Conhece estes animais?

A pergunta feita pelo procurador público diz respeito a cinco crias de chita amontoadas numa caixa de transporte, levantada no ar para dois réus conseguirem vê-las a partir da sua cela com grades, na sala de audiências. Os sons de aflição emitidos pelas crias, semelhantes a chilreios, ecoam contra o piso e paredes de betão da sala.

Um dos dois, Cabdiraxmaan Yusuf Mahdi, mais conhecido como Cabdi Xayawaan, olha de relance para as crias. “Nunca as vi antes”, diz.

Uma pausa. Depois, o segundo homem, Maxamed Cali Guuleed, fala: parecem um pouco mais pequenas, talvez, mas são as crias de minha casa – conta ao tribunal. Os homens estão a ser julgados em Hargeysa, a capital da Somalilândia, uma autoproclamada república autónoma no Corno de África. Foram acusados de capturar crias de chita em estado selvagem, enquanto a Somalilândia aperta o cerco às redes que tornaram a região um centro de tráfico destes icónicos e raros felinos.

O processo iniciou-se em Outubro de 2020, quando a polícia, na sequência de uma denúncia, lançou uma operação que conduziu à descoberta de dez crias em casa de Guuleed e à sua detenção e de Cabdi Xayawaan. Em quatro meses, foi a sexta interceptação de chitas na Somalilândia.

Guuleed aproxima-se nas grades da cela para se dirigir ao juiz. Diz que cuidara das crias como um favor ao seu novo amigo, Cabdi Xayawaan, que conhecera meses antes. Quando Cabdi Xayawaan pediu a Guuleed para guardar, temporariamente, alguns bens na sua casa, Guuleed concordou.

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À entrada de um restaurante popular de Hargeysa, a capital da Somalilândia, uma chita está sentada junto de um caixote do lixo. A Somalilândia não é reconhecida pela maioria das nações, mas está a esforçar-se por combater o comércio ilegal de animais selvagens. Apesar disso, para muitos cidadãos da Somalilândia, a protecção da vida selvagem não é uma prioridade.

Esses “bens” eram as chitas. Cabdi Xayawaan chegou a casa de Guuleed com as crias em sacas de malha de plástico no interior do seu automóvel prateado. Deu-lhe algumas centenas de euros para ele comprar leite de cabra para os animais. Guuleed insiste que desconhecia que era ilegal ficar com as crias.

“Dei-lhe as boas-vindas. Era um amigo”, comenta Guuleed. “Cabdi Xayawaan arrastou-me para esta vida. Tenho 18 filhos e quatro mulheres.” Guuleed implora ao juiz por uma segunda oportunidade.

Sentado no banco atrás de Guuleed, Cabdi Xayawaan não reage. Já foi três vezes condenado por crimes relacionados com chitas e tem a reputação de ser o maior traficante destes felinos da Somalilândia. A sua alcunha, Cabdi Xayawaan, significa “Cabdi Animal.” Quando se levanta para apresentar a sua versão dos acontecimentos, exprime-se com indiferença descontraída.

Admite que cumpriu pena de prisão por tráfico de chitas no passado, diz, mas já não está envolvido no negócio. As crias pertenciam a Guuleed. “Não há provas concretas de que eu estivesse envolvido.” O juiz não parece convencido.

Restam menos de sete mil chitas adultas em estado selvagem, segundo estimativas recentes. O comércio internacional de chitas foi proibido em 1975. Mesmo assim, entre 2010 e 2019, mais de 3.600 chitas vivas apareceram à venda ou foram vendidas ilegalmente em todo o mundo, e apenas 10% foram interceptadas por forças da lei, conta a investigadora Patricia Tricorache, da Universidade Estadual do Colorado, que investiga o tráfico de chitas há 15 anos. A captura de chitas é ilegal na Somalilândia desde 1969.

