Ainda há escuridão e a temperatura está muito abaixo de zero quando Kristie Leavitt pára o carro e desliga o motor barulhento do ATV. Por breves instantes, não se ouve qualquer som, com excepção do ténue sussurro do vento soprando sobre o gelo. O céu azul-marinho começa a aclarar.

Kristie sente o ar frio a queimar-lhe os pulmões.

Bem agasalhada num casaco rosa-choque, que condiz com a sua barraca e equipamento de pesca, ela sai do veículo para o gelo com meio metro de espessura que cobre este recanto do lago Munuscong, na região da península Superior, no estado de Michigan. As suas botas esmagam ruidosamente uma camada fina de neve enquanto ela começa o ritual de preparar uma das suas actividades preferidas: a pesca no gelo.


Kristie é um dos quase dois milhões de pescadores no gelo dos Estados Unidos que passam   o ano inteiro a ansiar pelo frio do Inverno. À semelhança de tantas outras pessoas da região dos Grandes Lagos, ela também depende do frio para subsistir. Ajuda a gerir as cabanas turísticas e a loja de iscos da família, situadas na margem do lago, e o grosso da facturação do negócio faz-se durante a época de pesca no gelo e dos passeios em moto de neve.

Mas aquilo que Kristie fazia naquele dia de Fevereiro foi algo raro no último Inverno nos Grandes Lagos. A média da cobertura de gelo a longo prazo nos cinco lagos (Superior, Michigan, Erie, Huron e Ontário) é de 54%. No último Inverno, o gelo cobriu apenas 19,5% da superfície dos lagos, um valor mínimo quase recorde.

Alguns lagos da região nem sequer congelaram. Outros tiveram meros vestígios de gelo junto das margens ou congelaram durante pouco tempo. No fim-de-semana antes da incursão de Kristie, as temperaturas na região subiram para 4,5ºC e os pescadores no gelo arrastaram-se pela lama vestindo T-shirts.

No Inverno passado, o gelo cobria apenas 19,5% das superfícies dos Grandes Lagos, um valor próximo do recorde mínimo.

Uma estação demasiado quente não anuncia necessariamente uma nova tendência climática, mas os cientistas conseguem, cada vez mais, detectar padrões em registos dispersos de alterações na região dos Grandes Lagos e esses padrões apontam para uma conclusão arrepiante: o Inverno de 2019-2020, com os seus ténues vestígios de gelo, foi, provavelmente, uma amostra do que acontecerá no futuro.

mapa sem gelo

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História definida pelas condições climáticas

Os grandes lagos dos Estados Unidos e do Canadá epresentam cerca de 20% da água doce existente à superfície da Terra. A pegada geográfica dos lagos também é difícil de conceber: as suas superfícies combinadas abrangem mais de 243 mil quilómetros quadrados, o tamanho aproximado do Reino Unido. A soma das margens dos cinco lagos é milhares de quilómetros superior à orla costeira do Pacífico ou do Atlântico dos Estados Unidos.

A presença da água foi moldada por alterações naturais do clima da Terra. Agora, porém, os lagos enfrentam alterações sem precedentes e, desta vez, os seres humanos têm responsabilidades no assunto.


O planeta aqueceu, em média, quase 1ºC desde a década de 1880. A região dos Grandes Lagos acompanha essa tendência global: na bacia hidrográfica, as temperaturas atmosféricas aumentaram, em média, 0,9ºC em comparação com os primeiros 60 anos do século XX. E muito desse aquecimento tem-se concentrado nos meses de Inverno, empurrando o gelo rumo ao ponto de viragem.

As épocas de gelo dos Grandes Lagos estão a encurtar, em média, meio dia por ano.

“O gelo lacustre é um fantástico indicador do clima”, afirma Sapna Sharma, especialista em ecologia lacustre da Universidade de York. Fornece uma “indicação clara das alterações climáticas e muitas comunidades já o registam, em alguns casos, há séculos”.

