Em Março deste ano, a Arca Fotográfica de Joel Sartore ultrapassou a barreira das sete mil espécies documentadas.

“A Nova Arca de Noé”, a exposição do fotógrafo e conservacionista Joel Sartore, pode ser apreciada pelo público português até 29 de Abril de 2018 na Galeria da Biodiversidade do Museu de História Natural e da Ciência da Universidade do Porto. 

É possível que em 2100 metade de todas as espécies da Terra estejam irreversivelmente ameaçadas de extinção. Mas isso não acontecerá se eu conseguir evitá-lo. É essa a ideia subjacente à Arca Fotográfica: levar o público a olhar estas criaturas nos olhos e a preocupar-se o suficiente para as salvar enquanto ainda há tempo. O meu objectivo é fotografar o máximo de espécies em cativeiro antes que o tempo se esgote. Joel Sartore

O Guardião da Arca

Durante muitos anos, Joel Sartore, fotógrafo da National Geographic, trabalhou longe de casa, documentando a vida selvagem do Parque Nacional de Madidi, na Bolívia, escalando os picos mais altos da Grã-Bretanha ou aproximando-se de ursos-pardos no Alasca. Enquanto isso, a sua mulher, Kathy, permanecia na cidade de Lincoln, no estado de Nebrasca, junto dos filhos. “Ele nunca quis mudar fraldas, nem tornar-se um pai caseiro”, diz ela.

 

Em 2005, foi diagnosticado um cancro da mama a Kathy. A doença condenou-a a sete meses de quimioterapia, seis semanas de tratamentos de radiação e duas intervenções cirúrgicas. Joel Sartore não teve escolha: com três filhos, de 12, 9 e 2 anos, não podia prosseguir com as campanhas fotográficas que tinham construído a sua carreira. Nessa altura, recorda agora, “tive um ano para ficar em casa a pensar”. Pensou em John James Audubon, o ornitólogo americano do século XIX. “Ele pintou várias aves que hoje já estão extintas”, diz Joel, que tem quadros em sua casa pintados pelo próprio Audubon. “De certa forma, o naturalista conseguiu antecipar o fim de alguns animais.” Joel reflectiu também sobre o legado de George Catlin, que pintara tribos de nativos americanos “sabendo que o seu modo de vida seria gravemente alterado” pela expansão para Ocidente. O exemplo de Edward Curtis, que “fotografou e gravou, nos primórdios do som e da imagem” culturas nativas ameaçadas, também foi ponderado.

“Por fim, pensei em mim”, acrescenta. “Passei quase vinte anos a fotografar vida selvagem e não conseguira gerar mais preocupação e envolvimento na sociedade civil.”
O fotógrafo questionava-se se uma abordagem mais simples não seria mais eficaz. Os retratos poderiam captar a forma e as características de um animal e, em muitos casos, o seu olhar penetrante. Poderiam também servir para atrair a atenção do público?

Como tudo começou

No Verão de 2006, Joel apresentou a ideia ao seu amigo John Chapo, presidente e director-geral do Zoológico Lincoln Children’s. Pediu autorização para fotografar alguns dos animais daquela infra-estrutura. Apesar da doença de Kathy, ele poderia trabalhar um pouco, desde que perto de casa, e o jardim zoológico ficava a escasso quilómetro e meio de distância. John Chapo autorizou o projecto, embora pensasse então que o objectivo era excessivamente ambicioso.

Ao chegar ao zoológico, Joel pediu apenas duas coisas ao curador Randy Scheer: um fundo branco e um animal que permanecesse quieto. “Que tal um rato-toupeira-pelado?”, retorquiu Randy. Pode parecer estranho que uma criatura tão humilde conseguisse inspirar aquilo que viria a tornar-se a obra de Joel Sartore: a missão de fotografar as espécies cativas do mundo e levar o público a preocupar-se com o seu destino.

rato

RATO-TOUPEIRA-PELADO - Esta espécie de roedor, o primeiro animal fotografado para a Arca Fotográfica, prospera em grandes colónias subterrâneas em zonas áridas da África Oriental.