A perda de habitat e as mortes por retaliação infligidas pelos criadores de gado quando os felinos atacam os seus animais são as maiores ameaças à sobrevivência da chita, agravadas pelo comércio ilegal de crias. Ainda lactentes e dependentes, as crias são capturadas na natureza enquanto as progenitoras estão a caçar ou uma progenitora lactante é seguida até à sua toca. A pé, a camelo, de carro e de barco, os traficantes deslocam as crias através do Corno de África e cruzam o golfo de Aden até ao Iémen, uma viagem de 350 quilómetros, ou mais, que pode demorar semanas. As crias que sobrevivem são vendidas como animais de estimação na Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos (EAU), Koweit e outros países do golfo.

Supõe-se que a Somalilândia seja o centro do comércio de chitas, devido ao seu acesso fácil aos animais na Etiópia e no Quénia, aos seus quase 750 quilómetros de orla costeira e à sua proximidade relativamente ao Iémen. Há milénios que todos os tipos de comércio, legal e ilegal, flui pelo golfo de Aden. Hoje em dia, crias de chita, pedras preciosas, seres humanos e muito mais são traficados para fora do Corno de África. Armas, explosivos e munições são traficados para dentro.

O procurador público, Cabdiraxmaan Maxamed Maxamud, levanta-se de repente, empunhando o telefone de Cabdi Xayawaan, confiscado após as detenções. O procurador público mostra ao juiz fotografias e vídeos de crias de chita armazenadas no telefone, algumas locais, outras da Etiópia – bem como fotografias de armas que Cabdi Xayawaan encomendara no Iémen.

Cabdi defende-se. Argumenta que os seus antigos contactos lhe continuavam a enviar fotografias, pedindo-lhe para encontrar compradores para chitas. Reconhece que, por vezes, reencaminhara essas fotografias para o iemenita, mas não por querer fazer negócio. O iemenita, explica Cabdi Xayawaan, deve-lhe 70 mil euros em combustível, mas não tem dinheiro para saldar a dívida. Se o iemenita conseguisse arranjar algumas crias e vendê-las, teria o dinheiro que me deve, diz Cabdi Xayawaan. “Sempre que lhe peço os meus 70.000 euros, [ele] pede mais fotografias. [Ele] tem outros compradores, por isso se vender mais crias, consegue arranjar os 70.000 euros.”

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Com uma máscara para cobrir os olhos e lenços nos ouvidos para o ajudar a manter-se sedado, Astur é submetido a um exame exaustivo num dos centros de salvamento da organização sem fins lucrativos Cheetah Con- servation Fund (CCF), em Hargeysa. As crias traficadas ou confisca- das a redes de criminosos ficam doentes com frequência porque costumam ser sujeitas a viagens longas e extenuantes e privadas de nutrição adequada. Muitas não sobrevivem.

O procurador público diz que Cabdi Xayawaan é um “reincidente” e comenta ao juiz: “É um criminoso que fez do comércio ilegal de animais selvagens parte da sua carreira.”

Em Novembro, Guuleed e Cabdi Xayawaan foram considerados culpados. Sem antecedentes criminais, Guuleed foi condenado a um ano de prisão. Cabdi Xayawaan recebeu uma pena de quatro anos, um recorde para um crime ambiental na Somalilândia. Foi um marco histórico para o sistema judicial da Somalilândia, um marco que as forças da lei e os líderes políticos esperavam ser suficiente para dissuadir o tráfico de chitas.

As dez crias vivem agora num centro de salvamento em Hargeysa, gerido pelo Cheetah Conservation Fund (CCF), uma organização sem fins lucrativos sediada na Namíbia que começou a trabalhar na Somalilândia em 2011, quando o governo pediu ajuda para tratar das crias confiscadas. Em meados de 2021, o CCF geria três espaços em Hargeysa, com quase 60 chitas e um leopardo. Como foram capturados em ambiente selvagem ainda muito novos, nenhum destes animais está equipado para sobreviver na natureza: terão de passar o resto das suas vidas em cativeiro.

