enguias

As enguias da Nova Zelândia são gigantes. Algumas medem dois metros e podem viver várias décadas. Os maori valorizam-nas como guardiãs de espaços sagrados. Estas fêmeas da Reserva de Vida Selvagem de Willowbank, na Ilha do Sul, podem ter 30 anos de idade.

Depois de viverem dezenas de anos em rios e em lagos, atravessam os oceanos e desovam em segredo. 

Na infância, os meus encontros com enguias aconteciam mais frequentemente em jogos de palavras cruzadas do que nas terras bravias. Por vezes, porém, víamo-las em carne e osso, quando eu e os meus amigos as apanhávamos por engano nas nossas pescarias. Pareciam estranhos alienígenas e até tínhamos medo de tirar o anzol das suas bocas.

Um dia, um velhote que pescava perto de nós disse-nos que eram peixes. Mas são peixes em tudo diferentes dos outros. 

Durante grande parte da minha vida, tive poucas oportunidades de prestar atenção às enguias. Um dia, porém, há seis anos, numa manhã fria de Novembro no estado de Nova Iorque, decidi seguir um sinal que dizia “Iguarias do Delaware, Fumeiro”. Desci um caminho sinuoso de terra batida e, atravessando uma floresta sombria de coníferas, encontrei uma pequena cabana empoleirada numa margem alta com vista para o braço oriental do rio Delaware. Um homem de barba branca pontiaguda e rabo-de-cavalo, parecido com um duende da floresta, saltou de trás da porta do fumeiro, feita de contraplacado. Chamava-se Ray Turner. 

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Do mar para o riacho. Os cientistas sabem onde algumas das 16 espécies e três subespécies de enguias de água doce desovam, mas nunca foi observada a reprodução de enguias em estado selvagem. As larvas de enguia deixam-se transportar pelas correntes oceânicas. Muitas enguias avançam mais para o interior. Anos mais tarde, as enguias adultas regressam para desovar e morrer.

Todos os verões, quando há pouca água no rio, Ray renova as paredes de pedra de um açude que afunila o caudal da água, fazendo-a passar por uma estrutura de madeira concebida para capturar peixes. Prepara-se assim para a descida das enguias, que ocorre durante apenas duas noites em Setembro, mais ou menos por altura da Lua nova, quando as enguias adultas nadam para jusante, rumo ao oceano. A descida coincide frequentemente com as marés provocadas pelas tempestades da época dos furacões, quando o céu está mais negro e o rio mais alto. Nas palavras de Rachel Carson, as enguias são “amantes da escuridão”.

Remámos rio acima numa canoa, partindo da casa de Ray em direcção ao açude. “Ali está a ‘Careca’”, diz apontando para uma águia-americana que voa em círculos a baixa altitude, sempre de olho na estrutura de madeira, tentando capturar um peixe antes de nós. Neste vale, o açude apresenta-se como uma obra impressionante de engenharia. Ray falava nele em termos metafóricos: “Este é o útero”, dizia, enquanto nos empoleirávamos na estrutura. “Ali estão as pernas”. Apontava para os pontões que se estendiam na diagonal em ambos os lados do rio. “Vê? É uma mulher. A vida do rio vem até aqui.”

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Jovens enguias transparentes espreitam no rio Pemaquid, no estado do Maine.

Quando a descida de Setembro corre bem, Ray pode capturar 2.500 enguias. “Todos os anos devolvo ao rio a ‘miúda’ maior”, contou-me. Partindo do princípio de que a enguia é fêmea e alcança o mar para desovar, ela poderá pôr até 30 milhões de ovos. Ray defuma as enguias e vende-as a turistas, restaurantes e retalhistas, lucrando até 15.500 euros por ano. “Acho que as enguias são a proteína de melhor qualidade: um sabor singular a peixe, fumeiro de madeira de macieira e um travo momentaneamente persistente a mel escuro de Outono. Todos os peixes que defumo, desde as trutas aos salmões, são de aquicultura. As enguias são selvagens. São como animais de criação ao ar livre.”

