A maioria das pessoas acredita numa única forma de ver as avestruzes, herdada dos desenhos animados: são aquelas aves grandes que enfiam a cabeça na areia  em momentos de crise, pensando que se não conseguem ver o perigo, o perigo não conseguirá vê-las.

Na nossa colecção de estereótipos, as avestruzes tornaram-se assim o arquétipo do animal limitado. Até a Bíblia assegura que elas são tontas, além de más progenitoras.


A ideia da cabeça na areia já é antiga. Tem cerca de dois mil anos e foi inventada pelo naturalista romano Plínio, que por vezes escrevia crónicas falsas. As avestruzes têm pernas compridas e ossudas e um tronco suspenso no ar, semelhante a um grande casco flutuante de carne e penas. O pescoço é parecido com um periscópio, encimado por uma cabeça em forma de cunha com olhos maiores do que os de um elefante, a três metros de altura. É uma anatomia improvável para resolver problemas enfiando a cabeça na areia.

No entanto, as avestruzes baixam mesmo a cabeça até ao nível do solo (e não abaixo deste) para se alimentarem de plantas ou tratarem dos ninhos. Os seus pescoços são leves e flexíveis, com 17 vértebras cervicais, enquanto nós temos sete.

Deslocam-se facilmente para cima e para baixo, de um lado para o outro e da frente para trás. Os seus olhos gigantes ajudam-nas a vigiar atentamente o mundo em redor.

E têm boas razões para se manterem alerta. Para começar, são basicamente galinhas sobredimensionadas em habitats povoados por leões, leopardos, hienas, mabecos e chitas esfomeados. As avestruzes adultas são demasiado impressionantes para constituírem uma caçada fácil: um único pontapé pode partir ossos. No entanto, elas são melhores a fugir do que a lutar, pois atingem uma velocidade de ponta de 70 quilómetros por hora.

As avestruzes são no fundo galinhas sobredimensionadas em zonas povoadas por leões, leopardos, hienas e chitas. Mas cada pontapé seu pode quebrar ossos e elas conseguem correr a quase 70 quilómetros por hora.

Outro factor que as mantém alerta é o perigo enfrentado pelas crias. As avestruzes constroem os ninhos em simples clareiras no solo, em espaços abertos, onde os ovos podem ser desfeitos em mil pedaços por um elefante desastrado ou por qualquer predador esfomeado. O sucesso requer uma sorte improvável. A maior ave do planeta precisa de impedir que o seu ninho seja detectado durante mais de dois meses, desde o momento em que que põe os primeiros ovos até à sua eclosão. O fracasso é frequente e é essa a força motriz para o engenhoso comportamento comunitário de nidificação.

Estamos no Parque Nacional de Tarangire, no Norte da Tanzânia. São 2.850 quilómetros quadrados de colinas secas e planícies cobertas de capim ao longo do rio Tarangire. Muitos elefantes vivem aqui em grandes manadas, juntamente com zebras e milhares de gnus. As avestruzes também são comuns, mas difíceis. Junto-me a Flora John Magige, ecologista especializada no comportamento das avestruzes, da Universidade de Dar-es-Salam, enquanto ela procura ninhos.

A nossa primeira descoberta é um fracasso. Há nove ovos dispersos no mato, numa zona com cerca de 25 metros de perímetro. Flora examina a área como um detective numa cena de homicídio. A dispersão foi, mais provavelmente, obra de um predador esfomeado, mas não grande, porque todos os ovos estão intactos. Talvez um chacal? Seja como for, o macho e a fêmea mudaram de sítio, como frequentemente fazem quando um ninho é perturbado. É possível que voltem a nidificar juntos.


As avestruzes são incorrigivelmente promíscuas, pois os machos e as fêmeas estabelecem relações com múltiplos parceiros. Da perspectiva evolutiva, a multiplicação de parceiros é uma forma de conseguir DNA diversificado e de compensar o facto de a maioria dos ninhos fracassarem.