Ao longo da his tória , as chitas têm sido símbolos de estatuto. Uma pintura no túmulo de Rekhmiré, um antigo vizir egípcio, mostra visitantes estrangeiros levando tributos ao faraó Tutmés III, incluindo uma chita com uma trela. Um fresco do Renascimento num palácio florentino mostra um Giuliano de Médici adolescente, montado a cavalo com uma chita sentada atrás dele. A estrela de burlesco da era do jazz e agente da resistência francesa Josephine Baker podia ser vista a passear a sua chita, Chiquita – que participava ocasionalmente nos seus espectáculos em palco – pelos Campos Elísios.

Hoje em dia, o Instagram é o lugar certo para se ver e ser visto com uma chita. Muitas publicações públicas de chitas de estimação são da elite de Estados do golfo Pérsico que usam chitas como adereços de prestígio. Existem fotografias de chitas com Lamborghinis e Rolls-Royces, chitas ao lado de piscinas reluzentes e chitas posando com donos e donas sumptuosamente vestidos.

É também no Instagram que muitos traficantes publicam imagens de crias para venda, argumenta Patricia Tricorache. O Instagram não respondeu ao nosso pedido de comentário.

Adereços fotográficos. No golfo Pérsico, as chitas são fotografadas com acessórios de carros sofisticados ou alternativas estilosas de gatos domésticos. A posse de uma chita é frequentemente ilegal, mas as redes sociais publicam fotografias dos animais de qualquer maneira. Apesar da sua associação ao luxo, muitas chitas de estimação sofrem de stress e podem estar malnutridas. Na galeria, os nomes das contas de Instagram estão desfocados de modo a evitar a sua promoção.

A Somalilândia declarou a independência da Somália, sua vizinha a sul, em 1991, no curso de uma guerra civil. Ao contrário da Somália, é uma democracia funcional e relativamente estável. Apesar disso, há grandes desafios. Mantém relações informais com vários países, mas não é oficialmente reconhecida como país pela comunidade internacional – um objectivo decisivo para o governo da Somalilândia, actualmente liderado pelo presidente Muse Biixi Cabdi. A Somalilândia tem falta de infra-estruturas, um PIB per capita inferior a 850 euros por ano e depende economicamente de remessas do estrangeiro. Além disso, secas cada vez mais frequentes eliminam rebanhos inteiros – a pedra angular das vidas somalis. Apesar destes obstáculos, o governo da Somalilândia atacou o comércio ilegal de chitas com mais ardor do que a maioria dos países mostraram ao lidar com qualquer tipo de crime contra a vida selvagem.

“Embora sejamos um país jovem e um país emergente, somos um país que [não] quer assistir ao sofrimento e ao comércio de animais selvagem”, diz Shukri Haji Ismail Mohamoud, ministra do Ambiente e do Desenvolvimento Rural.

O seu ministério tem perseguido o tráfico de chitas, trabalhando com a guarda costeira, as forças armadas, o parlamento, a procuradoria-geral e o ministro do Interior da Somalilândia, responsável pela segurança nacional. É um combate travado para proteger o património natural da Somalilândia, promover a paz e a estabilidade e conquistar reconhecimento internacional como um Estado de direito independente.

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Cinco crias resgatadas são guardadas numa tenda em frente de um aquecedor. Com apenas seis semanas, têm de ser alimentadas com intervalos de poucas horas. Os veterinários do CCF assumem o papel de tratadores de crias muito pequenas, chegando a dormir junto delas. A organização aloja e trata de todas as crias confiscadas da Somalilândia – quase 60 em meados de 2021.

O processo de desenvolvimento das instituições do Estado na Somalilândia desenrola-se sob o pano de fundo de um sistema de clãs que há muito serve de alicerce à sua organização social, segurança comunitária e resolução de litígios. Por vezes, este progresso causa conflitos entre os anciãos dos clãs, que conservam influência e inspiram respeito, e as autoridades civis, que trabalham para modernizar o sistema de justiça e as políticas de conservação.

