A ordem final está prestes a ser dada: despejar as águas residuais no oceano. No entanto, não se trata do tipo de águas residuais que escoam das ruas das cidades para as valetas. São águas residuais nucleares tratadas, utilizadas para refrigerar os reactores danificados da central nuclear japonesa de Fukushima Daiichi quando esta foi afectada por um terramoto há mais de uma década.
O Japão diz que as águas residuais, que contêm um isótopo radioactivo chamado trítio e, possivelmente, outros vestígios de radioactividade, são seguras, mas os países vizinhos e outros especialistas dizem que são uma ameaça ambiental que durará gerações e poderá afectar ecossistemas até à América do Norte. Quem tem razão?

11 de Março de 2011

Após um terramoto com 9,1 graus de magnitude ocorrido ao largo da costa oriental da principal ilha do Japão a 11 de Março de 2011, duas ondas de maremoto abateram-se sobre a central nuclear. Enquanto três dos seus reactores derretiam, os operadores começaram a bombeá-los com água do mar para arrefecer o combustível. Volvidos mais de 12 anos, o processo de refrigeração ainda em curso produz mais de 130 toneladas de água contaminada por dia.

Desde o acidente, mais de 1,3 milhões de águas residuais nucleares foram reunidas, tratadas e armazenadas em tanques na central. A capacidade de armazenamento está prestes a esgotar-se, diz o governo japonês, não restando outra escolha para além de começar a despejar águas residuais no Pacífico.

central nuclear
ASAHI SHIMBUN/GETTY

Mais de um milhão de toneladas de águas residuais tratadas estão armazenadas em tanques na central nuclear. 

reações NA CHINA E COREIA DO SUL

O plano de descarga do Japão envolve um despejo gradual ao longo das próximas três décadas, embora alguns especialistas digam que pode demorar mais tempo, dada a quantidade de águas residuais que ainda está a ser produzida. Embora a Agência Internacional de Energia Atómica (AIEA, em inglês) — o organismo de monitorização nuclear da ONU — ateste a segurança do plano, alguns vizinhos do Japão estão a criticá-lo, dizendo que é unilateral e perigoso. Um funcionário sénior do governo chinês disse recentemente que era um risco “para toda a humanidade” e acusou o Japão de estar a usar o Pacífico como “esgoto”.

O presidente do Pacific Islands Forum, um organismo que representa 18 nações insulares (algumas das quais já traumatizadas por décadas de testes nucleares realizados na região) chamou-lhe "caixa de Pandora". No passado dia 15 de Maio, o líder da oposição da Coreia do Sul zombou das afirmações dos líderes japoneses, segundo os quais a água é suficientemente segura para beber: “se é suficientemente segura para beber, então que a usem como água potável”.

Agora, cientistas americanos estão a manifestar as suas preocupações sobre a possibilidade de a vida marinha e as correntes oceânicas poderem transportar isótopos radioactivos nocivos – igualmente denominados radionuclídeos – espalhando-os por todo o Oceano Pacífico.

“É um evento transfronteiriço e transgeracional”, diz Robert Richmond, director do Kewalo Marine Laboratory da Universidade do Hawai, e assessor científico do plano de descarga junto do Pacific Islands Forum. “Qualquer coisa de Fukushima que seja libertada no oceano não vai permanecer num único sítio.”

Richmond cita estudos que demonstram que os radionuclídeos e outros detritos libertados durante o acidente de Fukushima foram rapidamente detectados a quase 9.000 quilómetros de distância, ao largo da costa da Califórnia. Os elementos radioactivos das descargas planeadas podem atravessar novamente o oceano, afirma.

Os radionuclídeos poderão ser transportados por correntes oceânicas, sobretudo pela corrente Kuroshio, que atravessa todo o Pacífico. Os animais marinhos que percorrem longas distâncias também poderão disseminá-los. Um estudo publicado em 2012 refere “evidências inequívocas” de que atuns-do-Pacífico transportando radionuclídeos derivados de Fukushima chegaram à costa de San Diego seis meses após o acidente de 2011. Não menos preocupante enquanto portador, diz Richmond, são os fitoplânctons – organismos flutuantes que estão na base da cadeia alimentar de toda a vida marinha e que podem reter radionuclídeos da água de refrigeração utilizada em Fukushima. Quando ingeridos, estes isótopos podem “acumular-se numa variedade de invertebrados, peixes, mamíferos marinhos e seres humanos”. Além disso, um estudo publicado no início deste ano aponta também os microplásticos – partículas de plástico minúsculas e cada vez mais disseminadas nos oceanos – como possíveis “cavalos de Tróia” de transporte de radionuclídeos.

O QUE ESPERAR?

O facto de os cientistas terem conseguido captar vestígios de elementos radioactivos junto à Califórnia após o acidente de 2011, diz Richmond, “é indicativo daquilo que poderemos esperar” após décadas de descargas de águas residuais. Richmond e outros assessores científicos do Pacific Islands Forum publicaram recentemente um artigo de opinião dizendo que não é suficiente conhecer os potenciais efeitos das águas residuais sobre o ambiente e a saúde humana e pedindo ao Japão que adie as descargas.

