À hora da alvorada, a ilha começava a acordar. Semiadormecidos, os residentes entravam na lagoa para se lavarem: deitavam água no rosto e, depois, apertavam os sarongs e mergulhavam.
A maré estava cheia. Para lá da lagoa, o oceano estendia-se até ao horizonte. Marawa, karawa, tarawa (mar, céu e terra) é a antiga trindade do povo de Kiribati, mas a trindade está a desequilibrar-se. O oceano já não tem o coração generoso que sempre se lhe reconheceu. Começa a mostrar outro rosto, um rosto ameaçador de marés invasoras e ondas fustigantes.
A população local vive agora a realidade da subida do mar. Chegou a altura de bibitakin kanoan boong (“alterações no estado do tempo durante muitos dias”), a frase que descreve as alterações climáticas. O povo vive com medo.
Tudo em seu redor é ameaçador. Todo o planeta aponta para os países insulares de baixa altitude como zonas que serão submersas. Os líderes políticos admitiram que Kiribati, uma república que agrega 33 ilhas de coral numa área do Pacífico Central mais extensa do que a Índia, é “uma das regiões mais vulneráveis entre as vulneráveis”. O atol Tarawa, a capital do país, tornar-se-á inabitável para a próxima geração.
No entanto, muitos habitantes locais recusam-se a olhar para a sua terra natal como “nação insular em vias de desaparecimento” e não aceitam que o destino não lhes pertence. Não se consideram “ilhéus ameaçados”, mas sim descendentes de viajantes, herdeiros de uma tradição altiva de resistência e sobrevivência. Acreditam que o seu mundo não está em risco. Não há dúvidas, porém, de que está a sofrer.
“O mar é bom porque nos dá comida, mas um dia vai roubar-nos a nossa terra.”
O mar está a erodir a linha costeira, infiltrando-se nos atóis, salinizando os poços e matando culturas e árvores. A fertilidade de atóis como Tarawa depende de uma fonte de água doce, reposta pelas chuvas, que flutua sobre um aquífero de água salgada. À medida que o nível do mar sobe (alguns milímetros por ano na actualidade, mas mais rapidamente nos cenários mais pessimistas), o mesmo acontece ao nível de água salgada no subsolo, diminuindo as reservas de água doce.
“Agora odiamos o mar”, disse-me Henry Kaake na sua cabana assente sobre estacas utilizada para dormir e conversar com os amigos. “O mar é bom porque nos dá comida, mas um dia vai roubar-nos a nossa terra.”
Uma das primeiras baixas da salinidade infiltrada tem sido o bwabwai, o alimento de prestígio da cultura kiribati, um taro gigantesco do pântano que pode demorar mais de cinco anos a atingir o tamanho máximo. Sensível à intrusão de água salgada nos poços onde é cultivado, o bwabwai já não consegue crescer em muitas zonas e poderá um dia desaparecer da gastronomia insular.
O Estado e as organizações humanitárias ajudam os hortelões a cultivar outros produtos com mais teor de amido. Numa horta comunitária em Abaiang, um dos atóis vizinhos de Tarawa, vi Makurita Teakin cortar folhas, reduzindo-as a polpa e espalhando-as depois sobre rebentos de uma variedade de taro com raízes superficiais que não precisa de condições pantanosas. Ali perto, outra mulher regava os rebentos com adubo à base de peixe que retirava de uma lata com buracos feitos por pregos.
A maré recuou. Carregando sacos de plástico e baldes, adultos e crianças sondavam a areia com os dedos e raspavam as fendas das rochas com colheres em busca de berbigões e búzios. Os recolectores avançavam até à borda de água em recuo, dobrando-se para procurar e apanhar marisco.
Se encontrassem berbigão suficiente, poderiam cozinhá-lo em creme de coco no interior de uma casca de coco, sobre uma fogueira fumarenta alimentada com cascas de coco. Aliás, o coqueiro tem variadas utilidades nesta cultura: cestos, vassouras, madeiras, colmo, óleo, vinho de palma, sabão, um xarope escuro denominado kamwaimwai. Há quem lhe chame a árvore do céu. Aliás, a população local tem mais de uma dúzia de palavras só para descrever as fases da fruta, desde o momento em que ela é uma pequena noz até à fase do fruto velho com polpa rançosa.