A resolução de litígios, em particular, costumava ser prerrogativa dos anciãos dos clãs e, em geral, eles tendem a resistir a tentativas para submeter os seus parentes ao sistema judicial formal. Os anciãos pressionam frequentemente dirigentes e funcionários públicos para se afastarem e deixarem que a xeer, ou lei tradicional, decida o desfecho. No que toca a suspeitas de tráfico de vida selvagem, a interferência dos clãs e a corrupção podem impedir que os casos cheguem ao sistema judicial formal, diz Erica Marsh, especialista no Corno de África, embora a situação tenha começado a mudar desde a aprovação da Lei de Conservação das Florestas e Vida Selvagem da Somalilândia em 2015.

Sem reconhecimento diplomático, a Somalilândia não consegue aceder directamente à ajuda internacional nem a fundos de desenvolvimento. Isto significa que as forças da autoridade não dispõem de automóveis para perseguir suspeitos, embarcações para patrulhar as costas e rádios para comunicar entre si. O ministério do Ambiente sente também dificuldade para expandir o seu alcance fora de Hargeysa: poucas pessoas nas isoladas zonais rurais onde o tráfico tem origem estão cientes das leis de protecção da vida selvagem. Para as comunidades pastoris que não costumam considerar as chitas mais do que uma ameaça ao seu gado, vender crias pouco difere de vender cabras.

Histórias de resgates.

Mahdi Faarax Dugsiye tem 38 anos. Tem mulher, sete filhos, 40 cabras e ovelhas e um camelo. Actualmente, é conhecido como o “protector das chitas” na zona onde vive, nos arredores de Bown. No entanto, vários meses antes matou uma a tiro.

Chegara o final da tarde e ele ouviu um ruído. Ao correr em ajuda do seu rebanho, viu uma chita a comer uma cabra. Era a cabra que fornecia leite para o seu filho mais novo. “Fiquei tão revoltado que quase chorei. Tinha de me vingar”, diz. Apressou-se a ir buscar uma arma, uma espingarda herdada do pai. A chita ainda lá estava quando voltou. Disparou uma única bala e atingiu-a no flanco. Ela fugiu, mas ele soube que o animal não tardaria a morrer.

“Beijei a arma. Consegui”, diz Dugsiye, recordando o dia. Para as comunidades pastoris somalis, a riqueza resume-se ao tamanho do seu rebanho e perder uma cabra é como perder dinheiro. Algumas pessoas naquela situação vão à procura de crias de chita. Sabem que há mercado para elas e vender crias pode ajudar a compensar a perda do gado.

Dugsiye, porém, ficou satisfeito com a vingança. Quando era novo, o pai tinha 500 vacas, cabras e ovelhas, uma cáfila de camelos e uma quinta. Se uma chita matasse um dos seus animais, ele não ligava, diz. Era um entre várias centenas. A natureza era mesmo assim, dizia-lhe o pai.

Hoje, o rebanho de Dugsiye tem uma fracção desse tamanho e a quinta desapareceu. As secas são frequentes e a precipitação é errática. Há cheias repentinas quando a chuva cai e as tempestades podem ser mortais.

A terra já não tem capacidade para sustentar os animais domésticos ou selvagens como outrora. E como a seca fez escassear o pasto de qualidade, presas como os antílopes e os facoqueros tornaram-se menos abundantes. Isso obriga as chitas a procurarem outras fontes de alimento – por vezes cabras e ovelhas que os pastores tiveram de levar mais para o interior do habitat das chitas em busca de bom pasto. As chitas desapareceram oficialmente da Somalilândia há décadas, mas a maioria dos pastores diz vê-las de vez em quando.

Um dia depois de Dugsiye matar a chita, Cabdinasir Hussein, director de vida selvagem do Ministério do Ambiente, ia a conduzir em Bown e encontrou uma chita morta na berma da estrada. Um pastor identificou Dugsiye como o atirador e este foi detido. Foi a primeira vez que Dugsiye soube que todos tinham o dever de proteger os animais selvagens.