De volta ao fumeiro, Ray mostrou-me as suas câmaras em blocos de betão onde as enguias, limpas e mergulhadas numa marinada de sal, açúcar mascavado e mel local, estão penduradas em varas. Atrás de cada câmara fica um forno de 200 litros. Quando se liga o forno, Ray dirige o calor e o fumo para a câmara e as enguias são submetidas a temperaturas entre 70 e 80oC durante pelo menos quatro horas.

Abriu a porta das traseiras para entrarmos e passámos por pilhas bem arrumadinhas de lenha de macieira cortada à mão até chegarmos a um tanque de madeira, semelhante a uma pipa de vinho gigante cortada ao meio, coberto de musgo e pingando água das aduelas inchadas. Vi uma poça de água limpa. Ray agitou a água, revirando cerca de quinhentas enguias prateadas, com o diâmetro de uma moeda e com um metro de comprimento. Eram flexíveis e sen-suais, absolutamente mágicas.

As enguias de água doce, pertencentes ao género Anguilla, são peixes antigos. Começaram a evoluir há mais de 50 milhões de anos, ramificando-se em 16 espécies e três subespécies. A maioria dos peixes migratórios, como o salmão e o sável, são anádromos, desovando em água doce e passando a vida adulta em água salgada. A enguia de água doce é um dos poucos peixes que faz o oposto, desovando no oceano e passando a idade adulta em lagos, rios e estuários, um estilo de vida conhecido como catádromo. De um modo geral, as fêmeas de enguia encontram-se a montante nos sistemas fluviais, enquanto os machos permanecem nos estuários. As enguias podem passar décadas em rios antes de regressarem ao oceano para desovar e, de seguida, morrer. Até hoje, ninguém conseguiu testemunhar a desova das enguias de água doce e, para os biólogos, o mistério da sua reprodução continua a ser intrigante. 

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Desta vez, Yoshiaki Miyamoto capturou apenas uma enguia no lago Biwa, junto a Quioto. Os japoneses crêem que as enguias aumentam a energia e arrefecem o sangue no Verão.

Sempre nos disseram nas aulas de biologia que as enguias que capturávamos em riachos e lagoas emergiam de ovos à deriva na coluna de água, mais especificamente no mar dos Sargaços, a zona sudoeste do giro do Atlântico Norte. Sabemos agora que as enguias se reproduzem no oceano porque foram encontradas larvas à deriva junto à superfície a milhares de quilómetros da costa. As larvas de enguia eram consideradas uma espécie diferente da das enguias até 1896, quando dois biólogos italianos viram uma transformar-se em enguia dentro de um tanque.

As enguias desenvolvem esforços inexoráveis para regressar ao seu ventre oceânico. Faço esta afirmação baseado em experiência própria, uma vez que já tentei criá-las em casa. Na manhã após a primeira noite da minha tentativa, encontrei enguias contorcendo-se no chão da cozinha e da sala de estar. Depois de colocar uma rede de metal sobre o aquário, segurando-a com pedras pesadas, consegui contê-las, mas pouco depois esfregavam-se contra a rede e faziam lacerações. Uma morreu ao tentar escapar pelo filtro de escoamento. Quando vedei o filtro, as enguias começaram a bater com a cabeça contra o vidro até sofrerem algo semelhante a convulsões, morrendo. Desisti de criar enguias.

Estes peixes têm uma capacidade de deslocação assombrosa: aparecem em lagos e lagoas e em poças sem ligação visível ao mar. Sabe-se que, em noites húmidas, milhares de enguias atravessaram terra para transitar de uma lagoa para um rio, utilizando como ponte os corpos húmidos umas das outras. Já foram vistas enguias jovens a trepar muros verticais cobertos de musgo. Na Nova Zelândia, é habitual os gatos das quintas depositarem à porta de casa enguias apanhadas em pastos.

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Enguias cobrem o fumeiro de faia e carvalho do holandês Alex Koelewijn. Elas derretem-se na boca como um bom chocolate, diz ele. “É o sabor oleoso e fumado que dá maior prazer.”

“Quantos animais vivem em habitats tão diversificados?”, interrogava-se David Doubilet enquanto fotografava enguias na Nova Zelândia, mergulhado até aos joelhos num riacho alimentado por uma nascente, com agriões pendurados na máscara e no tubo de mergulho. “Eis um peixe que nasce nas mais escuras profundezas do oceano, mas também é observado em relvados ou em quintas, ao lado de vacas.”