A preservação das tradições é importante. Mwairin Timon estava a fazer sennit de coco quando a encontrei à porta da sua cabana junto da lagoa, enquanto enrolava tufos de fibra de coco com a palma da mão sobre um pedaço de madeira encontrado na praia. Mais de um ano antes, enterrara cascas de coco na lagoa, assinalando o lugar com uma pedra. Mil marés fizeram depois o trabalho, tratando e amaciando as fibras. Agora, ela torcia-as, formando fios, da mesma maneira que a sua avó fizera e a avó desta antes dela, numa tradição que remonta aos primeiros colonos destes atóis, chegados aqui há cerca de três mil anos.
Nuvens escureceram e sobrevoaram a lagoa, esbatendo as ilhotas de Tarawa Norte, o outro lado do atol de Tarawa, em forma de fúrcula. Em breve trariam alívio a este lado, Tarawa Sul, onde metade da população do país vive em menos de 16 quilómetros quadrados.
O aumento da pluviosidade previsto para as próximas décadas é uma bênção, embora os aguaceiros sejam mais intensos, o que, por sua vez, provocará cheias. Com os reservatórios de água doce subterrânea comprometidos pela subida dos mares e, no caso de Tarawa, pela crescente pressão demográfica, a recolha da água das chuvas dos telhados poderá ser uma alternativa. Em Abaiang, organizações humanitárias forneceram a algumas comunidades sistemas simples que captam, filtram, tratam e armazenam a água das chuvas. Desde que haja água doce, os seres humanos são capazes de lidar com outras mudanças – pelo menos durante algum tempo. Por quanto? Ninguém sabe.
A maré mudou e deslizou sobre a orla costeira, empurrando os recolectores para fora. As marés são um eixo da vida em Kiribati e o mesmo pode dizer-se do movimento do Sol, da Lua, das estrelas e da direcção do vento e da ondulação. No passado, a compreensão destes eixos permitia o cálculo da melhor estação para plantar, pescar ou sulcar o mar em canoas polinésias com trinta metros de comprimento. Era assim a álgebra do Pacífico.
As ilhas são formigas e as nações industrializadas são elefantes, declarou Teburoro Tito, antigo presidente de Kiribati.
Os pescadores conheciam o isco preferido de cada peixe e sabiam se deveriam capturá-lo de dia ou de noite e qual a melhor estratégia para o fazer: anzol, laço ou rede. As certezas desse mundo estão a desfazer-se. Em locais de pesca outrora fiáveis, as linhas e redes apresentam-se agora vazias. Pensa-se que o aquecimento do oceano empurra alguns peixes para águas mais frias.
Os recifes de coral também estão a sofrer e o pior ainda está para vir. À medida que o mar aquecer e se tornar mais ácido, num processo que decorrerá este século, prevê-se que o crescimento dos recifes abrande ou talvez pare por completo. A lixiviação do coral, um fenómeno ocorrido quando os corais sob stress expelem a alga simbiótica que lhes dá cor e nutrientes, acontecia a cada dez anos, aproximadamente. Agora está a tornar-se mais frequente e poderá mesmo vir a acontecer todos os anos, ameaçando a sobrevivência do coral e embranquecendo-o.
Quando os corais desaparecerem, as ilhas também se perderão. As ilhas de atol dependem de depósitos de sedimentos de corais e outros organismos marinhos despejados na costa por tempestades. Um recife morto não pode sustentar as ilhas que construiu. Que tipo de mundo é este em que o mar consome a sua própria criação?
Para muitos habitantes locais, parece profundamente injusto que os problemas climáticos do seu país resultem das acções de outros. Desde a década de 1980 que líderes do Pacífico repreenderam, adularam, imploraram e tentaram envergonhar os maiores emissores de carbono do mundo, culpando-os pelas alterações climáticas. As ilhas são formigas e as nações industrializadas são elefantes, declarou Teburoro Tito, antigo presidente de Kiribati, debatendo a contribuição mínima do país para a carga de carbono do planeta.
Há um aspecto da insensibilidade dos países ricos que é difícil de aceitar nesta república. Aqui, leva-se a sério o respeito pelas fronteiras: por tradição, ninguém apanha cocos de uma árvore que não lhe pertença. Ninguém ousaria apanhar, sem pedir, folhas mortas da árvore de fruta-pão, nem sequer para acender uma fogueira. Todos sabem quando têm o direito de colher algo.
Estas regras ainda são cumpridas. Quando acompanhei alguns pescadores que viajavam de Tarawa para Abaiang, o capitão deteve o barco num recife e um dos membros da tripulação atirou cigarros de pandano enrolados à mão para o mar como oferenda e sinal de respeito pelos donos do território que estávamos a atravessar.