Poucas pessoas na Somalilândia conhecem as leis do país relativas à vida selvagem, sobretudo nas zonas rurais. As baixas taxas de alfabetização e o nomadismo tornam difícil notificar os pastores, as pessoas que mais probabilidades têm de interagir com animais selvagens, diz Cabdilahi Xasan Warsame, presidente da câmara de Xariirad, uma cidade junto da fronteira etíope onde as pessoas vão vender crias de chita. Ele acredita que, com formação e sensibilização sobre a importância das chitas, as comunidades “tornar-se-ão suas protectoras, em vez de lhes fazerem mal”, sobretudo se os anciãos do clã puderem ser convencidos a assumir a liderança.

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Storm, Guhad e Leo (da esquerda para a direita) descansam dentro de um abrigo de madeira no centro de salvamento do CCF. As chitas traficadas costumam ser capturadas na natureza. Como nunca aprenderam a caçar, não podem voltar a viver em estado selvagem. Até terem uma reserva protegida onde possam viver num ambiente natural, as chitas resgatadas da Somalilândia ficarão confinadas neste local.

Dugsiye foi libertado sem acusação, depois de ouvir uma prelecção sobre a lei e como as chitas merecem protecção por serem parte essencial do legado natural da Somalilândia. “Prometi nunca mais matar uma chita”, diz, acrescentando que jurou denunciar quem o faça.

A sua recém-descoberta dedicação já foi posta à prova. Pouco depois da sua detenção, perdeu mais duas cabras – uma que estava a aleitar e outra prenhe. Porém, diz que enquanto conseguir alimentar os filhos, vai continuar a defender as chitas.

A pobreza leva algumas pessoas a matar ou caçar ilegalmente chitas, mas é a ganância que motiva os principais traficantes. “O negócio do tráfico não é para quem tenha uma gota de piedade no corpo”, diz um traficante de chitas nervoso e com os olhos raiados de sangue. Está a descrever Cabdi Xayawaan.

Sentado à sombra de uma mangueira, enquanto babuínos correm junto do leito seco do rio atrás dele, o traficante explica que agiu como intermediário entre criadores, que caçam ilegalmente as crias do outro lado da fronteira maioritariamente não vigiada da Etiópia, e Cabdi Xayawaan, que as trafica para a costa da Somalilândia e as faz sair da região.

Cabdi Xayawaan é conhecido por todos, desde ministros e oficiais das forças armadas, presidentes de câmara, pescadores e agricultores. “É o pior traficante”, diz o coronel Yuusuf Iimaan Diiriye, comandante da guarnição do exército responsável pelas regiões de Sahil e Awdal, no Oeste da Somalilândia. “É o homem responsável pela extinção das chitas nesta região.”

Cabdi Xayawaan operava frequentemente junto das aldeias onde cresceu, em Sahil. Conhece as rotas onde há menos probabilidades de encontrar patrulhas, as praias com mais (e menos) probabilidades de deparar com guardas costeiros e as aldeias com habitantes a quem pode pagar para estarem alerta. As forças da lei associaram-no a mais de 20 incidentes de tráfico de chitas só em Sahil desde 2012. Mesmo assim, antes de o caso ser julgado no Outono passado, só três detenções prévias tinham resultado em condenações.

Chitas em cativeiro ao longo da história. Actualmente, as casas árabes ricas são o local onde é mais provável encontrar chitas de estimação. No entanto, há muito que são brinquedos da alta sociedade em todo o mundo, desde os faraós e Gengis Khan a nobres do Renascimento italiano, como os Médici.

“É um político com uma rede vasta”, diz um motorista da costa de Sahil que afirma cruzar-se com Cabdi Xayawaan pelo menos duas vezes por mês. Em muitas delas, viu crias de chita (ocasionalmente até crias de leão) no veículo de Cabdi Xayawaan. O motorista diz que Cabdi Xayawaan costuma viajar com homens novos, alguns dos quais armados e com aspecto embriagado – um tabu na Somalilândia islâmica, onde o álcool é ilegal.

