Numa manhã fria de Novembro, na cidade sub-árctica de Churchill, em Manitoba, no Canadá, Ian Van Nest está sentado dentro do seu SUV aquecido e observa através de binóculos um par de ursos polares que deambula ao longo da costa gelada. Estão suficientemente longe para não serem uma fonte de preocupação, mas cada um dos seus grandes passos trá-los para mais perto da comunidade e Van Nest sabe que poderá ter de fazer alguma coisa em relação a isso dentro em breve.
Van Nest é o agente de conservação de Churchill e, ao longo de várias semanas por ano, a sua principal ocupação é manter os ursos polares e as pessoas afastados uns dos outros. Tal deve-se ao facto de Churchill, uma cidade com cerca de 800 residentes permanentes na costa ocidental da Baía de Hudson, ser a capital mundial dos ursos polares.
Os ursos polares são criaturas do gelo marinho e passam o máximo de tempo possível sobre este, percorrendo vastas distâncias em busca de focas. No entanto, como o gelo da Baía de Hudson derrete completamente todos os verões, os ursos da região têm de passar os meses quentes em terra firme, abrigando se em covis frescos feitos de terra. Quando o Inverno se aproxima e as temperaturas descem, os ursos começam a despertar, dirigindo-se para a tundra ao longo da costa da baía enquanto aguardam que a água congele. Quando isso acontece, o seu trajecto costuma levá-los a contornar – ou atravessar – Churchill.
A maioria dos residentes tem uma história sobre ursos para contar: variantes de virar uma esquina e encontrar inesperadamente um urso que, felizmente, fica tão assustado como elas na maioria das vezes. No entanto, ocasionalmente acontecem incidentes mais graves. Não há fatalidades em Churchill desde 1983, mas um urso derrubou uma mulher na noite de Halloween em 2013, bem como a um homem brandindo uma pá que, ainda de pijama, correu em seu socorro.
De disparar contra ursos a observá-los
Lar das tribos Dene e Cree há mais de 1500 anos, Churchill foi colonizada pelos europeus como um posto de comércio de peles no século XVIII e, ao longo dos 200 anos seguintes, foi um porto, uma base das forças armadas dos E.U.A. durante a Segunda Guerra Mundial e local de um centro de investigação que lançou foguetes suborbitais para examinar auroras e a atmosfera superior.
“Era comum matar 25 ursos numa temporada”, recorda Mike Spence, presidente da câmara municipal da cidade desde 1995.
Ian Van Nest faz a sua patrulha em busca de ursos polares em Churchill, a 11 de Novembro de 2022. Se achar que algum está a aproximar-se demasiado da cidade, vai tentar afugentá-lo. Fotografia de Esther Horvath.
As atitudes começaram a mudar no final da década de 1970, quando os turistas que se encontravam na cidade para observar aves começaram a fazer perguntas sobre a possibilidade de observar ursos no Inverno. Em 1982, a National Geographic lançou um documentário sobre a cidade e os ursos e o segredo foi divulgado. Quarenta anos mais tarde, a época dos ursos polares tornou-se a espinha dorsal da economia da cidade e a causa de grande parte da sua fama, com a sua população a aumentar temporariamente a cada Outubro e Novembro devido à chegada de vários milhares de turistas que se deslocam até ali de avião ou comboio (não existem estradas até à cidade) para passarem desde alguns dias a algumas semanas em busca de ursos polares.
A maior parte do turismo dos ursos acontece na tundra, a pouca distância da cidade, a bordo de buggies especialmente desenhados que podem transportar cerca de 40 pessoas e se parecem um pouco com autocarros com rodas de monster truck. No entanto, não é invulgar avistar um urso na cidade ou à sua volta e os residentes de Churchill aceitam a sua relação singular com o maior carnívoro terrestre do mundo. Existem murais e imagens de ursos por toda a cidade, adornando portas de garagem, paredes e até latas de lixo. Dois dos mais recentes edifícios em cada extremidade da Rua Direita são propriedade de Polar Bear International e usados como parte de uma colaboração em curso, com a cidade e outros parceiros, para estudar e ensinar as pessoas sobre os ursos da região.
