O rei formoso da ria.

A expansão do mercado asiático e o aumento da procura por espécies marinhas ameaça as populações residentes de cavalos-marinhos da ria Formosa. O embaixador destas águas enfrenta um futuro adverso. 

Nunca vi nada assim. Tão poucos!“, exclama Miguel Correia, removendo a máscara da cara. Após mais um mergulho, encontro-me a bordo de uma embarcação de investigação, no coração do labirinto de sapal da ria Formosa. Neste dia de Primavera, o sol quente e brilhante intensifica os tons verdes e azulados deste ecossistema, revelando a beleza única desta maravilha natural. No entanto, para lá do que os nossos olhos vêem, abaixo da superfície da água, encontramos um cenário soturno que está a preocupar vários investigadores do Centro de Ciências do Mar (CCMAR) da Universidade do Algarve.

Em busca de respostas que expliquem o desaparecimento colossal do animal mais emblemático da ria Formosa, encontro-me na Estação Marítima do Ramalhete na companhia dos investigadores Jorge Palma e Miguel Correia, ambos com mais de uma década de experiência neste tópico.

As duas espécies de cavalos-marinhos – Hippocampus guttulatus e H. hippocampus – enfrentam um futuro adverso.
“Entre 2010 e 2014, os nossos estudos revelaram que as principais ameaças às populações de cavalos-marinhos são de origem antropogénica”, explica Miguel Correia. “A degradação ambiental é, sem dúvida, a mais evidente.”

Ao longo dos últimos anos, a pressão humana sobre este ecossistema tem sido brutal e o habitat essencial destes seres vivos, constituído maioritariamente por pradarias de ervas marinhas, está a desaparecer a um ritmo alucinante. A pesca ilegal através de arrasto de vara (destinada ao caboz, choco e linguado) e o fundeamento excessivo de embarcações agravam o cenário. Estudos recentes demonstraram que a poluição sonora tem igualmente efeitos prejudiciais sobre estas espécies.

De acordo com os investigadores, mesmo a conjugação de todos estes problemas está aquém da mais recente ameaça que paira sobre as águas da ria Formosa: a pesca ilegal de cavalos-marinhos, com destino ao mercado asiático. Antigamente, por ser diferente, místico e de uma beleza rara, o cavalo-marinho era visto como sinal de sorte nesta região. No tempo em que havia pouco interesse por estes seres e antes de ter sido proibida a pesca destas espécies, era possível encontrar estes animais envernizados em lojas de recordações, quando eles eram capturados involuntariamente pelos pescadores, através de pesca acessória.

Mudaram-se os tempos e mudaram-se as vontades. A procura moderna regista uma clara finalidade económica. Maioritariamente destinado à medicina tradicional, o consumo de cavalos-marinhos na Ásia é voraz. As espécies de cavalos-marinhos da ria estão protegidas pelo anexo B da convenção CITES, mas isso não trava necessariamente a captura. Através de métodos não permitidos no Parque Natural, como o mergulho com garrafa e o arrasto de vara, alguns pescadores encontraram aqui uma janela de oportunidade. Com pouco esforço, retiram destas águas um recurso valioso.

No sistema lagunar, o hidrodinamismo é forte, de tal forma que, durante a maré vazia, 80% da ria fica a seco, restando apenas 20% que pode ser habitada por cavalos-marinhos. Expostos e desamparados, tornam-se alvos de fácil captura para os bons conhecedores destas águas.

Enquanto mergulhava na ria, ao aproximar-me destes peixes, reparei que são animais lentos e sedentários. Só quando me aproximei a centímetros de distância é que a minha objectiva os colocou em alerta, desencadeando uma técnica de camuflagem: viram as costas ao perigo, em movimento desajeitado e ao ritmo da mais lenta sinfonia. Imóveis e de olhos esbugalhados, tentam passar despercebidos entre a flora marinha a que se encontravam agarrados. Não é, lamentavelmente, difícil capturá-los.

No Sudeste Asiático, um cavalo-marinho seco (a forma em que é comercializado) chega a valer mais do que vários quilogramas de peixe.
Em 2016, foram apreendidos em Espanha cerca de dois mil cavalos-marinhos, pesando em conjunto sete quilogramas. Provenientes da ria Formosa, estes animais destinavam-se ao mercado chinês e iriam render aos traficantes, segundo as estimativas das autoridades, cerca de dez mil euros.

De 2015 até hoje, o impacte brutal causado pela pesca ilegal desencadeia um declínio abrupto das populações. De acordo com Jorge Palma, censos mais recentes revelaram que a ria alojava cerca de cem mil indivíduos. Parece um número razoável, mas são os últimos resistentes de uma população que, em 2001, era composta por cerca de dois milhões de indivíduos. “Nessa altura, durante um mergulho na ria, era possível encontrar vinte cavalos-marinhos; agora, se encontrarmos 3 ou 4, será um dia proveitoso”, refere o biólogo.
Nem a rápida integração da espécie na Lista Vermelha da União Internacional para a Conservação da Natureza, em 2016, tem travado o declínio.

A nordeste da nossa embarcação, as gargalhadas de um grupo de mergulhadores que acaba de regressar a um semi-rígido atrai a nossa atenção.
A alegria dos turistas é contagiante e o caso não é para menos. Acabam de viver uma experiência única durante uma actividade pioneira no nosso país.
A observação de cavalos-marinhos, através de snorkeling, é a resposta ecológica da área protegida e uma tentativa de sensibilização ambiental dos visitantes.

Durante anos, esta terá sido a maior população do mundo de cavalos-marinhos. Alguns investigadores acreditam que esse estatuto já se perdeu. Os esforços para combater o problema têm sido incessantes. Os investigadores do CCMAR, com o apoio do Parque Natural da Ria Formosa, do Instituto da Conservação da Natureza e da Floresta e da Fundação Oceano Azul/
/Oceanário de Lisboa têm o objetivo de criar mini-reservas de protecção total para serem utilizadas como berçários, originando desta forma indivíduos suficientes para colonizar as restantes zonas da ria. Se respeitadas, estas reservas produzirão benefícios não só para os cavalos-marinhos, mas também para outras espécies que ali habitam. Mas dentro deste gigantesco labirinto de canais, torna-se complicado manter olhos em todo o lado.

De volta a terra, enquanto desembarcamos na doca de Olhão, a tripulação confessa nunca ter imaginado um cenário tão perturbador  como este.
Resistente a tudo, a ria Formosa já provou a sua fenomenal capacidade de regeneração. Mas até quando conseguirá proteger o seu icónico cavalo dos mares?