Cabdi Xayawaan iniciou a sua actividade há mais de uma década, trabalhando com outro traficante, segundo Timothy Spalla, um investigador financiado pela National Geographic Society que, juntamente com a sua equipa, investiga o tráfico de chitas no Corno de África e no Médio Oriente. Cabdi Xayawaan estabeleceu rapidamente ligações com compradores árabes e assumiu o lugar do seu antigo empregador.

Descrito como inteligente e reservado por um oficial das forças armadas que o deteve no passado, Cabdi Xayawaan tinha vários cartões SIM para o seu telemóvel e um telefone de satélite e trocava frequentemente de carro, diz Spalla. Ele sabe como conquistar lealdades e criar a sua rede, usando para isso charme e incentivos – sobretudo dinheiro.

É uma grande rede. Quando as forças da lei aumentaram a pressão na Somalilândia Ocidental, Cabdi Xayawaan mudou rapidamente as suas rotas comerciais para leste. Costumava traficar sobretudo crias de chita, mas por vezes também traficava crias de leão ou leopardo e levava armas e khat para a Somalilândia, segundo testemunhas oculares, sócios e agentes do governo e das forças da lei. Era frequente ser o próprio a transportar as crias de chita até à praia, para as entregar a traficantes a bordo de navios com destino ao Iémen, diz o motorista e outros que também o viram.

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Cilmi Xaamud Axmed, agente da Guarda Costeira da Somalilândia (ao centro), sobe a bordo de uma embarcação iemenita para verificar licenças de pesca numa patrulha de rotina ao largo do Lughaye. A poucas horas de distância, o Iémen é uma rota comercial movimentada para o tráfico de seres humanos, pedras preciosas, armas e animais selvagens. A guarda costeira é a última oportunidade de interceptar crias traficadas.

O posto da guarda costeir a em Ceel Shiikh, um lugarejo na região costeira central, parece abandonado. Com a pintura a descascar, é um edifício no meio de um grande pátio cheio de equipamento mecânico. Os agentes informaram que não têm veículos para se deslocarem entre os postos e os locais utilizados pelos traficantes junto da praia. Não dispõem de rádios nem telefones de satélite e a cobertura da rede móvel pode ser fraca, sobretudo ao largo da costa. Os poucos veículos de patrulha são meros barcos de pesca.

Os agentes da guarda costeira e os líderes locais de Ceel Shiikh dizem saber há anos que Cabdi Xayawaan traficava chitas através de uma das praias locais. Ele tem boas ligações, diz o comissário do distrito Maxamed Jamac Colaad, mas as pessoas que querem pôr fim ao tráfico também as têm. “A comunidade nómada é como o rádio e as antenas”, diz. “Trabalhamos com eles para tomar conhecimento da situação.” Certo dia, há quatro anos, Cabdi Xayawaan ia a caminho de Ceel Shiikh num Toyota vermelho com crias de chita, planeando aparentemente transferi-las para um navio parado ao largo da costa naquela noite. Sem carro, a guarda costeira montou uma operação a pé. Os agentes sabiam a rota que ele seguiria graças a informadores e esperaram nos arbustos de ambos os lados da estrada. Se tivesse chegado à praia, Cabdi Xayawaan levaria as crias pela areia, entrando com elas nas águas quentes do mar Vermelho para as entregar a iemenitas que teriam saído do navio e andado a vau até à costa. Se os guardas costeiros não conseguissem travar Cabdi Xayawaan antes da entrega, haveria pouca esperança de salvar as crias: os navios da guarda costeira não têm condições para competir com os utilizados pelos traficantes iemenitas.

Quando o carro de Cabdi Xayawaan chegou, deslocando-se aos solavancos sobre a terra e os arbustos espinhosos, os agentes sacaram das armas, saltaram dos arbustos e bloquearam o trilho. Ao revistarem o carro, encontraram seis crias. Cabdi Xayawaan afirmou a sua inocência, mas foi detido. O caso viria mais tarde a ser abandonado, não se sabendo ao certo porquê.