No Japão, os sacerdotes de um templo xintoísta mantêm um registo com quase seiscentos anos de quando o seu lago congela na totalidade. Os ciclos climáticos naturais emergem desse registo, perdendo importância, nas últimas décadas, perante o aquecimento de origem humana que assolou o planeta. Mercadores que utilizam o rio Tornio, na Finlândia, para a sua actividade comercial têm registos das datas em que o gelo quebra, em cada ano, a partir de 1693. No lago Superior, as companhias de navegação mantêm registos da formação e decomposição do gelo desde 1857. Os registos mostram os anos frios com grandes extensões de gelo no início da estação e os anos quentes com menos. Em geral, contudo, são um sinal evidente do aquecimento induzido pelo ser humano desde a Revolução Industrial.

“O que está a acontecer na região dos Grandes Lagos é uma pequena página de uma grande história”, diz Lesley Knoll. Especialista em lagos da Estação Biológica de Itasca da Universidade de Minnesota, ela estuda as relações culturais entre os seres humanos e os lagos congelados.

Ameaça aos rituais idílicos de Inverno

Para Kristie Leavitt, de 38 anos, o gelo foi sempre o lugar onde a vida ganhava sentido.

Quando a sua família vinha, de automóvel, do Sul do estado de Michigan para visitar os avós, que na altura eram proprietários do acampamento à beira do lago, Kristie vestia camadas de roupa quente, ia buscar uma geleira com vairões à loja de isco e caminhava o mais longe possível sobre o gelo. Pegava na broca manual, cortava um canal no gelo espesso e abria um portal para o silencioso mundo subaquático.

Naquele tempo, quando Kristie era uma criança, tudo parecia simples. Ela levava o pouco equipamento que tinha para o gelo, empoleirava-se num balde de 20 litros virado ao contrário e permanecia sentada horas a fio, fazendo subir e descer a cana. Não apanhava muito, mas as sensações ficaram-lhe gravadas no cérebro, como a essência do Inverno.


Kristie Leavitt não é a única. O gelo oferece benefícios para aqueles que se aventuram nele: descanso para alguns, diversão preciosa a outros, alimento e muito mais. A neve e o gelo também são componentes essenciais das economias locais desta região. A prática de esqui no gelo e de moto de neve valem quase três mil milhões de euros. Um único torneio de pesca no gelo pode injectar centenas de milhares de euros nas comunidades. Em algumas regiões do lago Superior, contudo, a época do gelo tem vindo a encurtar, em média, quase um dia por ano. Isto significa que, no ano em que Kristie nasceu, um Inverno no lago Superior teria mais um mês de cobertura de gelo do que hoje. O lago também está a aquecer mais depressa do que quase todos os outros grandes lagos da Terra.

As diversões de Inverno injectam milhões de euros nas economias locais junto das margens dos lagos.

Nos outros Grandes Lagos, as épocas de gelo também estão a encurtar cerca de meio dia por ano, em média. Isto pode parecer pouco, mas mascara alterações muito mais importantes num local onde a fronteira entre a existência de gelo, a ausência de gelo, a neve e a chuva pode ser extremamente ténue.

Em alguns casos, é difícil perceber as alterações com clareza porque há uma enorme variação de ano para ano, diz Jia Wang, um climatologista da Agência Nacional para a Atmosfera e os Oceanos que estuda a cobertura de gelo na região dos Grandes Lagos. Embora situados a centenas de quilómetros dos oceanos, os lagos sentem as influências climáticas do Pacífico e do Atlântico e incorporam esses padrões climáticos nos seus.

Por conseguinte, embora um ano possa ser mais quente do que o anterior, alguns invernos recentes foram gelados. Em 2013-14, o vórtice polar trouxe ar gelado do Árctico para a região continental dos EUA e o frio propagou-se muito para sul dos Grandes Lagos. A cobertura total de gelo nos Grandes Lagos foi superior a 90%, sendo tão espessa em alguns sítios que as brocas usadas pelos pescadores no gelo não alcançavam a água.