“Eu não estaria aqui se não fossem os ursos”, diz Dave Allcorn, um expatriado britânico que ali chegou como turista em 2006. Dave gostou tanto que regressou em 2007, arranjou trabalho como guia e condutor de buggies e mudou-se para a cidade definitivamente em 2009. “Acho fabuloso viver num sítio onde existem ursos polares. É uma coisa épica.”
Um funcionário da Lazy Bear Lodge, em Churchill, veste-se de urso polar no Halloween. Fotografia de Damon Winter, The New York Times/Redux.
“Aquilo que me maravilha é como, durante o Inverno que passam no gelo, estes ursos percorrem literalmente centenas de milhares de quilómetros quadrados”, diz John Gunther da Frontiers North Adventures, uma empresa promove visitas guiadas para observar ursos desde 1987. “E, não sei como, eles regressam a Churchill todos os Outonos. Vemos as marcas nos seus focinhos ou os padrões de cicatrizes num urso e pensamos: ‘mas eu vi este urso antes. Onde é que ele esteve desde que o vi pela última vez?’”
Consciência gera segurança
Mesmo assim, partilhar espaço com várias centenas de mamíferos carnívoros gigantescos, que podem ultrapassar os três metros de altura quando levantados sobre as patas traseiras, pode ser uma experiência tensa. O silêncio nocturno de Churchill é por vezes interrompido pelo som de bombinhas – cartuchos para espingarda com 12 balas que explodem com um estoiro sonoro quando disparadas para o ar – que incentivam um urso curioso a correr para fora da cidade. Os residentes deixam as portas das casas e dos carros destrancadas para o caso de alguém precisar subitamente de um sítio onde se abrigar.
Raramente acontecem incidentes com ursos. O facto de não serem mais comuns deve-se, em grande parte, à consciência dos residentes e ao Polar Bear Alert Program, criado em 1982. Sinais espalhados pela cidade incentivam as pessoas a não caminharem nas zonas mais frequentadas pelos ursos e exibem um número de telefone para relatar avistamentos. No outro lado da linha estão Van Nest e os seus colegas que patrulham a zona diariamente.
A resposta às chamadas pode variar. A maior parte são resolvidas monitorizando a situação até o eventual perigo passar ou disparando bombinhas. Se o urso insistir em aproximar-se da comunidade, Van Nest e os seus colegas podem montar uma armadilha com carne de foca. O urso armadilhado é posteriormente transferido para a Polar Bear Holding Facility, mais conhecida como prisão dos ursos polares, um edifício semelhante a um hangar situado nos arredores da cidade onde fica detido até ser seguro libertá-lo no gelo marinho.
Em 2017, 18 artistas de todo o mundo ofereceram o seu tempo para pintar uma série de murais em edifícios vazios em Churchill. Fotografia de Esther Horvath.
“É um equilíbrio delicado, gerir a coexistência dos ursos polares com os seres humanos e a pressão acrescentada do turismo”, diz Van Nest. “Queremos proteger ursos e humanos, permitindo simultaneamente que as pessoas tenham uma boa experiência com um urso polar”.
Há várias horas que estava a vigiar os dois ursos, uma mãe e a sua cria que vagueiam ao largo da costa, satisfeito por poder deixá-los seguir o seu caminho. Mas agora, esse caminho está a trazê-los demasiado perto e é altura de tomar medidas preventivas. Van Nest pede aos observadores que regressem aos seus veículos e se desloquem para um local seguro e, em seguida, ele e um colega disparam duas bombinhas para o ar. Os ursos fogem até abrandarem e começarem a caminhar majestosamente sobre o gelo.
Para Van Nest, é uma resolução quase perfeita: ninguém corre risco e os ursos são livres de continuarem a sua vida.
“É uma questão de coexistência. Estamos no território deles. Esta também é a sua casa”, diz. “Sempre que lido com urso penso ‘olha, obrigada, obrigada por nos agraciares com a tua presença e foi realmente um prazer conhecer-te’.”