As enguias são um dos raros peixes que emergem da água para aceitar comida depositada nas margens. Já vi esse comportamento em locais sagrados de alimentação de enguias dos maori na Nova Zelândia. Em circunstâncias normais, o regime alimentar de uma enguia é bastante variado, incluindo insectos aquáticos, mexilhões e até outras enguias.

Questões de adaptabilidade à parte, a migração de milhões de enguias dos rios para os oceanos deve contar-se entre as mais longas viagens realizadas por qualquer criatura. Pelo caminho enfrentam uma longa lista de perigos: barragens hidroeléctricas, desvio do curso dos rios, poluição, doenças, predadores e pescadores humanos. Agora, com as alterações climáticas, mudanças nas correntes oceânicas podem confundir as enguias durante as suas migrações. Infelizmente, embora sublime aos olhos de alguns, não é provável que a enguia se torne figura de cartaz dos movimentos de conservação.

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Ao pôr do Sol, Yvonne Carey (à esquerda) e a filha Genna pescam enguias no rio East, na Nova Escócia. Munida de licenças para pescar em nove rios, a família Carey transporta o pescado para casa em tanques até o enviar, vivo, para a Ásia.

Ao longo da história, vários naturalistas, como Aristóteles, Plínio, o Velho, Izaak Walton ou Lineu, propuseram teorias sobre a forma de reprodução das enguias: os juvenis emergiam da lama; as enguias multiplicavam-se esfregando-se contra as rochas; as enguias nasciam de um tipo de orvalho que cai em particular em Maio e Junho; as enguias pariam juvenis bem desenvolvidos. Um dos problemas era que ninguém conseguia identificar esperma ou ovócitos nas enguias. Durante 40 anos do fim do século XVIII, no famoso pesqueiro de enguias de Comacchio, em Itália, mais de 152 milhões de enguias migratórias adultas foram capturadas e nenhuma tinha ovos. Ninguém podia afirmar que as enguias sequer tivessem sexo, porque não se identificavam órgãos reprodutores. Na verdade, os órgãos sexuais das enguias só aumentam de tamanho quando se enchem de ovos e esperma, depois de os adultos trocarem a foz dos rios pelos territórios de desova oceânicos e desaparecerem de vista.

No fim do século XIX, em Trieste (Itália), um estudante de medicina chamado Sigmund Freud foi convidado a investigar os testículos da enguia macho, que se dizia serem laços de matéria branca enfeitando a cavidade abdominal. O ensaio de Freud sobre as enguias foi o seu primeiro trabalho publicado. A tese seria confirmada em 1897, quando um macho sexualmente maduro foi capturado no estreito de Messina.

Em 1904, o jovem oceanógrafo e biólogo dinamarquês Johannes Schmidt conseguiu emprego a bordo do Thor, um navio de investigação dinamarquês. Num dia de Primavera desse ano, uma larva da enguia-europeia apareceu numa das redes de arrasto da expedição, a oeste das ilhas Faroe. Seria possível que as enguias que viviam nos riachos da Dinamarca desovassem tão longe, no meio do oceano Atlântico?

Um ano antes, Johannes assumira um compromisso, mais tarde transformado em auspicioso noivado, com a herdeira da cervejeira Carlsberg, uma empresa dinamarquesa que fazia generosas doações à investigação marinha. Equipado com escunas capazes de atravessar oceanos, ele reuniu dados segundo os quais quanto maior a distância relativamente à costa europeia, mais pequenas eram as enguias. Johannes afirmou então que as enguias deviam desovar na região sudoeste do Atlântico Norte, no mar dos Sargaços. “Não existe outro peixe conhecido que necessite de um quarto da circunferência do globo para completar o seu ciclo de vida”, escreveu em 1923.

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Este lote de enguias do rio Damariscotta (EUA) vale aproximadamente 700 euros por quilo e destina-se à China. A pesca da enguia é fortemente regulamentada nos EUA; o Maine é um dos poucos estados autorizados a exportar enguias tão jovens.