É assim que às 10h30 de uma manhã encontramos um par a acasalar a cerca de quinhentos metros da estrada principal do parque. Quando se separam, o macho começa a andar, seguido da sua consorte mais recente e de mais duas fêmeas. Uma delas não tarda a pedir a sua atenção, afastando as asas do corpo e abanando-as como se fossem pompons. Na época de acasalamento, as fêmeas podem gerar um ovo a cada dois dias. Contudo, a escassez de machos é frequente, talvez porque cada um defende ciosamente o seu território, o que obriga os outros a migrar.

avestruz

Ilustração: Christina Shintani e Taylor Maggiacomo. Fontes: Uicn; Brian Bertram; Flora John Magige, Universidade De Dar-Es-Salam

O macho ignora-a. A sua caminhada leva-os ao longo de um caminho serpenteante, junto de acácias dispersas e embondeiros atarracados. Junto da estrada, a fêmea volta a tentar, com as asas a oscilar. Um veículo de safari passa velozmente pela estrada, lançando uma nuvem de poeira sobre esta demonstração romântica. O macho continua a andar. Sem se deixar esmorecer, ela arranja uma desculpa para se atravessar à frente dele, de asas baixas e a tremer.

“Mas ele não está convencido”, explica Flora. O processo de sedução dura mais de uma hora.

Descem até uma praia de areia no rio Tarangire. Quando ela se afasta, ele deixa-se cair no solo, finalmente apaixonado. De seguida, ele executa todo o ritual pré-copulatório, parecendo um guitarrista a abanar a cabeça: as asas a espiralar, o corpo a abanar loucamente de um lado para o outro, a cabeça tão projectada para trás que bate nas costelas. Catapum de um lado, catapum do outro. Ela continua a andar, mostrando-se agora indiferente. Por fim, juntam-se no leito seco do rio. Ele contorce-se sobre ela durante um ou dois minutos, enquanto ela se senta como uma esfinge, digna, com a cabeça bem erguida no ar. No momento de maior êxtase do macho, ela vislumbra qualquer coisa saborosa na areia e estica-se para comer.


Depois, todos comem e bebem durante algum tempo junto do rio, numa espécie de piquenique de avestruzes. Viramos as costas para irmos também almoçar e, quando fazemos uma pausa para as observar pela última vez, as três fêmeas estão de novo a aproximar-se do macho, de asas abertas e a tremer suavemente.

Seguimos este grupo de avestruzes na esperança de elas nos conduzirem a um ninho, mas um ninho de avestruz pode ser difícil de ver, mesmo que saibamos exactamente onde está. Por norma, o macho cuida dele durante a noite, sentando-se de cabeça erguida. A fêmea assume o posto de dia. Quando deita as penas da cauda para trás e o seu longo pescoço para a frente, pode parecer um simples monte de térmitas ou um toco de árvore. Por vezes, a forma mais fácil de encontrarmos um ninho é sentarmo-nos e esperar que apareça outra avestruz de visita, o que acontece com frequência surpreendente.

Certa tarde, optamos por posicionar-nos numa planície aberta e não tardamos a descobrir um próspero território de avestruzes. Algures à nossa frente, encontra-se uma fêmea sentada no ninho.

O macho nidificante está a pastar a algumas centenas de metros à esquerda e não parece muito atento. No entanto, quando outro macho aparece a 750 metros de distância, ele começa a andar na sua direcção com uma atitude determinada e, depois, a correr. Tal como acontece entre os seres humanos, a promiscuidade e a possessividade podem coexistir: o macho nidificante pretende monopolizar os acasalamentos da parceira e isso implica afugentar os machos rivais.

O mais surpreendente é a forma como o casal nidificante reage às fêmeas que o visitam. Outras espécies desenvolveram mecanismos de defesa sofisticados para dissuadir “parasitas da ninhada”, aves que tentam fugir ao entediante trabalho da parentalidade colocando os seus ovos nos ninhos de outras aves. As avestruzes são diferentes. Quando outra fêmea se aproxima, é frequente a fêmea nidificante levantar-se e afastar-se, permitindo à visitante pôr os ovos ao lado dos seus.

Segundo alguns estudos, tipicamente, a fêmea nidificante só é a progenitora biológica de cerca de metade dos 19 ou 20 ovos que pode incubar com sucesso. Outras fêmeas, de estatuto inferior, contribuem assim para a ninhada. Trata-se de nidificação comunitária e, à semelhança da promiscuidade, é uma forma de as avestruzes alcançarem sucesso reprodutivo num mundo adverso.

Isto não significa que o mundo destas aves seja de amor perfeito. A fêmea nidificante pode não ter grande escolha, explica Brian Bertram, o biólogo que apresentou a primeira descrição pormenorizada da nidificação comunitária em 1979. A resistência a uma fêmea visitante pode conduzir a conflitos e atrair leões e outros predadores. Também pode quebrar os ovos, sobretudo os da fêmea nidificante, e o seu cheiro atrair hienas ou chacais.

