São 4h54 numa manhã gelada de Novembro de 2016, no Parque Nacional de Yosemite.

A Lua cheia projecta um brilho misterioso sobre a vertente sudoeste do El Capitan, onde Alex Honnold se agarra à parede de granito apenas com as pontas dos dedos e os dois finos rebordos dos sapatos de escalada (“pés de gato”). Tenta realizar uma proeza que os escaladores profissionais há muito consideram impossível: uma ascensão em solo integral da falésia mais simbólica do mundo. Isso significa que está sozinho e vai escalar sem cordas, trepando lentamente os 900 metros de rocha. 

Alex faz incidir a lanterna frontal sobre a próxima superfície fria e lisa de granito onde irá colocar o pé. Vários metros acima dele, a rocha é plana, desprovida de pontos de apoio. Ao contrário do que acontece em secções mais acima desta parede, onde se encontram pequenas reentrâncias do tamanho de um seixo e fissuras minúsculas às quais Alex poderá agarrar-se com os seus dedos extraordinariamente fortes, este troço é uma placa praticamente vertical numa secção chamada Freeblast. Tem de ser ultrapassada com um equilíbrio delicado com subtileza e serenidade. Os escaladores designam-na como escalada de aderência. “É como subir sobre vidro”, disse Alex certa vez. 

Retorce os dedos dos pés. Sente-os dormentes. O tornozelo direito está rígido e inchado, devido a um estiramento grave sofrido dois meses antes, ao cair enquanto treinava esta secção do itinerário. Dessa vez, tinha a corda como segurança. Agora, não pode dar-se ao luxo de cair. A escalada  em solo integral não é como os outros desportos perigosos onde também é possível morrer quando se falha. Aqui, a escalada sem cordas a uma cota que corresponde à altura de um prédio de 60 andares não é “possível”. É morte certa.

Cento e oitenta metros abaixo, estou sentado no tronco de uma árvore tombada, observando o foco minúsculo da lanterna de Alex. Já não se mexe há uma eternidade. Pelo menos, é o que me parece, embora provavelmente não tenha passado mais de um minuto. E eu sei porquê. Alex enfrenta agora aquele movimento que o atormenta há sete anos, altura em que, pela primeira vez, sonhou com esta proeza. Eu próprio já escalei esta placa e a simples ideia de a escalar em solo integral causa-me náuseas. O tronco onde estou sentado fica a menos de cem metros do local onde Alex aterraria se escorregasse.

Um ruído súbito acorda-me para a realidade.
O meu coração falha uma batida. Um operador de câmara, membro da equipa que filma a proeza, corre pelo trilho que conduz à base da fachada. Ouço o ruído estático do intercomunicador móvel. “O Alex vai desistir”, diz.

Graças a Deus, penso. O Alex ficará vivo. 

Vou conversar com ele mais tarde, mas já sei a razão da desistência. Não sente que seja o momento certo. Na verdade, é uma loucura. Interrogo-me mesmo se esta proeza não estará destinada a falhar. 

No mundo da escalada, algumas pessoas acreditam que a escalada em solo integral não deveria ser encorajada. Na opinião dos críticos, esta modalidade é uma temerária ostentação individualista que dá mau nome à escalada, com uma longa lista de baixas. Outros, entre os quais me incluo, consideram-na a mais pura expressão deste desporto. Era essa a atitude do alpinista austríaco Paul Preuss, considerado pelos historiadores o pai da escalada em solo integral. Paul proclamou que a derradeira essência do alpinismo consistia em conquistar uma montanha só com as capacidades físicas e mentais superiores e não com “ajudas artificiais”. Aos 27 anos de idade, já realizara cerca de 150 das primeiras ascensões sem cordas e era aclamado em toda a Europa. No dia 3 de Outubro de 1913, enquanto realizava a escalada em solo integral da Vertente Norte do Mandlkogel, nos Alpes Austríacos, precipitou-se para a morte. 

Os ideais de Paul Preuss perduraram, influenciando gerações sucessivas de escaladores e inspirando o movimento da “escalada livre” das décadas de 1960 e 1970, que defendia o uso de cordas e de outro equipamento apenas como dispositivos de segurança e não como meios para ajudar a ascensão. Só em 1973 surgiu um novo escalador digno de nota nesta modalidade: “Hot” Henry Barber escandalizou a comunidade da escalada ao trepar sem cordas os 450 metros da vertente norte de Sentinel Rock, em Yosemite. Três anos mais tarde, John Bachar, com 19 anos de idade, fez um solo integral da New Dimensions, uma árdua fissura de 90 metros em Yosemite. Ninguém superou essas fasquias até 1987, ano em que o canadiano Peter Croft percorreu em solo integral duas das mais célebres vias de “Big Wall” de Yosemite (Astroman e Rostrum) no mesmo dia! 

A proeza de Peter Croft durou até 2007. Então, Alex Honnold, um homem tímido de 22 anos, viajou para o vale de Yosemite. Deixou o mundo da escalada estarrecido ao repetir a proeza de Croft nas vias Astroman-Rostrum. 