Teiti Kiroon e o noivo Iannang Komi vão construir o seu lar em Tarawa, apesar das preocupações sobre o impacte das alterações climáticas em Kiribati. Muitos ilhéus pensam em mudar-se para países mais seguros, mas também estão vinculados à sua terra natal e a este estilo de vida.
Quem viaja pela primeira vez a outra ilha, começa por anunciar a sua chegada ao local, visitando um sítio sagrado. Faz uma oferenda de cigarros ou moedas ou, em alternativa, o responsável pelo santuário pega em areia molhada e coloca-a sobre as nossas bochechas e ata um pedaço de liana à volta da nossa cabeça. Depois de realizar o ritual em Abaiang, o responsável pelo santuário disse-me: “Agora pertences a esta ilha.”
O que sabem os países ricos sobre o respeito pelas fronteiras? Imagino uma nuvem de gases com efeito de estufa avançando na direcção de Tarawa, vinda do horizonte, como a radioactividade das armas nucleares detonadas nas Espórades Equatoriais de Kiribati depois da Segunda Guerra Mundial. A situação não parece muito diferente: efeitos secundários nucleares no século XX, efeitos secundários climáticos no século XXI.
A sensação de injustiça é generalizada nos atóis em maior risco: Kiribati, Maldivas, ilhas Marshall, Tokelau e Tuvalu. Um antigo primeiro-ministro de Tuvalu, Saufatu Sopoaga, chegou a comparar os impactes das alterações climáticas a “uma lenta e insidiosa forma de terrorismo contra nós”.
Mesmo assim, a retórica da vitimização é rejeitada aqui, tal como a inferência de que as nações do Pacífico são impotentes. “Não somos vítimas”, disse-me Toka Rakobu, que trabalha para uma agência de turismo em Tarawa. “Podemos fazer algo. Não vamos ser um povo derrotado.”
A sensação de injustiça é generalizada nos atóis em maior risco: Kiribati, Maldivas, ilhas Marshall, Tokelau e Tuvalu.
Não haverá responsabilidades dos políticos, incluindo do presidente de Kiribati, Anote Tong, por representarem o papel do desfavorecido global? O debate sobre o alagamento das ilhas e os refugiados do clima tornou Kiribati conhecida em todo o mundo. Fotógrafos e jornalistas vieram até Tarawa para relatar os acontecimentos a partir “da linha da frente da crise das alterações climáticas”. As suas visitas tendem a avolumar-
-se na época das marés vivas, as marés mais altas do ano, quando se agiganta o drama das ondas que galgam as defesas costeiras. No início deste ano, uma maré viva arrancou um navio naufragado do recife de Betio, a ilhota mais ocidental de Tarawa, arremessando-o contra a costa e perfurando uma defesa costeira. E ali ficou. O navio tem um nome irónico: Tekeraoi – “boa sorte”.
As histórias das desventuras climáticas do Pacífico atraíram uma vaga de empatia e assistência financeira até Kiribati e ilhas vizinhas, mas a repetição da mensagem de catástrofe é desmoralizadora. Fala-se muito em migração. Devemos ficar? Devemos ir? Seremos obrigados a realojar-nos? Se sim, onde? Nenhum país abriu as portas aos refugiados climáticos.
As perguntas são angustiantes, até porque acarretam um sentimento de identidade. No idioma local, a palavra para “terra” e “povo” é a mesma. Se a terra desaparecer, quem somos nós?
Contudo, os povos do Pacífico são conhecidos pelas suas migrações ancestrais. No mito das origens de Kiribati, Nareau, o Criador, era uma aranha e os colonos tecem teias desde então. Todas as famílias têm parentes na Nova Zelândia, na Austrália e outros locais distantes, e cada migração representa um fio de seda numa rede de laços de parentesco.
Debatem-se por vezes cenários nos quais os jovens partem de Kiribati, ficando os velhos, mas alguns jovens preferem levar uma vida mais simples nas suas terras ancestrais. A jovem mãe Mannie Rikiaua, funcionária do Ministério do Ambiente de Kiribati, disse-me que preferia trabalhar para o seu próprio povo em vez de servir outro país, apesar de o pai insistir com ela para que migre para um “sítio mais alto”.
“Parte de mim quer ir”, admitiu, mas depois acrescentou, como se estivesse a decidir-se novamente, “Kiribati é o melhor sítio para os meus filhos, independentemente das ameaças”.