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Julgado por tráfico de chitas em Hargeysa, Cabdi Xayawaan encontra-se atrás das grades de uma cela na sala do tribunal enquanto o juiz fala com ele. Cabdi Xayawaan, que conta com três condenações e tem a reputação de ser um dos mais prolíferos traficantes de chitas da Somalilândia, declarou-se inocente.

Nem todas as aldeias da Somalilândia têm tão poucos recursos como Ceel Shiikh. Em Berbera, onde está a ser construído um porto comercial pela DP World, uma empresa dos Emirados Árabes Unidos, a forte presença da guarda costeira tem reduzido significativamente o tráfico de chitas, diz o coronel Haaruun Saciid Cali, comandante da guarda costeira de Berbera, a maior unidade de comando marinho da Somalilândia. “Não posso dizer que nada escape, mas não é comum.” Quando as suas tropas fazem patrulhas, é a bordo de um navio de 20 metros com dois esquifes mais pequenos, para segurança adicional.

“A orla costeira é longa, porosa e difícil de policiar”, diz Axmad Maxamad Xaaji Du’ale, governador de Sahil. Nas estradas de acesso à costa, não há postos de controlo suficientes para travar o comércio ilícito. Em Berbera, porém, a guarda costeira e as redes de informadores da polícia ajudaram a melhorar a segurança nos últimos anos, obrigando os traficantes a encontrarem outros pontos de saída. O porto é fundamental para a economia da Somalilândia e para obter investimento estrangeiro no futuro e, por isso, “levamos a segurança muito a sério”, diz Du’ale. “Partilhamos o objectivo de ganhar reconhecimento para o nosso país.”

O governo também incumbiu uma unidade das forças armadas de combater o tráfico. O 18.º Batalhão, assim designado em homenagem ao dia da independência da Somalilândia, 18 de Maio de 1991, tem a sua sede na cidade costeira de Lughaye, outro local anteriormente usado por Cabdi Xayawaan para transportar crias de chita para fora da Somalilândia. A unidade tem por missão impedir o tráfico de seres humanos, animais selvagens e, sobretudo, armas.

Um pescador, que trabalha na costa há 30 anos, afirma ter visto todo o tipo de tráfico saindo de Lughaye: seres humanos, combustível, pedras preciosas, leopardos, leões, gazelas.

Há relativamente pouco tempo, andava ele à procura de uma rede de pesca que o vento soprara para longe quando encontrou três homens com várias crias de chita na praia. Nos arredores, havia duas caixas de madeira com respiradouros e cadeados abertos. O navio de recolha estava atrasado, disseram os homens ao pescador. Por isso, tinham deixado as crias sair para apanharem ar fresco.

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O juiz (à esquerda) olha para cinco das dez chi-tas confiscadas no caso de Cabdi Xayawaan e apresentadas como prova em tribunal. Cabdi Xayawaan foi considerado culpado em Novembro de 2020 e condenado a quatro anos de prisão num caso amplamente considerado histórico.

Segundo conta, assistiu ao tráfico de chitas em Lughaye pela primeira vez em 2005 e o local tornou-se um ponto quente, atingindo o auge por volta de 2013. Nessa altura, ele via crias traficadas, no mínimo, uma vez por mês, ocasionalmente uma vez por semana. O surto de guerra no Iémen em 2014 e o bloqueio imposto à sua orla costeira pela Arábia Saudita, seguidos da repressão do tráfico das chitas pelo governo da Somalilândia, abrandaram temporariamente o negócio, diz.

O pescador recorda ter travado conhecimento com Cabdi Xayawaan quando o carro deste avariou um dia, em 2014. Depois disso, os seus caminhos cruzavam-se com frequência. “Foi um dos primeiros traficantes que conheci”, diz o pescador. “É um homem extrovertido e sociável e, frequentemente, muito generoso.”

“A tua comida vem do mar e a minha vem das crias”, disse Cabdi Xayawaan, segundo o pescador. “Por isso, não interfiras.” Depois, Cabdi Xayawaan deu-lhe dinheiro.

