando o brilho para cegar a “presa”. Outros pouco se afastam do solo, aproximando-se por trás dos veículos estacionados, utilizando-os para bloquear o campo de visão da presa antes do voo final.

Delua, uma fêmea de gerifalte cinzenta, até usa Brent como cobertura. Agachado com os joelhos na areia, Brent está a fotografar o xeque Butti quando o falcão faz uma razia sobre o seu ombro, tocando com a ponta da asa no seu cabelo enquanto progride até ao isco.

É um exemplo visceral da razão pela qual os falcões são caçadores tão mortíferos. Em estado selvagem, o gerifalte pode exceder 95 quilómetros por hora voando em linha recta. Em voo picado, um falcão-peregrino pode atingir 385km/h, o que a torna momentaneamente a criatura mais veloz do planeta. A tais velocidades, até uma ave com poucos quilogramas consegue desferir um golpe violento. “Parece um relâmpago com penas”, resume Howard.

 Os historiadores não sabem ao certo em que época os seres humanos começaram a capturar aves de rapina e a treiná-las para caçar animais que não conseguiam matar com flechas ou capturar com armadilhas. Referências no poema pré-clássico A Epopeia de Gilgamesh sugerem que a falcoaria já existia no actual território do Iraque pelo menos há quatro mil anos. Ao longo dos séculos, a prática de capturar e treinar falcões proliferou em diversas culturas do mundo conhecido. O rei Tutankhamon foi enterrado usando um pendente com um falcão. Os gregos cunharam moedas retratando Zeus com um falcão. Um dos primeiros falcoeiros japoneses, uma mulher, escreveu um tratado sobre o tema. Os mercadores nórdicos comercializaram gerifaltes da Islândia em toda a Europa e a economia da cidade holandesa de Valkenswaard dependia quase exclusivamente do comércio de falcões.

Quando Marco Polo visitou Kublai Khan no século XIII, o governante mongol tinha 60 empregados para supervisionar dez mil falcoeiros. Entretanto, na Europa, o imperador Frederico II, do Sacro Império Romano-Germânico, investiu 30 anos da sua vida na compilação de um estudo científico exaustivo sobre falcoaria que ainda hoje é considerado um dos mais respeitados livros sobre a história e técnica deste desporto.

Contudo, nenhuma região tem mais pretensões sobre a prática do que a Arábia, onde residem mais de metade dos falcoeiros actualmente existentes no mundo. Embora a falcoaria (que também inclui gaviões, águias e outras aves de rapina) fosse o desporto de eleição dos reis europeus, era uma ferramenta de sobrevivência essencial no deserto da Arábia. 

Os beduínos capturavam falcões e treinavam-nos para caçar animais selvagens no deserto. Antes da chegada das armas de fogo, as aves aumentaram consideravelmente a capacidade dos beduínos para obter alimento para a família e, no ambiente implacável do deserto, qualquer grama de proteína era essencial. Com a expansão do islão, a falcoaria era tão importante para a cultura árabe que o profeta Maomé a refere especificamente no Alcorão, declarando que o alimento capturado pelos falcões é puro, podendo ser consumido pelos muçulmanos.

No século XX, porém, o rápido desenvolvimento do Dubai e dos restantes emirados quase extinguiu a prática nos EAU. O número de abetardas diminuiu acentuadamente à medida que os seres humanos invadiam o seu habitat e a caça desta ave acabou por ser proibida. Só os ricos podiam dar-se ao luxo de sustentar falcões e de viajar ao estrangeiro para caçar abetardas na Ásia Central e no Norte de África.

No início da década de 2000, o príncipe herdeiro, xeque Hamdan bin Mohammed bin Rashid al Maktoum, introduziu a corrida de falcões como desporto e forma de tornar a falcoaria acessível aos cidadãos comuns. As aves são cronometradas enquanto perseguem um isco a uma distância previamente definida. O evento mais importante da temporada de corridas, que decorre entre Dezembro e Janeiro, é a Taça do Presidente, uma competição com um prémio de seis milhões de euros.

A importância das corridas é evidente no Dubai, onde a popularidade das aves aumentou em flecha. É possível encontrar poleiros em salões de entrada de hotéis e edifícios de escritórios por toda a cidade. Os falcoeiros levam as aves doentes ao hospital dos falcões. O Dubai tem um centro comercial inteiramente dedicado às necessidades de falcões de caça e de corrida.

Certa tarde, eu e Howard visitamos o centro comercial dos falcões. Enxames de clientes, muitos dos quais transportando aves encapuçadas sobre os pulsos enluvados, examinam a mercadoria de comerciantes que vendem de tudo, desde comida para falcão (pombos e codornizes congelados) e vitaminas para falcão, minúsculos transmissores para localizar aves perdidas e capuzes de cabedal pintados à mão, importados de Espanha e Marrocos. Até existe uma loja especializada em aviões telecomandados pintados de forma a parecerem abetardas para ensinar os jovens falcões a caçar. 