É a sua reacção ao tangiran abam, explicou, o amor e a saudade que a população de Kiribati sente pela sua terra natal. O tangiran abam tem mantido vibrantes os atóis mais distantes de Kiribati, apesar de a sua população estar a diminuir e a de Tarawa a aumentar. Continua a ser um impulso forte. Escutei esse amor pela terra no som de pessoas cantando de noite na lagoa. Testemunhei-o em alegres danças infantis que imitam o movimento de aves marinhas. Ouvi-o nas palavras de Teburoro Tito, quando ele veio ao meu encontro entre sessões parlamentares e me disse que, no fundo do seu coração, era um rapaz das ilhas: “Cresci na terra, na areia e no coral deste local. Adoro estas ilhas e não consigo conceber outro lar no mundo.”
Para proteger esse lar do oceano esfomeado, alguns ilhéus passaram a dedicar-se ao plantio de mangues, cuja rede de raízes e troncos retém os sedimentos e acalma a fúria das ondas. Há pouco mais que os ilhéus possam fazer para reter a sua terra para lá da reconstrução das suas defesas costeiras quando as ondas as destroem.
“Se todos os países do Pacífico trabalharem juntos, poderemos manter as nossas ilhas e ficar aqui.”
Os mangues podiam ser um bom símbolo nacional: árvores resilientes capazes de resistir às tempestades e de agregar a terra. O símbolo actual, inscrito na bandeira de Kiribati, também é evocativo: eitei, a fragata, a ave dos chefes, a ave da dança, que voa bem alto pairando ao sabor do vento, em vez de lutar contra ele. Porém, as fragatas têm de seguir os cardumes que as alimentam. Se o peixe partir de vez, continuará a cauda bifurcada da fragata a cortar os céus de Kiribati?
Uma das plantadoras de mangue, Claire Anterea, que trabalha no programa de adaptação climática do governo de Kiribati, disse que o povo tem de reconhecer o seu papel nas alterações climáticas, por pequeno que seja, e tentar compensá-lo. “Contribuímos menos, mas contribuímos na mesma”, disse. “Temos comido muitos alimentos ocidentais. Gostamos de noodles, gostamos de carne de conserva. E essa comida é feita em fábricas que emitem gases. Estamos todos a contribuir porque queremos viver como os ocidentais.”
Claire acabara de construir uma casa tradicional, alimentada por energia solar. “Não posso falar sobre a justiça climática no estrangeiro se não der o exemplo”, afirmou. Até pequenos gestos podem gerar uma cascata de consequências. “Se todos os países do Pacífico trabalharem juntos, poderemos manter as nossas ilhas e ficar aqui.”
Os habitantes de Kiribati podem viver em ilhas pequenas, mas não existe nada de pequeno na ideia que têm do lugar que ocupam no mundo.
Na minha última noite em Tarawa quis demonstrar solidariedade para com os meus vizinhos de Kiribati. Também sou um ilhéu do Pacífico, embora as ilhas montanhosas da Nova Zelândia não enfrentem nada semelhante à ameaça que paira sobre os atóis onde grande parte da superfície fica apenas cerca de um metro acima do nível do mar. No entanto, o “sangue azul da Oceânia”, como o poeta kiribati Teweiariki Teaero chama ao Pacífico, liga-nos como uma família.
Estávamos sem electricidade, um problema comum, e, por isso, duas das minhas amigas plantadoras de mangue sugeriram que levássemos a nossa refeição para a pista do aeroporto. É uma espécie de tradição: as famílias estendem tapetes na pista pouco utilizada e fazem um piquenique nas noites abafadas e sufocantes. Aqui, em contrapartida, está sempre fresco, graças à brisa que sopra vinda do oceano.
Levámos peixe grelhado, arroz e fruta-pão frita para comer e moimoto (cocos verdes) para beber. As luzes da pista de aviação piscavam e o asfalto estava imerso no murmúrio suave da conversa. Encontrámos um lugar sossegado, comemos, falámos e depois deitámo-nos de costas, olhando para o céu estrelado, a “barriga da enguia”, nome que aqui se dá à Via Láctea.
Desejei ter podido baptizar as constelações, como os primeiros navegadores fizeram, conhecendo-as tão intimamente como se fossem seus familiares. Eles descobriram-nas olhando para o céu como se fosse o tecto de uma casa, dividido numa grelha por vigas e fios de colmo. As estrelas nasciam num quadrante, navegavam pelo tecto e punham-se no outro.
Os mestres navegadores conheciam mais de 150 estrelas. Se os deixassem em qualquer ponto do oceano, eles saberiam onde estavam. Os habitantes de Kiribati podem viver em ilhas pequenas, mas não existe nada de pequeno na ideia que têm do lugar que ocupam no mundo.