Richmond e os seus colegas não são os únicos cientistas americanos a levantar estas questões com urgência. No passado mês de Dezembro, a National Association of Marine Laboratories, uma organização norte-americana com mais de cem laboratórios membros, instalados nos EUA ou em territórios norte-americanos – publicou um comunicado opondo-se ao plano de descarga de águas residuais. Mencionava “a falta de dados científicos adequados e rigorosos que comprovem a segurança afirmada pelo Japão”. Segundo o comunicado, as descargas podem ameaçar “a maior massa contínua de água do planeta, que contém a maior biodiversidade de organismos… incluindo 70 por cento dos bancos de pesca de todo o mundo”.

da Tokyo Electric Power Company
PHILIP FONG, AFP/GETTY

No dia 21 de Fevereiro de 2021, um funcionário da Tokyo Electric Power Company mede os níveis de radiação junto à central nuclear de Fukushima Daiichi, que foi devastada por um terramoto há uma década. Os planos do Japão para despejar as águas residuais utilizadas para refrigerar os reactores danificados estão a causar polémica.

"Não vamos morrer"

As descargas têm de ser vistas em perspectiva, diz Ken Buesseler, especialista em radioquímica marinha e assessor do Pacific Islands Forum. A descarga acidental de elementos radioactivos de Fukushima no Pacifico em 2011 foi comparativamente maciça, afirma, mas mesmo assim os níveis detectados ao largo da costa ocidental da América do Norte “foram milhões de vezes inferiores aos níveis máximos verificados ao largo do Japão, que foram perigosamente elevados nos primeiros meses de 2011”.

Uma vez que o tempo e a distância diminuem os níveis de radioactividade, “não creio que as descargas possam destruir irremediavelmente o Oceano Pacífico”, diz Buesseler. “Não vamos morrer. Não estamos nessa situação.” Contudo, O assessor do Pacific Islands Forum acrescenta que “isso não significa que não haja motivos de preocupação.”

UM isótopo radioactivo não ELIMINÁVEL

Os tanques de águas residuais contêm diferentes níveis de isótopos radioactivos como césio-137, estrôncio-90 e trítio, diz Buesseler, que questiona quão eficazmente o sistema de filtração de águas residuais irá eliminar todos os elementos radioactivos existentes nos tanques. A Tokyo Electric Power Company (TEPCO), proprietária e operadora da central nuclear utiliza um sistema que, segundo o IAEA, remove 62 tipos diferentes de isótopos de radionuclídeos, excepto o trítio, uma forma radioactiva de hidrogénio.

Um porta-voz da TEPCO disse num e-mail à National Geographic que o impacto das descargas “no ambiente e no público será mínimo”. Todas as águas residuais serão “repetidamente purificadas e testadas para confirmar que as concentrações de substâncias radioactivas são inferiores às normas em vigor” antes da sua descarga. Embora o sistema de filtração não consiga eliminar o trítio, as águas residuais tratadas serão diluídas com água do mar até as descargas conterem níveis de trítio mais baixos do que os que são libertados “por outras centrais nucleares do Japão e de todo o mundo”, afirma o porta-voz. (O trítio é um isótopo comparativamente fraco, incapaz de penetrar na pele, mas que pode ser nocivo quando ingerido.)

Buesseler adverte para o facto de o sistema de filtração ainda não ter “demonstrado uma eficácia constante”. Ele diz que existem outros “elementos altamente preocupantes… que eles ainda não conseguiram eliminar”, como o césio e o estrôncio-90 – este último um isótopo que aumenta os riscos de cancro nos ossos e leucemia, valendo-lhe a sinistra designação de “caçador de ossos”.

Depois de examinar os dados sobre alguns tanques de armazenamento de águas residuais fornecidos pela TEPCO, Buesseler e os seus colegas dizem que as águas residuais ainda continham isótopos radioactivos após o tratamento, com variações significativas entre tanques. “Não é correcto dizer que foram removidos com sucesso”, afirma.

EUA e ONU apoiam as descargas

Quando interrogado sobre a posição dos EUA sobre a proposta de descarga japonesa, um porta-voz do Departamento do Estado exprimiu um apoio cauteloso, dizendo num comunicado que o país tem sido “transparente em relação à sua decisão e parece ter adoptado uma abordagem em conformidade com as normas de segurança nuclear globalmente aceites”. O porta-voz recusou-se a comentar as preocupações específicas sobre a disseminação de radionuclídeos pelo Oceano Pacífico e a sua possível chegada às costas da América do Norte. Representantes dos Ministérios dos Negócios Estrangeiros do Canadá e do México não responderam a vários pedidos de comentários sobre este assunto.

Uma força especial designada pela AIEA esteve a avaliar recentemente as descargas de águas residuais propostas em função das normas de segurança internacionais e deu um parecer favorável à intenção das autoridades nipónicos. O plano está “alinhado com as práticas globais”, disse Rafael Mariano Grossi, director-geral da agência, em 2021. “A nossa cooperação e a nossa presença vão contribuir para que as pessoas – no Japão e não só – acreditem que a descarga das águas é realizada sem efeitos adversos para a saúde humana e o ambiente.”

Richmond e Buesseler permanecem cépticos, embora tenham avaliado praticamente os mesmos dados que a AIEA e reunido com representantes da TEPCO e do governo japonês.

“A raiz deste problema é que eles já estão a avançar com um plano cujos resultados ainda não foram demonstrados”, diz Buesseler. “Eles estão a dizer: ‘nós conseguimos fazer isto. Vamos tratá-la [a água] quantas vezes for necessário’. Se quiséssemos dar uma alcunha este plano, seria ‘confiem em nós, nós tratamos de tudo’.”

Artigo publicado originalmente em inglês em nationalgeographic.com.