Envolvido por um azul intenso, o meu sorriso abre-se enquanto sou abraçado por um bailado de seres alados. 

Nadando elegantemente em espiral, dezenas de criaturas majestosas aproximam-se curiosas. Ao sabor de uma suave corrente que atravessa estas águas cristalinas, fazem o meu coração palpitar durante uma intensa troca de olhares. Seduzido pelo momento, sinto um desejo incontrolável de tocar num destes gigantes com quase o dobro do meu tamanho. Apesar de saber que é errado estabelecer contacto físico com animais selvagens, não resisto. Com toda a cautela do mundo para não quebrar o equilíbrio deste cenário mágico, estendo a mão e... SPLASH! 

O meu sonho de lembranças do Atlântico Norte, agora distante, é interrompido por uma violenta massa de água que invade a pequena embarcação de pesca artesanal em que me encontro. 

Neste lado do planeta, a cerca de treze mil quilómetros de Portugal, navego por águas da maior nação arquipelágica do mundo. Na companhia da bióloga marinha da Universidade dos Açores e da Universidade de Queensland, Betty Laglbauer, Suari e Sanusi, dois pescadores locais com rostos serenos que não espelham a noite rigorosa que atravessamos, estou prestes a testemunhar a realidade implacável em que vivem as raias-diabo. 

Voando majestosamente pelos oceanos há cerca de 25 milhões de anos, as raias-diabo, também conhecidas como móbulas, são das criaturas mais belas, fascinantes e enigmáticas dos nossos mares. Parentes próximos dos tubarões, estes peixes cartilagíneos são frequentemente confundidos com as suas primas mais célebres, as mantas.
Embora semelhantes fisicamente, seguiram outro percurso evolutivo, dando origem ao género Mobula, composto por nove espécies.


São viajantes incansáveis. A água atravessa as suas cinco fendas branquiais, permitindo-lhes respirar. Assim como a baleia-azul ou o tubarão-baleia, estes peixes pelágicos filtradores realizam diversas maratonas oceânicas, numa busca constante por alimento. Habitantes gregários das águas temperadas e tropicais, satisfazem o seu apetite com zooplâncton e pequenos peixes. Como os nossos antepassados, também as móbulas são donas de uma alma nómada, tanto vivendo em mar aberto como em águas costeiras. Chegam a migrar durante quatro mil quilómetros.

Dependendo da espécie, os seus corpos musculados podem variar entre um e cinco metros de envergadura. Todos os membros deste género são atletas natos. A Mobula tarapacana, por exemplo, consegue mergulhar à velocidade de seis metros por segundo desde a superfície à zona batipelágica, atingindo a incrível profundidade de dois mil metros, onde permanece até noventa minutos, possivelmente para se alimentar. Se tentasse tal proeza, a maioria dos peixes não resistiria à pressão esmagadora e às temperaturas gélidas. A Mobula munkiana, por outro lado, prefere bater recordes de salto em altura, ultrapassando frequentemente a fasquia de dois metros. Vários especialistas acreditam que este comportamento desempenha um papel importante na corte, limpeza de parasitas e comunicação.

Verdadeiros ex-líbris da evolução, as móbulas são os Leonardos da Vinci do mundo das raias. Possuem cérebros pesados e com grande percentagem telencefálica no interior dos enormes crânios. A complexa encruzilhada neuronal que impressiona vários investigadores é um universo de interrogações. Entre inúmeras funções ainda por descobrir, permite que estes animais tenham um comportamento social e migratório, capacidade sensorial aumentada e ainda uma capacidade de aprendizagem de ordem superior. 

Nas lendas do século XVII, época dos primeiros avistamentos, as raias-diabo eram descritas como seres monstruosos devoradores de homens. No entanto, os pescadores e marinheiros que confundiam as suas barbatanas cefálicas com chifres do diabo estavam equivocados. Foi apenas uma questão de tempo até a história inverter o rumo. Actualmente, são estes seres inofensivos que precisam de temer o ser humano. A prova disso é a presença de várias espécies de raias-diabo na lista vermelha de espécies ameaçadas da União Mundial para a Conservação da Natureza. 

O barulho do motor não era suficiente para abafar o misto de nervosismo e euforia que ecoava nas águas escurecidas por uma noite de céu sem estrelas. Apesar dos avisos que nos tentaram proteger de um território subaquático mitológico, a importância da missão prevaleceu. 