O centro comercial também tem uma clínica para falcões, onde conheço um jovem vestido com a tradicional dishdasha branca comprida e um falcão-peregrino no braço, seguido pelos seus dois filhos pequenos. “O falcão está doente?”, pergunto-lhe. “Não. Vai fazer exames de rotina”, responde-me o homem. “Ele vai correr!”, diz um dos rapazes. “Ele vai ganhar!”, garante o irmão. O homem sorri, cheio de orgulho.

Eu e Howard dirigimo-nos a uma zona do centro comercial onde se vendem falcões e Howard caminha lentamente entre os poleiros, inspeccionando as aves encapuçadas. Há peregrinos e sacres, as espécies habitualmente preferidas pelos falcoeiros sauditas, e outros falconídeos listrados pequenos: aves para principiantes. Ele pergunta aos proprietários qual a proveniência das aves e cada vendedor aponta para documentos com selos oficiais, mostrando o país de origem da ave.

A alta velocidade, um gerifalte com poucos quilogramas consegue desferir um golpe violento. “Parece um relâmpago com penas”, brinca o falcoeiro Howard Waller. 

Howard acena com a cabeça num sinal de aprovação. “Está muito melhor agora”, diz. Afaga as penas do peito dos falcões e examina as suas patas. “Estas aves parecem bastante saudáveis, sem stress excessivo. Costumava ver muitas aves em mau estado que tinham sido contrabandeadas do Paquistão ou da Rússia através da Síria”, acrescenta. “Mas o governo pôs fim a isso. Agora todas as aves que entrem ou saiam dos EAU precisam de ter o seu próprio passaporte.”

Apesar dos esforços locais, o contrabando de falcões ainda é preocupante em várias partes do mundo. Os conservacionistas asseguram que os sacres e os falcões-peregrinos são capturados nas suas migrações através do Paquistão e contrabandeados para o Médio Oriente. Gerifaltes de regiões árcticas da Rússia também são caçados furtivamente. Destas espécies apenas o sacre está actualmente listado como ameaçado ou em perigo, embora alguns relatórios assegurem que as populações de gerifalte parecem estar a diminuir em certas zonas. Os conservacionistas temem que o comércio ilegal, juntamente com a diminuição do habitat dos falcões (sobretudo no Árctico devido às alterações climáticas) possa pôr em perigo a sobrevivência das aves a longo prazo.

Segundo Howard Waller, estas preocupações constituem uma das principais razões pelas quais o xeque Butti se mostra tão empenhado em contribuir para a criação de falcões, uma actividade que recentemente alargou à Escócia.

 Howard está com pressa porque são horas de alimentar os falcões e tem cerca de duzentas aves esfomeadas à sua espera. Estamos em finais de Maio e vamos a caminho da unidade de criação de falcões do xeque Butti, na zona costeira da Escócia. Howard conta-nos que, quando era novo, na Rodésia, devorava todos os livros sobre aves que conseguia encontrar e que, mais tarde, depois de emigrar para a África do Sul, começou a acolher aves de rapina feridas ou órfãs. Com o tempo, tornou-se um falcoeiro devoto.

Foi numa viagem ao Dubai em 1998 que um amigo o apresentou ao xeque Butti e este ficou intrigado com o facto de Howard considerar que poderia criar e treinar falcões nos EAU. “Todos os veterinários com quem falara disseram que era impossível criar falcões no deserto, quanto mais ensinar [aves criadas em cativeiro] a caçar aqui”, conta Howard. Outros falcoeiros locais tentavam também criá-los, mas com pouco sucesso.
Na primeira época de criação, o xeque e Howard conseguiram chocar mais de vinte ovos de sacre e criaram 15 até estes atingirem a maturidade. No ano seguinte, duplicaram esse número.

À medida que as notícias deste êxito se espalhavam, os falcoeiros locais começaram a enviar-lhes aves postas de parte – falcões considerados impossíveis de treinar ou com doenças como pododermatite ulcerativa severa (uma infecção potencialmente mortal nas patas) ou com penas de voo irremediavelmente emaranhadas. Howard recusou-se a desistir de qualquer ave. Avaliou a personalidade de cada uma, colando cuidadosamente penas partidas nas asas com supercola e tratando pacientemente a pododermatite ulcerativa. Vários falcões doados a Howard tornaram-se caçadores hábeis e juntaram-se ao grupo de aves de criação do xeque.

Há alguns anos, o xeque e Howard decidiram alargar a sua actividade e abriram uma segunda unidade na Escócia, mais perto dos climas nativos dos peregrinos e dos gerifaltes e de outros criadores de falcão com os quais poderiam trocar linhagens genéticas. Todos os anos, o xeque reserva várias aves novas para ensinar a caçar e outras para criar, oferece algumas a familiares e amigos e vende as restantes a outros falcoeiros.