A nidificação comunitária confere algumas vantagens egoístas ao casal nidificante, acrescenta Brian. Para o macho, as suas voltas pelo “bairro” significam que ele poderá ter produzido cerca de um terço dos ovos acrescentados pelas vizinhas. Quanto à fêmea nidificante, a existência de ovos adicionais no ninho dilui o risco. Ninguém sabe como consegue distingui-los, mas ela costuma manter os seus próprios ovos no meio do ninho, relegando os das outras fêmeas para aquilo a que Brian Bertram chama “o condenado anel exterior”. Ter mais pintos juntos após a eclosão também diminui as probabilidades de os seus serem mortos por um predador.

Um dos aspectos que mais me impressionou nas avestruzes, além do seu tamanho, foi a sensação de estarem sempre em movimento, mesmo quando paradas. Isto aplica-se à fêmea, em particular, porque a sua coloração acastanhada torna os tremores das penas mais visíveis. Em ambos os sexos, as penas são invulgarmente compridas e entufadas, sobretudo nas asas e na cauda. Além disso, ao contrário da maioria das aves, as suas penas não têm as barbicelas, minúsculos ganchos que mantêm as penas unidas e ordenadas. É isto que lhes dá a tendência cativante para enfunarem ao vento. A avestruz pode afrouxar as penas para ajudar a dissipar o calor corporal ou apertá-las para conservá-lo. Foi esse aspecto que fez a moda humana apaixonar-se pelas penas de avestruz vezes sem conta.

O caminho para o centro do comércio de avestruzes conduz-nos a uma passagem estreita de rocha vermelha nas montanhas de Swartberg, na província sul-africana do Cabo Ocidental. Debaixo daquela fenda natural, campos agrícolas semelhantes a mantas de retalhos estendem-se sobre um planalto semiárido circundado de montanhas irregulares. Little Karoo é a fonte, estranhamente distante e isolada, dos excessos emplumados das senhoras que frequentam as corridas de Ascot e das bailarinas de Las Vegas. No entanto, a zona em redor da cidade de Oudtshoorn é o centro do comércio mundial de avestruzes há mais de 150 anos.

A partir da década de 1860, quando o comércio de penas já empurrava as avestruzes para a extinção em algumas regiões, os criadores locais foram pioneiros da reprodução em cativeiro. A natureza comunitária das avestruzes poderá ter tornado estes animais mais receptivos à vida em cativeiro. A sua incapacidade para voar ou saltar também ajudou. Nos campos (ou “acampamentos”) delimitados por vedações de arame pela altura do peito, existem actualmente milhares de avestruzes, por vezes espalhadas como peças de xadrez emplumadas.

Durante a época de acasalamento, os trabalhadores recolhem ovos e transferem-nos para unidades de incubação artificial: 112 ovos por prateleira, 1.008 ovos por unidade, rodando lentamente, a 36 graus. “No dia 42, o pinto irrompe por uma bolsa de ar no ovo, inspira e reúne forças para partir a casca”, diz Saag Jonker, um proeminente criador local. Poderá viver um ano, se for criado pela sua carne e pele, ou até 15 anos, se for para penas, sendo estas arrancadas em intervalos de cerca de nove meses.

O comércio de avestruzes sempre foi um negócio imprevisível, pois os preços flutuam loucamente ao sabor dos caprichos da moda internacional. Neste momento, está num ciclo de baixa, e Saag Jonker e a mulher, Hazel, falam com esperança sobre o gosto de Kate Middleton por chapéus com penas de avestruz e sobre a possibilidade de a Louis Vuitton voltar a usar pele de avestruz nas suas malas.

A época áurea do comércio de avestruzes e de Oudtshoorn começou aproximadamente em 1870, estimulada pela procura de penas de avestruz para os chapéus das senhoras elegantes. As “mansões de penas” daquela época ainda alegram as ruas de Oudtshoorn com torres, alpendres e frisos requintados.

A carga mais valiosa do Titanic não era diamantes nem ouro, mas 12 caixas de plumas de avestruz, avaliadas em 1,97 milhões de euros a preços actuais, bem demonstrativo de como o comércio era próspero em 1912. Tudo isso acabou, porém, em 1914, quando a guerra e os automóveis descapotáveis tornaram desactualizados os chapéus grandes e emplumados.

Certo dia de manhã encontrei-me na cidade com Maurice “Mickey” Fisch, criador de avestruzes reformado e um dos últimos membros da comunidade judaica que, em tempos, dominou o comércio mundial de avestruzes de Oudtshoorn. Os imigrantes judeus, forçados a deixar a Europa devido à opressão política e económica, começaram a chegar em finais do século XIX.