No estreito de Bali, pescadores lançam uma rede de emalhar com 420 metros de comprimento e 9 de altura. Esta barreira invisível na coluna de água é um pesadelo para grandes peixes pelágicos como as móbulas e os tubarões.

No estreito de Bali, a dezenas de milhas da nossa base, em Muncar (a vila javanesa com o segundo maior porto de pesca da Indonésia), respiro fundo e, de câmara na mão, salto borda fora. Na escuridão, enquanto a imaginação batalha com a razão, mergulho e procuro com o feixe de luz da lanterna, enfraquecido pela turbidez da água, o “inferno” das raias-diabo. No convés, Betty Laglbauer prepara os marcadores de satélite que serão fixados no dorso das vítimas da rede de emalhar com quatrocentos e vinte metros de comprimento por nove de largura que os pescadores se encontram a recolher. Através deste método, a bióloga pretende calcular a taxa de sobrevivência e os padrões de distribuição das móbulas que são devolvidas ao mar, depois de capturadas acidentalmente por esta arte que se destina à apanha do atum, espadarte, marlim-azul, dourado-do-mar e tubarão-raposa. 

“Atenção, vem aí uma Mobula thurstoni!”, avisa a especialista. No momento em que se preparava para marcar a fêmea prenhe, é impedida repentinamente. “Não vale a pena, está praticamente morta. Esta vem connosco”, explica Sanusi. O regresso a terra firme foi silencioso.

Em 2015, numa viagem ao Peru, um dos países onde diariamente são capturadas várias toneladas de raias-diabo, Betty Laglbauer ficou chocada ao descobrir que não existiam estratégias de gestão para este recurso marinho. Decidiu criar o The Móbula Project para salvar estes animais. Começou por tentar reduzir o impacte da pesca artesanal na Indonésia, a nação que captura mais raias e tubarões em todo o mundo, há três décadas consecutivas. Estima-se que, anualmente, a nível mundial, entre 7 e 38 milhões de toneladas de pescado sejam capturados acidentalmente e devolvidos ao mar, mortos ou a morrer. É uma consequência brutal de pescas selectivas e não sustentáveis. 

Nos recifes de Nusa Penida, uma Manta alfredi nada tranquilamente em direção a uma estação de limpeza. Ao contrário das móbulas, as mantas são espécies protegidas nos seis milhões de quilómetros quadrados da Zona Económica Exclusiva da Indonésia.


A pressão que as actividades pesqueiras exercem constitui uma luta desigual entre o homem e a natureza. Para seres marinhos que geram apenas uma cria a cada dois ou três anos, ao longo de uma vida reprodutiva de apenas dez, não somos um adversário, mas sim uma sentença. Ao contrário das mantas, espécies carismáticas e protegidas nos seis milhões de quilómetros quadrados da Zona Económica Exclusiva do país, as móbulas não têm estatuto de proteção. A inclusão em 2016 no anexo II da Convenção sobre o Comércio Internacional de Espécies da Fauna e da Flora Selvagem Ameaçadas de Extinção, que passou a proibir a sua comercialização internacional, parecia ser uma vitória face à procura desenfreada de guelras pelo mercado chinês, mas pouco mudou na prática. Quando um fruto como este é proibido, torna-se mais apetecido por aqueles que descobrem novas oportunidades no mercado negro. 

Em 2017, uma operação do Ministério das Pescas e Assuntos Marinhos apreendeu duas toneladas de guelras na vila de Sedayu, que se encontravam no interior da maior fábrica ilegal identificada até hoje, secas e prontas para exportação.

“O combate a este problema promete ser um longo caminho. A única solução tem de beneficiar todas as partes interessadas”, admite Betty Laglbauer. Com o objectivo de munir os decisores políticos de ferramentas para a implementação de medidas de gestão sustentáveis, o The Mobula Project associou-se ao Instituto Indonésio de Ciências e a comunidades piscatórias locais.
A cooperação estendeu-se ainda a organizações não governamentais, como o Manta Trust.

No porto piscatório de Muncar, o segundo maior da Indonésia, centenas de embarcações de pesca artesanal preenchem a paisagem dos fins de tarde.

A primeira reza do dia projectada pelos megafones das mesquitas de Muncar, às quatro horas da madrugada, é o nosso despertador. Após mais uma viagem de motorizada entre campos de palmeiras, estamos no porto de pesca para retomar os trabalhos da equipa de Betty Laglbauer. A lista de tarefas para cumprir em contra-relógio parece infindável, mas as operações só começam depois de nos sentarmos calmamente com os homens do mar para saborear uma chávena de café e fumar cigarros estranhamente adocicados. 