Após a morte de Johannes Schmidt em 1933, alguns cientistas colocaram em causa a sua hipótese sobre o mar dos Sargaços. Foi revelado que ele ocultara dados para tornar a sua hipótese mais plausível. Vários cientistas duvidaram da tese de que este era o único local de reprodução das enguias, uma vez que não fora testemunhada qualquer eclosão de ovos e não tinham sido procuradas enguias noutros sítios. No entanto, a profunda história das enguias é mesmo real.

Em 1991, uma expedição chefiada por Katsumi Tsukamoto, do Instituto de Investigação da Atmosfera e dos Oceanos da Universidade de Tóquio, na qual também participava Michael Miller (então estudante da Universidade do Maine), fez outra descoberta reveladora. Numa noite escura no oceano Pacífico a oeste de Guam, a equipa descobriu centenas de larvas de enguia-japonesa dias depois da eclosão, localizando assim pela primeira vez a zona de desova desta espécie. Dezanove anos mais tarde, Katsumi e Michael ainda procuram enguias a desovar nos oceanos.

Ray revirou 500 enguias, a maioria das quais com o diâmetro de uma moeda e um metro de comprimento. Eram flexíveis e sensuais, absolutamente mágicas.

Quando me encontrei com Michael no seu gabinete de Tóquio, ele admitiu com uma certa frustração que tinham estado incrivelmente perto de descobrir os progenitores dos juvenis de enguia-japonesa. Mas “podemos estar a 50 metros e não ver nada. É uma questão de escala: o oceano é enorme. Chegar ao sítio onde as enguias desovam é muito improvável em termos estatísticos. Quase impossível. É preciso ter muita sorte”. Além disso, acrescentou, “não me lembro de uma única expedição às enguias em que não tivesse aparecido um tufão que nos obrigasse a mudar a rota. É quase como se Posídon quisesse preservar o segredo das enguias”.

Essa é a maior beleza que vejo nas enguias: a ideia de uma criatura cujo próprio início de vida consegue permanecer escondido dos seres humanos. É por isso que me custa a ideia de perdermos esta criatura antes de completarmos o quadro da sua vida. As populações de enguias americana, europeia e japonesa estão a diminuir, algumas de forma acelerada. Segundo o biólogo John Casselman, “é uma autêntica crise. Uma crise preocupante”.

Em Novembro de 2004, dois irmãos, o jornalista independente Doug Watts e Tim Watts, contínuo numa universidade, apresentaram ao Serviço de Pesca e Vida Selvagem dos EUA (FWS) uma petição para incluir a enguia-americana na lista de espécies ameaçadas ou mesmo em perigo. Foram motivados pela investigação de John Casselman relativamente à diminuição abrupta das populações de enguias no curso superior do rio São Lourenço: entre meados da década de 1980 e meados da década passada, o número de juvenis desse local caiu quase 100%. A área abrangida pela região superior da bacia hidrográfica do São Lourenço, o lago Ontário e os seus afluentes é o maior berçário de enguias da América do Norte, onde se pensa que as fêmeas tenham em tempos representado 50% da biomassa piscícola junto à costa.

Um dos problemas das enguias foi a construção de barragens hidroeléctricas que bloquearam as suas migrações. Mesmo que um juvenil consiga subir o rio, ao descer na idade adulta pode ser sugado pelas turbinas da barragem. “Algumas enguias aparecem esfoladas, como um pé sem meia”, disse Doug Watts. Quanto maior a enguia, maior o perigo. Na Nova Zelândia, onde a enguia da espécie Anguilla dieffenbachii atinge dois metros de comprimento, ou mais, as turbinas representam a morte certa.

Em Fevereiro de 2007, o FWS anunciou num relatório de trinta páginas que a inclusão da enguia-americana na Lei das Espécies em Perigo “não se justificava”, em parte por se ter descoberto que algumas enguias passam toda a sua vida em estuários. “As conclusões afirmam essencialmente que as enguias não necessitam de habitats de água doce para sobreviver”, lembrou Doug. “É como dizer que a águia-americana não precisa de árvores onde construir o ninho, pois pode fazê-lo em postes telefónicos.” Segundo Doug, como as enguias sempre foram omnipresentes e abundantes, ninguém parece acreditar que possam algum dia extinguir-se. “Foi o que disseram sobre o bacalhau na década de 1990, quando as populações estavam a diminuir.” Doug faz uma pausa. “Há um limite para abusarmos de um animal até ele desistir.”

