Quando a National Geographic Society inaugurou Society apresentou a iniciativa Half Earth Day com a Fundaçao E.O. Wilson, o Parque Nacional da Gorongosa foi convidado a apresentar os resultados da sua actividade. No dia da comunicação do projecto, coube à jovem bióloga Dominique Gonçalves falar sobre o parque. Talvez naquele dia ninguém pudesse imaginar que, no palco, estava uma futura especialista em ecologia de elefantes.

Anos mais tarde, já distinguida como “fellow” da National Geographic, Dominique estuda uma população de animais com memória dos anos traumáticos, mas resiliente e em expansão. Numa área protegida, nenhum organismo pode ser concebido isoladamente e a investigação em curso para compreender a ecologia dos elefantes tem permitido saber mais sobre o ténue equilíbrio entre seres humanos e animais. “Não podemos criar ilhas de conservação”, diz.

Entrevista: Gonçalo Pereira Rosa

Como contactou pela primeira vez com o Parque Nacional da Gorongosa?

No final de 2014, o parque abriu um laboratório e um dos meus professores foi convidado para a cerimónia de abertura. Trouxe informações tão promissoras que me candidatei a um estágio. Depois de quase um ano, fui convidada a candidatar-me para o projecto de ornitologia e viajei para os Estados Unidos para estudar ornitologia. Regressei em Dezembro de 2015 como research fellow do programa de Ornitologia e, mais tarde, interessei-me pelo programa de Conservação de Elefantes, então coordenado pela investigadora Joyce Poole. Aprendi imenso durante um ano, acabando por interromper a experiência para iniciar um mestrado em conservação. Quando regressei, o meu director perguntou: "E agora? Tens de começar qualquer coisa.” E assim nasceu o Programa de Ecologia de Elefantes.

Animais complexos, com memórias acumuladas de traumas e de velhas rotas históricas, os elefantes são um dos emblemas da Gorongosa e o objecto da investigação de Dominique Gonçalves.

Sendo natural da Beira, já conhecia o Parque Nacional da Gorongosa?

Nunca tinha lá estado anteriormente, mas ouvira histórias em casa. O meu pai trabalhou nas florestas da região nas décadas de 1960 e 1970 com um cunhado que era madeireiro. O tio da minha mãe também tinha sido guia de caça quando a Gorongosa foi uma Reserva de Caça. Um dia, a minha mãe trouxe um jornal que descrevia o projecto de restauração do parque da Gorongosa. Despertou logo o meu interesse e, na universidade, abordava-se muito este exemplo de conservação.

Os elefantes são um dos emblemas do parque e uma das faces visíveis do que foi o colapso da fauna. Houve sempre elefantes na Gorongosa?

Os elefantes nunca desapareceram da Gorongosa. Durante o período colonial, haveria 2.500 elefantes, mas, mais tarde, na primeira contagem aérea, já se concluiu que existiam menos de 200 elefantes. Quando começou o projecto de restauração da Gorongosa, foram trazidos seis machos do Parque Nacional Kruger (África do Sul) para aumentar a diversidade genética. Iniciou-se também a protecção e limpeza da região, removendo cabos e armadilhas e protegendo os animais contra a caça furtiva.

Hoje qual é a estimativa populacional?

Diria que 800 a mil elefantes. As contagens aéreas têm sempre uma pequena margem de erro.

E esse aumento do efectivo aumenta necessariamente o contacto, para não dizer conflito com as populações residentes?

Sim. Não apenas por força do aumento da população, mas também devido ao habitat que essa população está a usar e que é igualmente usado por seres humanos. No momento mais crítico para a população de elefantes, os animais sobreviventes usavam os habitats nas imediações do acampamento principal, Chitengo, talvez por ser o lugar mais alto e terem mais protecção. Existiam mais fiscais nas imediações. Só que entretanto o habitat regrediu e os grupos de elefantes começaram a expandir-se. Aumentaram os contactos com comunidades em redor do parque que são extremamente dependentes da agricultura de subsistência. As machambas são cultivadas nas encostas do rio onde o solo é mais fértil. À medida que os elefantes crescem e se aventuram mais ou lembram-se de velhas rotas ancestrais, cria-se mais aproximação entre pessoas e elefantes. Houve conflitos, destruição de machambas ou propriedades e, em casos raros, até a morte de pessoas ou de elefantes. 

Uma das prioridades da área protegida é o combate à caça furtiva. Têm sido bem sucedidos?

O combate ao furtivismo é enquadrado nas actividades do Departamento de Conservação. A ideia central é a protecção da integridade de ecossistemas e habitats para assim proteger e manter a integridade dos animais contra a caça furtiva, o abate de árvores ou as queimadas. Já nem me lembro do número de cabos de aço que foram removidos ou de armadilhas desmanteladas. Estima-se que a caça furtiva reduziu 72% desde o início do projecto e os fiscais têm tido um papel muito importante. São membros da comunidade e isso ajuda, não esquecendo que o parque dá também às comunidades oportunidades de desenvolvimento, que modificam as atitudes.

Concebe uma capacidade de carga para as populações de elefantes da Gorongosa?

É difícil fazer essa segmentação. Por agora, temos uma estimativa de 24 famílias, mas isso só inclui fêmeas e alguns machos jovens. Haverá mais animais ali e, como as famílias se juntam e separam com o tempo, é complicado. A Gorongosa ainda tem muito espaço e recursos a oferecer aos elefantes, mas o plano fundamental é assegurar o futuro: não podemos criar ilhas de conservação. É fundamental assegurar corredores entre grupos para que exista um fluxo viável da população de elefantes que mantenha a diversidade genética, de habitats e do ecossistema. Acho que este é o futuro.