A parte mais  problemática  é que  a presença e crescimento de gelo nos lagos a cada Inverno pode desencadear uma sequência de eventos complexa.

Talvez faça frio suficiente para o gelo se formar no início do Inverno, mas se o vento forte mantiver a superfície da água agitada, o gelo  formar-se-á mais tarde. Talvez o Verão anterior tenha sido excessivamente quente, introduzindo calor adicional suficiente na água, que demora mais tempo a arrefecer e a chegar ao ponto em que consegue começar a congelar. Talvez caia um nevão no princípio da estação, isolando o gelo existente no topo, impedindo-o, contra-intuitivamente, de crescer depressa com as temperaturas frias.

O nível de água dos lagos atingiu recordes este ano, devido ao aumento da precipitação.

Há outros factores menos complexos. A atmosfera está a ficar mais quente. A água também, em alguns locais até mais depressa do que a atmosfera. No hemisfério norte, quase 15 mil lagos que congelavam repetidamente, congelam agora intermitentemente e alguns não chegam mesmo a congelar.

“Parece que algo está errado”

O inverno é vital para a região dos Grandes Lagos. O futuro trará mais e menos. Há mais calor no ar, retido nos gases com efeito de estufa que os seres humanos continuam a emitir para a atmosfera. Os especialistas em clima prevêem que as temperaturas atmosféricas da bacia dos Grandes Lagos aumentem mais meio grau até 2045 e aproximadamente 3 a 5,5ºC até 2100. Também há mais calor na água, introduzido à força durante os verões longos e quentes.

Contudo, alguns cientistas prevêem que se registem 15 a 16 dias com temperaturas abaixo de zero na bacia dos Grandes Lagos até ao final da década de 2030 e que esse número aumente um pouco na década de 2050. No final do século, dependendo da duração e da agressividade das medidas climáticas aplicadas, poderá haver menos 27 a 42 dias por ano com temperaturas abaixo de zero, na opinião dos cientistas.

Em 2015, no acordo climático de Paris, 195 países signatários concordaram em tentar impedir que o aquecimento planetário ultrapassasse 2ºC para lá dos níveis pré-industriais. Sharma estima que, mesmo que esses objectivos sejam cumpridos, mais de 35 mil lagos no hemisfério norte poderão perder o seu gelo permanente no Inverno. Nos cenários mais catastróficos, mais de duzentos mil lagos poderão ter mais anos sem gelo.

“O gelo e a água têm uma memória longa”, diz Richard Rood, que estuda a forma como as alterações climáticas evoluem na região dos Grandes Lagos. “Estamos a assistir a aumentos sistemáticos da temperatura a longo prazo, aproximando-nos mais do ciclo da água congelação-degelo. E os invernos ficam mais quentes e mais curtos. Por isso, já não há o tempo que havia para a termodinâmica fazer o seu trabalho.”

Nos cenários catastróficos, mais de 200 mil lagos do hemisfério norte poderão ter mais anos sem gelo.

Se a água não arrefecer o suficiente durante o Inverno, aquecerá mais e mais depressa na Primavera e Verão. Com o tempo, sobretudo à medida que o clima continuar o seu aquecimento inexorável, o sistema poderá alimentar-se cada vez mais num ciclo fechado que se reforça a si próprio.

“A certa altura, estas zonas que talvez desenvolvam gelo em certos períodos e noutros não, vão mudar e nunca mais desenvolvem gelo”, assegura Knoll. “Como irão as pessoas interagir com essas massas de água quando elas não desenvolverem gelo nenhum? Como irão ajustar-se?”

Kristie Leavitt hesita quando começa a falar no futuro. Aos seus olhos, o mundo continua coberto de gelo. Cada ano traz mais uma oportunidade de frio. De vez em quando, porém, a preocupação surge. “Às vezes, simplesmente não sei”, diz enquanto se prepara para pescar, com fios de cabelo soltos em redor do seu rosto empenhado. “Será que tudo isto ainda vai existir quando eu tiver 70 anos?”