Na frescura das paredes de betão do tribunal de Hargeysa, o procurador público regressa frequentemente ao argumento das provas contidas no telefone de Cabdi Xayawaan – sobretudo as mensagens trocadas com o iemenita. Um dia, segundo registos bancários apresentados pelo promotor público, o iemenita transferiu quase 3.500 euros para Cabdi Xayawaan. Pouco depois, recebeu fotografias e vídeos de crias de chita.

tráfico de chitas

Ninguém sabe onde essas crias se encontram agora: poderão estar entre as dez levadas para casa de Guuleed e, mais tarde, resgatadas; talvez tenham embarcado para o Iémen e vivam agora num jardim zoológico privado ou numa mansão; poderão ter morrido. A maioria das crias transaccionadas é alimentada apenas com leite de cabra e carne para substituir o alimento dado pela progenitora e é provável que muitas morram de má nutrição e de outras doenças ao longo do trajecto. As rotas usadas pelos traficantes para deslocarem as chitas desde o Iémen e através do golfo Pérsico não são bem conhecidas, mas muitas crias são provavelmente conduzidas através do Iémen para a Arábia Saudita, segundo Patricia Tricorache. A partir dali, são distribuídas a compradores dentro do país, no Koweit ou nos EAU.

A legislação regulamentadora da posse de animais selvagens como mascotes nestes países pode ser difícil de analisar. Os EAU, por exemplo, proibiram a posse privada de animais “perigosos”, como chitas em 2016. Algumas pessoas entregaram os seus felinos, mas passados cinco anos muitas pessoas ainda os têm, como se pode comprovar por uma pesquisa no Instagram. Algumas, aparentemente, recorrem a um vazio legal que abre excepções para centros de investigação, parques de vida selvagem e jardins zoológicos – incluindo os privados, como é o caso dos jardins zoológicos particulares. O Ministério do Ambiente dos EAU diz que estabeleceu normas rigorosas para as licenças atribuídas a jardins zoológicos e trabalha com autoridades locais para “conceber uma resposta rápida e coordenada para denúncias de posse ilegal”. As sanções podem elevar-se a seis meses de prisão e uma multa máxima de 123 mil euros.

No Koweit, vários donos de crias recusaram-se a falar com a nossa revista com receio de arranjarem problemas com as autoridades, apesar de partilharem publicamente fotografias das suas chitas com milhares de seguidores no Instagram. Independentemente do que as fotografias dêem a entender, as chitas não foram domesticadas. Os animais domésticos são fruto de gerações de criação selectiva, para servirem de companhia, alimento ou força de trabalho. Mas as chitas não se reproduzem facilmente em cativeiro, afirma a bióloga Adrienne Crosier, responsável pelo programa de criação de chitas no Instituto Smithsonian para a Biologia de Conservação. Ciclos reprodutivos inconsistentes e a fragilidade das crias tornam a sua criação mais uma arte do que uma ciência, diz, acrescentando que a maioria das chitas de estimação “vêm da natureza”.

Cabdi Xayawaan está na prisão agora, mas não se sabe ao certo durante quanto tempo. Na Primavera passada, o seu caso foi reaberto por razões que permanecem desconhecidas. Igualmente na Primavera passada, Guuleed, que pagou uma multa e cumpriu apenas parte da sua sentença de um ano de prisão, morreu em casa, em Hargeysa, pouco depois de ser libertado, segundo o Ministério do Ambiente.

Se a condenação de Cabdi Xayawaan for anulada, uma das maiores vitórias da Somalilândia contra o comércio ilegal de crias de chita redundará em fracasso, à semelhança de tantos processos de crimes cometidos contra animais selvagens em todo o mundo.

Até finais do passado mês de Junho, já tinham sido postas à venda, no mínimo, 150 chitas desde o início de 2021.

A National Geographic Society, empenhada em dar a conhecer e proteger as maravilhas do nosso mundo, financia a investigação de Spalla sobre o tráfico de chitas desde 2019 e o actual trabalho da exploradora Nichole Sobecki na República Democrática do Congo. Ilustrações de Joe Mckendry