Rosa Félix já não se recorda do momento em que transitou do triciclo para a bicicleta, mas tem uma memória vívida dos anos que demorou a juntar dinheiro para comprar a sua primeira bicicleta na adolescência. Nessa altura, já se sentia compelida a atravessar a cidade em duas rodas para ir de casa para a escola, mas a quase inexistência de ciclistas à época em Lisboa era intimidatória.
Expressões como mobilidade activa, cidades sustentáveis e inclusivas mal se ouviam, então, na esfera pública nacional. Em 2023, após uma década a fio a estudar estes assuntos, a investigadora – que participou, por exemplo, na elaboração do Plano de Mobilidade em Bicicleta do Município de Loulé – não consegue deixar de pôr o dedo na ferida: “Falta tomar decisões políticas para que programas públicos de alteração dos nossos hábitos realmente aconteçam”, declara à National Geographic Portugal a também activista que todos os meses ajuda a dinamizar a FEMINA, uma oficina comunitária de bicicletas de e para mulheres, pessoas trans e não-binárias.
Rosa reconhece que mudanças de comportamentos nesta área “não são simples, nem para toda a gente”, mas aposta todas as fichas nas gerações mais novas, “já sensibilizadas para esse caminho”. Também programas desenvolvidos ao nível das escolas primárias e secundárias com o objectivo de “alertar para as escolhas de mobilidade” lhe dão esperança. “Não temos de ter uma solução única para todas as viagens que fazemos, mas conhecer as opções disponíveis já é um começo”, acrescenta.
Experimentar para decidir
Em 2000, a iniciativa europeia “Dia sem Carros” foi a sua epifania. Ao ingressar no Instituto Superior Técnico quatro anos mais tarde, não existiam ainda na faculdade zonas de estacionamento para bicicletas, mas Rosa rapidamente se juntou a dois colegas fervorosos nas pedaladas por Lisboa. Nunca mais largou a bicicleta, como instrumento de locomoção e emancipação. Porém, esclarece, que a exclusividade nesta matéria nem sempre faz sentido: “Eu não sou apologista de ‘ou um ou outro’. É possível começar a fazer algumas das viagens mais curtas em bicicleta, e progressivamente ir reduzindo as viagens individuais motorizadas. Às vezes, o metro será mais conveniente num dia de chuva, ou o automóvel para ir buscar aquele móvel”.
Em 2019, Félix concluiu o doutoramento com uma dissertação sobre os factores que encorajam e dissuadem a transição para este transporte. “Para quem nunca usou uma bicicleta em meio urbano, as bicicletas partilhadas, ou a de um amigo, são uma óptima maneira de experimentar, sem o compromisso de ter de comprar ou guardar durante a noite", sugere. Usar este velocípede criado para encurtar distâncias “sem pressas, num ou noutro percurso mais comum na sua rotina, e ir ajustando o melhor caminho” é outra recomendação sua para principiantes.
Alexandre Vaz
Hoje, Dia Mundial da Bicicleta, Rosa Félix vai participar numa “bicicletada” promovida por um grupo de vizinhos no seu bairro.
Uma estratégia bem intencionada, mas aquém do esperado
O governo português definiu como meta que, em 2025, 4% das deslocações em cidades sejam feitas de bicicleta e que esse valor chegue a 10% em 2030. Rosa estima que, apesar do expressivo aumento de popularidade da bicicleta após o confinamento, o número real em Lisboa deve aproximar-se de 2%.
Em 2019, quando foi definida a Estratégia Nacional para a Mobilidade Ativa Ciclável 2020-2030, a meta de 4% para 2025 “poderia ser realista, se viesse acompanhada de medidas concretas com orçamentos concretos e equipas para levar a cabo de facto essas metas”. O que não aconteceu: “Não basta defini-las no papel e esperar que aconteçam”. Em 2023, a quantidade de pessoas a andar de bicicleta é bastante superior à de 2019, mas “ainda não estamos lá, nem em Lisboa nem noutras cidades”. Nem a expansão de redes de ciclovias, nem a introdução de sistemas de bicicletas partilhadas, nem os programas de apoio à aquisição de bicicletas nos últimos anos – que contribuíram para este crescente interesse dos portugueses pela mobilidade ciclável – têm sido suficientes para chegar ao patamar inscrito na estratégia. Em Londres, lembra Félix, demorou, por exemplo, dez anos a chegar a uma repartição modal de 2% em bicicleta, mesmo com vários programas municipais e nacionais. “Para [além de] metas nacionais, é também necessário definir um programa nacional com métricas, um calendário, orçamento, coordenação, etc.”, defende a investigadora.
“BiclaR” em 18 municípios portugueses
Promovido pela Transportes Metropolitanos de Lisboa, e desenvolvido pelo CERIS no Instituto Superior Técnico, em parceria com a Universidade de Leeds, o projecto biclaR – um mapa interactivo da mobilidade na área metropolitana de Lisboa – teve o dedo de Rosa Félix e do também investigador Filipe Moura. Trata-se de uma ferramenta online de apoio ao planeamento de redes cicláveis, “com vários resultados que podem ser exportados para uma análise mais fina”, e está disponível em código aberto e à distância de um clique. O biclaR envolveu a formação de 18 municípios em torno da edição de OpenStreetMap, estimativas de impactes socioeconómicos de infraestruturas cicláveis com uso de uma outra ferramenta da Organização Mundial de Saúde, e acompanhamento de um conselho consultivo composto por associações, organismos públicos, ligados a transportes e mobilidade urbana.
“O modo de transporte mais democrático do mundo”
Segundo a investigadora-ciclista-mecânica, que estuda a mobilidade ciclável desde 2012, é provável que a conflictualidade com os automobilistas até aumente, mas já nada parece poder travar esta mudança. Os benefícios da bicicleta como meio de deslocação e lazer para o indivíduo e para a sociedade são sobejamente conhecidos. O facto do seu uso evitar emissões de dióxido de carbono e a dependência de combustíveis fósseis é já por si um statement num quadro acelerado de alterações climáticas. E é também por isso que “a bicicleta deve ser celebrada e promovida”, hoje e sempre, nas palavras de Rosa. A bicicleta, prossegue, é “o modo de transporte mais democrático do mundo”, por ser “relativamente acessível, com uma manutenção simples” e por permitir “quebrar barreiras territoriais, desigualdades nos acessos a oportunidades, chegando a qualquer lado sem depender de custos, horários, e outros”.
Hoje, 3 de Junho, Dia Mundial da Bicicleta (instituído em 2018 na Assembleia Geral das Nações Unidas), Rosa Félix não podia deixar de participar numa “bicicletada” promovida por um grupo de vizinhos no seu bairro, “para chamar a atenção para [a necessidade de melhorar as] condições para o uso da bicicleta”.
Actualização do artigo publicado originalmente na edição de Junho – nº 267 – da revista National Geographic.