Chegamos a casa de Howard, localizada num ponto alto de onde se avista o mar do Norte. Os falcões esfomeados estão à espera e o ar ecoa com os seus guinchos estridentes. Dirigimo-nos a um pequeno complexo atrás da casa e entramos numa sala frigorífica cheia de codornizes e pombos. Howard pega num balde generosamente cheio de peitos e visitamos dezenas de salas com casais reprodutores de peregrinos e gerifaltes, cada um com dois ou três pintos. Howard põe a carne numa pequena prateleira e vemos os machos voarem até lá, pegarem na carne e levarem-na às fêmeas. O casal alimenta as crias barulhentas por turnos.

Howard também cria híbridos – metade peregrinos, metade gerifaltes – recolhendo esperma dos machos e inseminando artificialmente as fêmeas. “Os gerifaltes são aves inteligentes, muito mais espertas do que os peregrinos”, diz Howard. “Podem ter personalidades de diva, mas se os cruzarmos com peregrinos, obtemos uma ave caçadora grande e forte, mais fácil de manusear e mais resistente a doenças.”

Numa das salas, vejo um gerifalte branco, sem uma pinta de castanho ou cinzento. É a preciosa Branca. Durante milénios, os historiadores debateram a obsessão por gerifaltes brancos puros. Estas aves especiais foram usadas como resgates para reaver aristocratas raptados, iniciar negociações diplomáticas internacionais ou como dotes em casamentos da realeza. Nas Cruzadas, o sultão Saladino recusou mil ducados de ouro oferecidos por Filipe de França para lhe devolver o seu gerifalte branco puro, que atravessara as linhas de combate.

Não é apenas a beleza da ave que entusiasma Howard e o xeque Butti. A Branca revelou-se uma caçadora destemida. “Ela não é apenas um falcão de exposição”, diz Howard. “É tudo aquilo com que sonhamos numa ave.” Para ele e para Howard, a ave representa mais do que um mero troféu. Descende de uma linhagem de gerifaltes que remonta a um dos falcões com problemas, uma das causas perdidas que Howard acolheu no fim da década de 1990. A Branca é a prova viva de que os falcões selvagens não são melhores do que os criados em cativeiro. A coerência do sucesso do xeque a caçar com os seus falcões criados em cativeiro ao longo dos anos levou outros falcoeiros a procurarem aves criadas em cativeiro. Alguns investiram nos seus próprios programas de reprodução. 

O derradeiro objectivo de Howard e do xeque é libertar na natureza gerifaltes criados em cativeiro para aumentar o seu número em algumas zonas do Árctico onde se regista um declínio. É uma prática que tem salvado peregrinos. Em 1970, devido ao uso generalizado do pesticida DDT, o falcão-peregrino praticamente desapareceu dos Estados Unidos. Tom Cade, ornitólogo e falcoeiro, fundou o Peregrine Fund e recrutou falcoeiros em toda a América do Norte para ajudarem a salvar a espécie. Os seus esforços incluíram a libertação de seis mil aves criadas em cativeiro. Actualmente, a população de peregrinos é robusta. “Um dia, gostaríamos de libertar na natureza a maioria das aves que criamos”, diz Howard.

Depois da alimentação, Howard conduz-me a um edifício que alberga os animais marcados: falcões criados a partir de ovos inseminados artificialmente. Com o tempo, estes falcões passam a reconhecer a pessoa que os alimenta como progenitor. A sala está repleta de gaiolas de plástico com pequenas crias marcadas no interior. Howard pega numa malga de carne de pombo e codorniz, acabada de picar, dá-me uma pinça de aço e mostra-me como encher as goelas com carne, suavemente.

Depois de todas as bocas alimentadas, dirigimo-nos à sala de incubação. Howard pega num ovo que parece prestes a eclodir. Há uma racha minúscula na fenda que o pinto está a tentar romper. “Por vezes, são demasiados fracos. Quebrar a casca faz parte do teste imposto pela natureza para eliminar os mais fracos”, diz. Dá uma pancada ligeira no ovo e leva-o ao meu ouvido. Ouço um som ténue e delicado, mas inconfundível, como um sinal de rádio fraco vindo de outro planeta. Howard afasta com os dedos a gema peganhenta. A ave parece um pedaço de carne húmido e cor de rosa com uma penugem prateada. Esforça-se por levantar a cabeça. É quase impossível imaginar esta criatura inofensiva a planar, um dia, pelo céu como senhor dos ares. Por fim, o pinto abre um olho e o mais recente gerifalte do planeta olha para Howard Waller, o seu novo progenitor.

A National Geographic associou-se em 2018 à National Audubon Society, à BirdLife International e ao Laboratório Cornell de Ornitologia para comemorar o centenário do Tratado das Aves Migratórias.