Há cerca de cinco décadas que os seres humanos enterram resíduos nucleares nas profundezas do subsolo – um legado radioactivo que pode permanecer letal durante milhares de anos. No entanto, com mais de 20 repositórios nucleares a ter em consideração e desenvolvimentos a ocorrer pelo mundo fora, como irão os nossos descendentes daqui a 500 gerações conseguir identificar onde e o que são estes locais e porque devem evitá-los? O problema foi abordado com propostas que variam desde monumentos agoirentos e “sacerdócios atómicos” a gatos brilhantes, mas avisar os seres humanos do futuro sobre a existência de perigo é muito mais difícil do que parece.
MARK HOLM, THE NEW YORK TIMES / REDUX
Contentores de carga com resíduos radioactivos no parque de estacionamento do Waste Isolation Pilot Plant (WIPP) no Novo México, em 2014. Localizado 42 quilómetros a sudeste de Carlsbad, o WIPP é o único repositório de resíduos radioactivos a grande profundidade dos EUA.
Ao longo de séculos no nordeste do Japão, por exemplo, as pessoas erigiram enormes tabuletas em pedra ao longo da costa para avisar as gerações futuras sobre a ameaça representada pelos maremotos. Apesar de ter sido decretado que nada deveria ser construído abaixo de determinado limite, muitos residentes posteriores ignoraram ou esqueceram os avisos e construíram casas em zonas vulneráveis, pagando um preço terrível. Mais recentemente, o governo norte-americano definiu um sinal de alerta universal para a radiação na década de 1950 (um trifólio de lâminas negras sobre um fundo amarelo), mas os estudos sugerem que uma percentagem tão pequena como seis por cento da população mundial consegue reconhecê-lo.
O abismo do ‘tempo profundo’
No início da década de 1980, à medida que os governos mundiais e a indústria nuclear ficavam cada vez mais preocupados com o que fazer para armazenar os resíduos nucleares a longo prazo, surgiu um novo campo de estudo: a semiótica nuclear, o estudo muito amplo, esotérico e, por vezes, surreal de como avisar os seres humanos e as civilizações futuras – ou até espécies pós-humanas – sobre o nosso legado mortífero.
A criação da semiótica nuclear atribui-se a um grupo de engenheiros, cientistas, cientistas políticos, psicólogos, antropólogos e arqueólogos, entre outros, que colaboraram com a Human Interference Task Force (HITF). Formada pelo Departamento da Energia dos EUA e a Bechtel Corp. em 1981, esta força de intervenção inspirou-se nas estruturas monumentais, textos sagrados e até maldições de civilizações antigas que chegaram até nós para criar “a maior tentativa consciente de comunicar através do abismo do tempo” da nossa sociedade.
KO SASAKI, THE NEW YORK TIMES / REDUX
Uma tabuleta de pedra em Aneyoshi, no Japão, avisa os residentes para não construírem casas abaixo do marcador devido à ameaça de maremotos. Há séculos que as pessoas erigem estas “pedras de maremotos”, mas muitas gerações futuras ignoraram ou esqueceram os avisos sobre este perigo.
A HITF determinou que a forma mais eficaz de assustar as gerações futurasseria através da criação de enormes monumentos em redor dos locais de armazenamento de resíduos nucleares, concebidos para evocar uma sensação de perigo e horror. Um dos “sinais de stop” propostos é uma vasta paisagem com grandes espinhos semelhantes a rochas emergindo da terra em todas as direcções, enquanto outra sugere uma espécie de “Stonehenge” atómico sobre o local dos resíduos, composto por enormes colunas graníticas assinalando os seus limites, baluartes de terra em redor da zona de implantação da unidade e uma estrutura contendo informação sobre o sítio no seu centro. Cópias adicionais da informação seriam enterradas em redor do próprio sítio e em arquivos espalhados pelo mundo, impressas num papel especial de longa duração, identificadas com a mensagem administrativa possivelmente optimista: “Guardar por 10.000 anos”.
Mesmo com mensagens de aviso igualmente arrepiantes que pudessem ser gravadas em tais criações (por exemplo, “Este local não é um local de homenagem. Nenhuma pessoa morta estimada é honrada aqui… não há aqui nada de valor. O que havia aqui era perigoso e repulsivo para nós”), monumentos desta escala têm probabilidades de chamar a atenção de curiosos criminosos e até de futuros arqueólogos e acabarem por encorajar precisamente aquilo que querem evitar – a escavação do sítio. As pirâmides egípcias são um caso ilustrativo. Ainda lá estão, mas os sacerdotes já desapareceram há muito e nós ignoramos as terríveis maldições, saqueando as suas câmaras de enterramento e profanando os seus mortos.
Ironicamente, uma das propostas mais ridicularizadas submetidas à HITF foi de um “sacerdócio atómico” manipulador e auto-perpetuado, gerido por uma elite que utilizaria mitos, lendas e rituais secretos para criar uma ideia de tabu em redor destes sítios para as gerações vindouras.
O HITF pôs fim ao seu trabalho em 1984, concluindo que qualquer tentativa bem-sucedida de transmitir um aviso a longo prazo precisaria de assentar em arquitectura e marcos monumentais. As estruturas deveriam ser suficientemente duráveis para não precisarem de manutenção durante 10.000 anos e suficientemente inquietantes para levar as pessoas a transmitirem conhecimento sobre elas – quer através de lendas orais ou de arquivos físicos – ao longo de inúmeras gerações.