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Esta larva numa caixa de Petri brilha sob luz azul. Cientistas japoneses conseguiram a proeza de reproduzir enguias em laboratório até à idade de desova. A reprodução em cativeiro poderá um dia reabastecer as populações selvagens.

As enguias que sobrevivem às barragens podem não sobreviver ao maior predador do planeta. O comércio internacional, liderado em grande parte pelo apetite dos japoneses por enguia grelhada, conhecida por kabayaki, é uma indústria de milhares de milhões de euros. No Japão, pensa-se que a enguia aumenta a resistência humana a temperaturas elevadas e o Doyo Ushi No Hi, dia da enguia, costuma calhar no fim de Julho. Em Julho de 2009, foram vendidas mais de cinquenta toneladas de enguia fresca no famoso mercado de peixe e marisco Tsukiji, em Tóquio. A enguia é quase sempre consumida em restaurantes que servem apenas enguias devido à dificuldade da sua limpeza e confecção. Nunca é servida crua. O seu sangue contém uma neurotoxina que é neutralizada quando o peixe é cozinhado ou fumado. Uma quantidade minúscula de soro de sangue de enguia injectada num coelho causa convulsões instantâneas e morte.

A enguia é grelhada em espetos de bambu sobre um fogo bem quente de lenha, repetidamente mergulhada em água e voltando ao lume para assar a carne. Depois, é coberta com um molho de soja, mirin (vinho de arroz doce) e açúcar e polvilhada com sansho, pimenta da montanha. Este prato, na maioria das vezes uma única enguia aberta ao meio e servida sobre uma cama de arroz, chama-se unaju. Nenhuma parte do peixe é desperdiçada. O fígado é servido em sopa e a espinha é frita e fica com a consistência de uma bolacha de água e sal. Embora possa fazer parte do folclore alimentar japonês, diz-se que em Tóquio a enguia é cortada em filetes pelas costas para evitar as semelhanças com o suicídio ritual dos guerreiros samurai em que a faca é espetada na barriga. Em Quioto, onde havia menos samurais, é cortada pela barriga. O povo de Quioto diz que as mulheres da cidade têm a pele bela por comerem muita enguia. Com efeito, a carne é rica em vitamina A e E e descobriu-se que ajuda a prevenir a diabetes de tipo 2 devido à concentração de ácidos gordos ómega 3.

Uma enguia servida num restaurante em Manhattan poderá ter eclodido no oceano Atlântico, ter sido pescada numa foz da região basca de França, transportada de avião até Hong Kong, criada numa exploração de aquicultura junto às províncias de Fujian ou Guangdong, limpa, grelhada e embalada em fábricas perto das explorações e, por fim, transportada de avião para Nova Iorque. Preparar as enguias para a comercialização implica a captura de crias quando chegam a águas doces, vindas do oceano, e enviá-las para explorações semelhantes a armazéns na China onde são engordadas. O comércio depende da captura de peixes selvagens porque ninguém sabe como reproduzir enguias em cativeiro.

Durante a década de 1970, nos EUA, quando as explorações de aquicultura floresciam na China, a pesca de enguias para fornecer o mercado asiático explodiu de forma desordenada entre Janeiro e Junho em todos os estados costeiros da costa Leste. Pat Bryant foi uma das primeiras no estado de Maine a capturar estas jovens enguias e exportá-las para a China. Durante o dia, ela geria um cabeleireiro em Damariscotta e de noite, para ganhar algum dinheiro extra, descia até à foz do rio Pemaquid para examinar as redes.

A operação comercial no Maine cresceu de forma explosiva entre meados da década de 1980 e meados da década de 1990, quando os mais de 1.500 pescadores com licenças conseguiam arrecadar milhares de euros por noite em troca do que pescavam. Começaram a ocorrer roubos e casos de vandalismo e os criadores passaram a empunhar pistolas para proteger territórios de pesca. Actualmente as capturas permitidas no Maine estão restritas a alguns locais e a uma curta temporada, de 22 de Março a 31 de Maio.