“E os afrikaners receberam-nos de braços abertos”, lembra Maurice. Os primeiros imigrantes tornaram-se vendedores ambulantes, mas aqueles que se seguiram trabalharam frequentemente no comércio de mercadorias ou vestuário, e a diáspora permitiu o estabelecimento de ligações com comunidades de imigrantes nesses ramos em Londres, Nova Iorque e noutras grandes cidades. O comércio de penas de Oudtshoorn cresceu, em grande parte, devido a essas ligações, formando uma rede do comprador de penas, de língua yiddish, que viajava de quinta em quinta, aos artesãos que fabricavam produtos com penas de avestruz e aos vendedores a retalho que as vendiam. Na fase áurea do negócio, várias centenas de famílias judaicas viviam em Oudtshoorn.

Maurice Fisch abre um livro de história local e mostra-nos uma fotografia do seu avô e homónimo, Maurice Lipschitz. “Foi o maior criador de avestruzes do mundo”, diz. “Quando morreu, em 1936, tinha 35 quintas.” Montague House, a mansão de penas que construiu, tinha um salão de baile, uma adega e uma banheira com 1.500 litros de capacidade revestida a mármore de Carrara.

hienas comem ovos avestruz

Hienas-malhadas na Reserva Nacional de Masai Mara, no Quénia, banqueteiam-se com um ovo de avestruz. A maior ave do mundo põe os maiores ovos do planeta. Têm o tamanho de uma meloa madura e equivalem ao volume de duas dúzias de ovos de galinha. Para abrirem as cascas resistentes, os predadores têm de ser engenhosos. Por vezes, os chacais arremessam um ovo contra outro. Os abutres do Egipto atiram-lhes pedras.

A casa ainda existe, encontrando-se actualmente subdividida num restaurante, numa loja, numa residência e num consultório médico.

O comércio de avestruzes está nas mãos de uma cooperativa laica e o número de famílias judaicas diminuiu tanto que a sinagoga remanescente tem de chamar crentes dos arredores para conseguir reunir minyan, o quórum, para os serviços dos dias sagrados. Após 50 anos de criação, também Maurice Fisch abandonou o negócio das avestruzes e não sente saudades. A sua opinião das avestruzes ecoa a de Job em 39:16-17, que lhes chama “privadas” de sabedoria e indiferentes até ao bem-estar da sua própria descendência. As avestruzes, diz Fisch, são “aves estúpidas que se limitam a ter penas bonitas”.

Não lhe faço perguntas sobre as competências parentais das avestruzes, mas tenho a oportunidade de chegar à minha própria conclusão pouco depois. Numa manhã, na Reserva Natural de De Hoop, na extremidade meridional de África, vejo um macho e uma fêmea a alimentarem-se. Eles também me observam, mas passado algum tempo, descontraem-se e, como se recebessem um sinal, nove crias de avestruz saem dos esconderijos. São criaturas pequenas e redondinhas com uma ou duas semanas de idade, parecidas com dodós, de pescoços castanhos e sarapintados e penugem curta e eriçada no corpo. Começam a comer e os progenitores, seguindo-as de perto, fazem o mesmo.

Pouco depois, um trio assassino de babuínos atravessa o campo, aproximando-se. O macho fica furioso e corre em frente, afugentando-os. Os babuínos voltam, uma e outra vez, mas o macho bloqueia-os sempre. De seguida, um batalhão inteiro de babuínos aparece na clareira. Os pintos juntam-se, nervosos, enquanto as duas avestruzes adultas fitam os intrusos. Os babuínos passam por elas cautelosamente, desviando o olhar, como se uma sanduíche de avestruz fosse a última coisa que lhes passasse pela cabeça.

Mal os babuínos desaparecem de cena, desata a chover: uma chuvada costeira forte e súbita, batida a vento. O macho e a fêmea sentam-se imediatamente e levantam as asas enquanto as crias se aproximam a correr para se abrigarem. Há tantas enfiadas sob a asa esquerda do progenitor que parecem leitões a mamar. Depois as asas descem e elas desaparecem, completamente protegidas da chuva fria. Quando a chuva pára, a cabeça de uma das crias espreita entre as penas da asa e olha em redor, usando literalmente o progenitor como gabardina. É basicamente o oposto de enfiar a cabeça na areia. Como as condições atmosféricas já parecem aceitáveis, ela emerge, ainda quente e seca, regressando ao mundo.

Talvez não possamos chamar-lhe inteligência, mas sugere um certo génio para a sobrevivência. E eu afasto-me a pensar se não devíamos todos ser tão bons pais como elas.