"Medidores Geiger felpudos"
Alguns anos após a formação do HITF, a escritora Françoise Bastide e o especialista em semiótica Paolo Fabbri desenvolveram uma abordagem muito diferente para manter as gerações futuras longe dos nossos resíduos nucleares enterrados: o Ray Cat, ou Gato Raio. No futuro, pensavam, os gatos poderiam ser criados para mudarem de cor na presença de radiação. Os gatos seriam libertados na natureza e, enquanto as gerações de Gatos Raio vagueassem pela terra, a história dos felinos que mudavam de cor e o perigo por eles representado seria transmitida às gerações futuras através de contos populares e narrativas orais.
Eles achavam que os Gatos Raio funcionariam melhor do que, por exemplo, Cães Raio ou Ratos Raio devido às associações sobrenaturais consistentes que os seres humanos fazem com os gatos em diversas culturas: os egípcios adoravam a deusa gata Bastet, os vikings acreditavam que a carruagem da deusa Freya era puxada por dois gatos e, na China, os agricultores adoravam a divindade gato Li Shou, que protegia as culturas de ratos e afastava os espíritos malignos. O gato também é sinónimo de independência e da liberdade de ir para onde quiser, algo útil num medidor Geiger móvel e felpudo.
“De um ponto de vista científico, um Gato Raio não me parece uma ideia maluca”, diz Kevin Chen, que fundou a Ray Cat Solution 2015: uma comunidade de pessoas fascinadas pelas ideias de Bastide e Fabbri e que exploram a possibilidade de conceber felinos alterados geneticamente para brilharem através de uma interacção enzimática. “Quer dizer, é maluca, mas é tão maluca como a ideia de trazer de volta o mamute lanudo. O conceito existe. A tecnologia não existe, necessariamente, hoje, mas haveremos de descobrir como fazê-lo e talvez possa acarretar outros benefícios”.
O Gato Raio inspirou contadores de histórias, visionários e artistas a juntarem-se ao movimento embrionário de Chen com t-shirts, canções, vídeos de música e até um documentário galardoado: The Ray Cat Solution. Estes produtos culturais ajudam a introduzir estes sinais de aviso de quatros patas no imaginário popular e contribuem para a formação da lenda, tal como os seus criadores pretendiam – e talvez ajudem a desencadear os estudos necessários para dar início ao longo processo de transformar os Gatos Raio de conceito em realidade.
Pergaminhos, não sacerdócios
Quarenta anos após o HITF, a Agência da Energia Nuclear, uma agência intergovernamental sediada em Paris que incentiva a cooperação entre 33 países com tecnologia nuclear avançada, ainda estava a pensar em formas de avisar os seres humanos do futuro sobre entrarem em mausoléus radioactivos tóxicos. A sua iniciativa, Preservation of Records, Knowledge and Memory Across Generations (RK&M), publicou o último relatório em 2019, quando os governos estavam a reconsiderar o uso da energia nuclear como medida para reduzir o aquecimento global.
SILAS STEIN, PICTURE ALLIANCE / GETTY IMAGES
Trabalhadores convertem o antigo poço da mina de minério de ferro de Konrad, em Salzgitter, na Alemanha, num repositório de resíduos nucleares. Enterrar os resíduos nucleares em repositórios geológicos poderá ser a forma mais segura de armazenar estes materiais perigosos, mas a forma como poderemos avisar as gerações futuras sobre a existência destes perigos enterrados ainda é um desafio.
Ao contrário dos “sacerdócios” atómicos e dos “Stonehenges” de há décadas, o relatório da RK&M concentra-se em formas de ajudar os seres humanos do futuro a tomarem decisões informadas através do uso de bibliotecas, cápsulas do tempo e marcos físicos. Em vez de um campo de enormes espinhos rochosos, por exemplo, milhares de marcadores poderiam ser enterrados em redor de um sítio de resíduos nucleares, possivelmente contendo informação registada em materiais duráveis como velo (pergaminho feito de pele animal), em vez de documentos em papel laminado ou unidades de armazenamento USB.
“Acho que houve uma mudança de perspectiva ao longo dos últimos 40 anos”, diz Neil Hyatt, principal assessor científico do Nuclear Waste Services do governo britânico. “Agora a comunidade internacional seguiu em frente… passou a pensar num conjunto multifacetado de mensagens recorrendo a ferramentas diferentes para transmitir informação sobre aquilo que foi feito nestes sítios, de modo a permitir às pessoas decidirem como querem interagir com eles no futuro”.
Hyatt crê que esta abordagem está reflectida nos planos britânicos para encontrar uma comunidade disposta a albergar o repositório nuclear nacional em solo britânico, cultivando uma relação com a dita comunidade não apenas durante a construção do sítio, mas ao longo dos 750 anos que deverá durar o seu funcionamento, encerramento e monitorização pós-encerramento sob controlo institucional.
No seu trabalho, a artista e investigadora Cécile Massart encarna esta nova abordagem. Ela imagina laboratórios criativos construídos sobre futuros repositórios de resíduos nucleares, nos quais escritores-exploradores, artistas-guardiões e cientistas-arqueólogos poderão trabalhar juntos para monitorizar os sítios ao longo de várias gerações. “Os repositórios geológicos tornar-se-ão, eles próprios, plataformas de investigação artística e design paisagístico”, diz Massart.
Por fim, os milénios da longa duração minimizam o tempo humano. “É altamente interessante e desafiante para uma pessoa técnica falar sobre isto porque leva-nos à própria essência do que significa ser humano”, diz Hyatt. “As boas notícias é que temos muito tempo à nossa frente para descobrir as soluções essenciais”.