Na verdade, uma missão de escala planetária iniciada com um roedor minúsculo enquadra-se perfeitamente na filosofia do fotógrafo. “Sinto-me particularmente entusiasmado quando trabalho com criaturinhas como esta porque nunca ninguém lhes vai ligar”, diz.

O conceito da Arca Fotográfica

Calcula-se que existam dois a oito milhões de espécies de animais no planeta. Muitas poderão extinguir-se (as previsões variam entre 1600 espécies e três milhões) até final deste século, devido a perdas de habitat, alterações climáticas e tráfico de animais selvagens. 
Os jardins zoológicos são a última esperança de muitos animais prestes a desaparecer, mas albergam apenas uma fracção das espécies existentes no mundo. Mesmo assim, Joel calcula que serão necessários 25 anos, ou mais, para fotografar a maioria das espécies em cativeiro.

Na última década, ele fotografou mais de 5.600 animais para o seu projecto entretanto cunhado como Arca Fotográfica (Photo Ark). Fotografou animais pequenos como uma rã venenosa preta e verde da família Dendrobatidae ou uma mosca da espécie Rhaphiomidas terminatus. E não esqueceu os grandes animais como o urso-polar e a rena, os animais marinhos como a lula, as aves como o faisão-de-edward. E muitos, muitos mais.

Joel captou retratos de animais que podem ser salvos, mas também de animais condenados. No Verão passado, no zoológico de Dvůr Králové, na República Checa, fotografou um rinoceronte-branco-do-norte, um de apenas cinco remanescentes no mundo. A fêmea de 31 anos deitou-se para dormir no final da sessão. Morreu uma semana depois devido à ruptura de um quisto. Outro rinoceronte-branco-do-norte morreu no Outono de 2015. Restam agora um macho e duas fêmeas. “O desaparecimento dos rinocerontes não é apenas triste; é épico”, lamenta o fotógrafo.

A maioria dos animais da Arca Fotográfica, apoiada pela National Geographic Society, nunca tinha sido fotografada com tanto pormenor anteriormente, com as suas marcas, pêlo e penas tão perfeitamente visíveis. Se desaparecerem, esta será uma forma de recordá-los. O objectivo de Joel “não se resume a um obituário gigante do que desperdiçámos”, afirma. “O objectivo é captar estes animais tal como eram em vida.”

Fotografar os Animais

Há tantas maneiras de fotografar um animal como animais para fotografar, mas Joel segue sempre alguns parâmetros básicos. Todos os retratos são captados com um fundo preto ou branco. “É um excelente equalizador”, afirma. “Um urso-polar não é mais importante do que um rato, e um tigre e um besouro-tigre valem exactamente o mesmo.”

Os animais de grande porte são fotografados nos seus recintos, no interior dos quais Joel pendura uma cortina preta gigante para servir de pano de fundo, ou pinta uma parede. 
Os animais pequenos são instalados numa caixa forrada a tecido, na qual Sartore insere a lente através de uma abertura lateral. “Alguns adormecem ou comem lá dentro”, conta. “Muitos não gostam dela nem um bocadinho.” Ele faz sessões curtas: poucos minutos, no máximo.

Note-se que Joel evita pegar nos animais com as próprias mãos, deixando a tarefa a cargo dos tratadores do jardim zoológico. Se em qualquer momento “o animal evidenciar sinais de stress, a sessão termina”, afirma. “A segurança e o conforto dos animais estão em primeiro lugar.” Nenhum animal ficou ferido.
Joel, contudo, não teve a mesma sorte. “Um grou tentou cegar-me uma vez”, recorda. “Foi assustador.” Um mandril, um primata robusto, deu-lhe um soco na cara. “Mas será que não estou, de certa forma, a pôr-me a jeito?”, pergunta.

A Arca Fotográfica também o mudou. “Tornou-me muito consciente da minha própria mortalidade”, afirma. Se ele não concluir a missão, ainda com milhares de espécies por fotografar, Cole tomará o seu lugar. “Quero que as imagens continuem a fazer o seu trabalho muito depois de eu morrer”, diz Joel.

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