O ano de 1997 estabeleceu um recorde mínimo de captura de jovens enguias-japonesas. O preço subiu de forma drástica: um quilo, ou seja, cerca de cinco mil peixes, chegava a custar 12.700 dólares, tornando a enguia mais valiosa do que o ouro naquela altura. Quando a oferta de jovens enguias-japonesas caiu, o preço correspondente para as enguias-americanas aumentou dez vezes durante um curto espaço de tempo. Os apreciadores japoneses não ficaram satisfeitos. “As enguias-americanas não são tão saborosas”, disse Shoichiro Kubota, gerente de um restaurante especializado em enguias há 120 anos no distrito de Akihabara, em Tóquio. O seu pai, aliás, preparava enguias para o imperador Hirohito. “Nem as enguias francesas são tão saborosas. Nós gostamos dos nossos peixes.”

Pat compra jovens enguias a pescadores nas regiões norte e sul da costa do Maine e trata delas em tanques junto a sua casa até elas estarem prontas para serem enviadas de Boston para Hong Kong, vivas, em sacos de plástico cheios de água oxigenada e embalados em contentores de espuma. Até há pouco tempo, Jonathan Yang, um comerciante de Taiwan, actuava como intermediário entre Pat e os criadores de enguias da China e de Taiwan, comprando-lhes enguias ao quilo e vendendo-as à peça. Ele pagava-lhe em dinheiro, transferindo geralmente 770 mil euros para um banco do Maine no fim da época.

O negócio teve altos e baixos. “É um negócio arriscado”, disse. Se o preço da enguia adulta caísse durante os 14 a 18 meses necessários para criar uma jovem enguia até à comercialização, o seu comprador chinês poderia falir. “Num ano, tudo corre bem e todos conduzem Mercedes-Benz”, explicou Jonathan. “No ano seguinte, o preço cai e andam todos de bicicleta!”

Antes de se dedicar às enguias, Jonathan trabalhou na China, no lucrativo negócio da venda de barbatanas de tubarão para sopa. Segundo afirma, desistiu quando viu golfinhos capturados acidentalmente por anzóis de palangre e arrastados para bordo, espancados até à morte e atirados novamente para o mar. “Quando eles trazem os golfinhos para o barco, vemos que eles estão a chorar”, contou Jonathan. “Conseguimos ver as lágrimas.” Pousou a mão sobre o coração. “Quando olho para as enguias, sinto-me bem. Elas são muito bonitas quando se mexem.”

Para os maori, as enguias vieram dos céus. Caíram quando estes se tornaram demasiado quentes e inóspitos. Na Terra, dizem, o seu movimento faz os rios fluir.

Tal como acontece a Jonathan Yang, as enguias fazem-me sentir bem. No açude de Ray Turner, numa noite fria de Setembro, em véspera de Lua nova, observando cordões de enguias semelhantes a veias encherem o seu “útero” de madeira e pedra, quase conseguia acreditar nos contos maori sobre os encontros com o taniwha, o guardião das águas, ou monstro. Para muitos povos indígenas das ilhas polinésias, a enguia é um deus que substitui a serpente arquetípica nos mitos de criação, uma importante fonte de alimento e um símbolo erótico – a palavra que muitos ilhéus usam para enguia, tuna, é também um sinónimo de “pénis”. Num mito maori, as enguias vieram dos céus, tendo caído quando estes se tornaram demasiado quentes e inóspitos para elas. Na Terra, segundo alguns maori, o movimento das enguias faz os rios fluir. A enguia é vital para tudo.

Queremos acreditar que podemos compreender a natureza organizando-a e explicando-a através de sistemas de taxonomia e estudos computorizados de genes e DNA, encaixando os organismos em categorias bem arrumadas. Anualmente, porém, descobrem-se novos segredos sobre a vida oculta das enguias; em 2006 e em 2008, os cientistas libertaram enguias equipadas com marcadores nas costas ocidentais da Irlanda e de França, esperando assim acompanhá-las até ao mar dos Sargaços. No entanto, o “conhecimento”, tal como o concebemos, pode prejudicar a imaginação e o espanto decorrente de observarmos as coisas por nós próprios. 

Sentados num acampamento junto ao rio Waipunga, ouvi um guia maori chamado Daniel Joe falar sobre o poder das enguias. “A enguia é morehu”, uma sobrevivente, disse. “Acho que ficará por cá até ao fim do mundo, tal como a conhecemos.” Espero que ele tenha razão.