Um dos aspectos curiosos da investigação com os elefantes da Gorongosa foi a constatação de que estes animais mantinham uma memória muito persistente de conflitos e uma certa agressividade latente.

Foi de facto um dos estudos da Joyce. Os elefantes da Gorongosa não são tão dóceis como os de outros parques internacionais, onde não parecem importar-se com os turistas. Na Gorongosa, persiste aquilo a que chamamos “marcas do passado”, uma espécie de trauma. Esta população que estudamos é constituída por sobreviventes do tempo em que os elefantes eram dizimados e claro que tem pouca tolerância para pessoas ou automóveis.

Mas note-se que é também um comportamento protector para os animais mais novos. Demorará muito tempo a mudar, talvez gerações. Diria que agora são como as pessoas: têm marés. Um dia, estão mais à vontade; noutros dias, estão mal dispostos. Mas há diferenças. No início, os elefantes só tinham duas reacções: ou fugiam aterrorizados ou atacavam com toda a fúria. Agora pelos menos conseguimos ver que ainda tentam conviver por alguns minutos ou fogem sem pânico. O tempo vai curar essas marcas.

Do ponto de vista da ecologia, o que tem aprendido sobre os elefantes da Gorongosa em particular?

Temos monitorizado a população de elefantes com coleiras GPS. No início, era muito difícil encontrar os elefantes na Gorongosa para estudos de comportamento. Quisemos dar um passo atrás e obter maior ângulo de análise, abrangendo o conflito entre o homem e o elefante. A monitorização de duas dezenas de animais fornece muita informação. Nas fêmeas, por exemplo, a circunstância de conhecermos a posição de uma significa que ali perto estarão dez ou mais elefantes porque ela é a matriarca. Se uma matriarca conduz a família para um certo habitat, isso representa muito sobre o uso de habitat, onde há recursos, onde se sentem mais seguros, entre outras dinâmicas.

Analisamos também a relação entre a vegetação, a água e as mudanças sazonais. Nos machos, que são mais turbulentos, já começámos a identificar corredores de conflito e hotspots de problemas. Hoje, já conseguimos perceber se um deles se dirige para uma zona problemática e que estratégias de mitigação teremos de aplicar em tempo real. Ficámos muito intrigados também porque alguns machos deslocaram-se para muito longe das nossas comunidades, para lá da zona-tampão, onde também há muito mais pessoas.

Sei que já usam armadilhas fotográficas.

Há cerca de um ano e já conseguimos identificar alguns indivíduos e grupos, mas estamos no início de um projecto a longo prazo. Basta lembrar que, no Parque Nacional de Amboselli, há mais de 40 anos de dados acumulados sobre populações de elefantes. É uma das nossas inspirações. 

Dê um exemplo de uma estratégia de mitigação.

Em 2016 ou 2017, testou-se o uso de colmeias, tal como já se fazia no Quénia há muito tempo. Actualmente, o Parque Nacional da Gorongosa está a usar mais colmeias para funcionarem como vedações naturais do território, criando uma barreira natural para os elefantes e ajudando as comunidades com mais um mecanismo de subsistência. É simplesmente usar a natureza contra a natureza e tentar manter os elefantes fora das machambas, enquanto as comunidades tiram partido do rendimento do mel.

O que são os clubes de raparigas da Gorongosa?

“Clubes das Raparigas” é um programa pós-escolar desenhado para as meninas da zona-tampão com o objectivo de manter as meninas na escola, incentivando-as a concluir os estudos, adiar a gravidez e acabar com os casamentos infantis. O programa de Ecologia de Elefantes vai começar este ano a apoiar significativamente os programas de educação, sobretudos aos clubes de raparigas. Já o fazia no passado, mas sem muito planeamento. Simplesmente ia e visitava grupos de raparigas e falava com elas. Contava-lhes a minha história e procurava inspirá-las. Como agora consegui fundos, vou fortalecer o programa e organizar alguns role models, chamando mulheres e raparigas que trabalham no parque, oriundas de todas as comunidades. Talvez a história do nosso trabalho e dos nossos desafios possa inspirar mais meninas. Comigo, a minha maior inspiração foi a conservacionista Wangari Maathai. Um dia, um dos meus professores, um padre brasileiro, no Dia do Cinturão Verde [a iniciativa que Wangari Maathai fundou e expandiu pelo mundo fora], trouxe uma foto dela, contou a sua história e eu não conseguia acreditar que tudo começara com uma mulher africana...

É o valor do exemplo.

A minha paixão pelo ambientalismo começou aí e hoje tento contribuir também. Talvez metade das raparigas com que contactamos possa também inspirar-se.

De que modo a pandemia afectou a sua investigação?

Tenho estado retida em Inglaterra desde Março de 2020. Preparava-me para começar o meu trabalho de campo na Gorongosa com um estudo-piloto que ficou entretanto à espera de melhores dias. Não tenho ido a Moçambique, mas estou prestes a regressar a casa para retomar o trabalho. Durante o ano perdido, deveríamos ter colocado colares GPS em novos elefantes, mas prossegue a monitorização por câmaras e pelos colares antigos contudo com menos frequência. É uma sorte poder monitorizar os elefantes em qualquer lado onde esteja e contar com os colegas no terreno. Vamos recuperar o tempo perdido.