Em 2008, realizou a escalada em solo integral de duas vias famosas: a Moonlight Buttress do Parque Nacional de Zion e a Vertente Normal Noroeste da montanha Half Dome de Yosemite. São duas ascensões tão longas e tecnicamente tão difíceis que nenhum escalador pensara realizar sem cordas. 

É importante sublinhar que a decisão tomada por Alex de fazer o El Capitan em solo integral não foi uma mera proeza motivada pela adrenalina. Em 2009, durante a nossa primeira expedição de escalada em conjunto, ele confidenciou-me a ideia. Havia algo na sua confiança inabalável e na forma como trepava sem esforço paredes rochosas incrivelmente difíceis que transformava o seu comentário em algo mais do que mera gabarolice. 

Alex investigou várias vias de escalada de “Big Wall” El Capitan, acabando por escolher a Freerider, um popular itinerário de ensaio para escaladores veteranos que normalmente demora vários dias a realizar. As mais de três dezenas de “largos”, ou comprimentos de corda, desafiam um escalador em praticamente todos os sentidos: a força dos dedos das mãos, dos antebraços, dos ombros, dos gémeos, dos dedos dos pés, das costas e do abdómen, para não referir o equilíbrio, a flexibilidade, a capacidade de resolução de problemas e a resistência emocional. Em certas horas do dia, o sol aquece a rocha de tal maneira que ela queima ao ser tocada. Horas mais tarde, a temperatura pode descer abaixo do ponto de congelação. As tempestades sopram, há poderosas correntes térmicas ascendentes a fustigá-la e a água brota pelas fendas.
Em certos movimentos decisivos, podem sair abelhas, rãs e aves das fissuras. Pedras de todos os tamanhos podem soltar-se e desmoronar-se. 

O Freeblast pode ser a secção mais assustadora do itinerário, mas, mais acima, existem outros troços fisicamente mais exigentes: uma fissura semelhante a uma chaminé que o escalador tem de atravessar contorcendo-se; uma fissura larga onde terá de esticar quase completamente os braços e as pernas, pressionando a rocha com os pés e as mãos para subir gradualmente. E, 700 metros acima do vale, fica a encruzilhada decisiva da via. Chamam-lhe Boulder Problem e trata-se de uma superfície lisa que requer alguns dos movimentos tecnicamente mais difíceis de toda a escalada.

Ao longo de um ano, Alex passou centenas de horas no Freerider, seguro por cordas, elaborando uma coreografia ensaiada com precisão para cada “largo”, memorizando milhares de complexas sequências de movimentos de mãos e pés. De seguida, recolhia-se na “caixa”, uma carrinha RAM ProMaster. Era ali que registava os pormenores do treino de cada dia, em cadernos de argolas. 

“Então, como correram as coisas lá em cima?”, pergunto-lhe, certa noite, enquanto ele prepara uma refeição vegan na carrinha. Nesse dia, ele treinara o Boulder Problem. 

“Já consegui fazê-lo 11 ou 12 vezes sem cair”, responde. “Mas é, sem dúvida, uma tarefa para a qual precisamos de estar psicologicamente preparados.” Ele demonstra-me a sequência de
11 movimentos para eu ver. 

Antes de enfrentar o Boulder Problem, porém, Alex teria de superar primeiro o Freeblast, que estava a revelar-se a variável mais complicada desta equação de vida-ou-morte. Acompanho-o numa desssas sessões de treino com cordas e, no ponto onde se detivera em Novembro, volta a escorregar. Pelas minhas contas, é a terceira vez que cai neste local. “Este movimento é mesmo inseguro. Não gosto dele”, diz, enquanto fazemos uma pausa acima da placa. Nesse momento, apercebo-me de que Alex nunca dominará este troço com total satisfação, independentemente do número de vezes que o ensaiar. É o único movimento do itinerário que não consegue submeter à força. E acho que ele também sabe isso. 

Na manhã de sábado, 3 de junho de 2017, sete meses após a tentativa falhada de Alex, encontro-me perto do sopé do El Capitan. A vegetação apresenta-se coberta de orvalho. O céu está cinzento, como sempre acontece antes da aurora. Ouve-se apenas o som ténue do vento a roçagar nos pinheiros altos. Espreito por um telescópio e lá está Alex, 180 metros acima do solo, deslocando-se para o Freeblast, a placa de aderência vítrea que o atormenta há quase uma década. Os seus movimentos, habitualmente tão suaves, mostram-se aflitivamente bruscos. O pé percute repetidamente a rocha, como que tacteando experimentalmente o caminho a seguir. E de repente, assim como que do nada, lá está ele sobre uma saliência, tendo superado o movimento que há tantos anos lhe pesa na cabeça. Apercebo-me de que sustive a respiração e, por isso, expiro conscientemente. Ainda faltam milhares de movimentos e o Boulder Problem espreita mais acima, mas desta feita ele não vai voltar atrás. Alex Honnold vai agora a caminho de completar a mais importante escalada da história. 

escalada

Daisy Chung. Arte do El Capitan: Martin Gamache; Clay Wadman; Aldo Chiappe. Fontes: Mark Synnott; Alex Honnold; Greg Stock, Parque Nacional de Yosemite; Sofia Geld, Little Monster Films