É um sinal de respeito cultural importante para o fortalecimento dos nossos laços. As comunidades locais são uma peça fundamental para o sucesso deste projecto-piloto, que visa reunir informações sobre a biologia, a distribuição geográfica e a abundância destas espécies em locais de captura. Além disso, os aspectos socioeconómicos são cruciais, uma vez que estas comunidades dependem da pesca artesanal, a sua única fonte de rendimento. “Hoje em dia, temos de navegar até muito mais longe para encontrar esses peixes”, queixa-se um pescador à investigadora, que lhe apresenta um cartaz com fotografias de móbulas. 

Os dados históricos fornecidos pelo conhecimento ecológico destas pessoas revelaram o decréscimo colossal de 90% de algumas populações do arquipélago, em escassos dez anos. Felizmente, nem tudo são más notícias: a identificação de zonas raras de reprodução, onde é frequente observar fêmeas prenhes e indivíduos juvenis, trouxe esperança à comunidade científica. 

Ao fim de cinco horas, conclui-se o desembarque do pescado e voltamos à estrada rumo ao último objectivo do dia. Para trás, além das entrevistas aos pescadores, fica uma manhã produtiva de identificação da espécie, sexo, idade, medidas e peso das móbulas encontradas. 

“Nos momentos em que medidas drásticas parecem a única solução, é necessário ver a outra face da moeda que por vezes nos surpreende.
O bairro de Kalimoro é a prova viva disso”, diz Betty, emocionada, enquanto é cercada por crianças do bairro que a querem abraçar.

A alegria desvanece-se no rosto de Sanusi no instante em que é confrontado com a necessidade de proteger as móbulas, durante uma acção de sensibilização ambiental em sua casa. “Os peixes que procuro são outros, com maior valor comercial. No entanto, se aparecer uma móbula, não a posso descartar. É um rendimento adicional para alimentar os meus quatro filhos”, desabafa o pescador, olhando para a sua família, subjugado pelo peso da responsabilidade. Vendidas no mercado, rendem em média quarenta euros a Sanusi. 

Na praia do bairro de Kalimoro, a poluição prospera bem visível no areal onde crianças brincam alheias à visão apocalítica que as rodeia.

Após sobrevoar sete ilhas paradisíacas cercadas por um intenso azul pacífico e navegar entre outras tantas, chego a Lamakera pronto para conhecer as cores de uma revolução. Apesar de as medidas de sensibilização inspirarem gradualmente mudanças no comportamento das partes interessadas, este será um processo demasiado lento para responder atempadamente à urgência do problema. Afortunadamente, os investigadores têm um projecto pioneiro na manga, que promete funcionar como um catalisador de conservação.
O segredo está na visão das móbulas e em luzes LED. 

 “Estas foram baseadas nos protótipos utilizados com sucesso em tartarugas-marinhas”, explica Iqbal Herwata, biólogo da Fundação Misool, enquanto aponta para um conjunto de luzes LED. Em 2010, um estudo conduzido pela Universidade do Hawai, na Baixa Califórnia (México), demonstrou que a utilização de dispositivos luminosos em artes de pesca, como as redes de emalhar, que operam maioritariamente em regime nocturno, funciona como repelente ou chamariz para determinadas espécies marinhas.


Outra particularidade que eleva as móbulas ao pináculo da evolução marinha é o seu sistema visual. Ao contrário dos tubarões, que vêem a vida como um filme monocromático antigo, por possuírem unicamente bastonetes, células fotorreceptoras de estímulos luminosos, os olhos das móbulas detectam um leque variado de cores, devido à presença de fotorreceptores cónicos.

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Segundo os especialistas, a utilização de dispositivos luminosos em artes de pesca com regime noturno, poderá salvar ínumeras espécies vítimas de pesca acessória. Determinadas cores de luzes LED provaram em alguns estudos piloto, serem eficazes na salvaguarda de animais como as móbulas e tubarões.

Graças a uma bolsa de investigação financiada pelo Sea World Australia, Betty Laglbauer está a poucos passos de encontrar os comprimentos de onda das cores que a retina das móbulas detecta e que não coincidem com o espectro visível dos peixes-alvo com valor comercial. “Estou confiante de que a aplicação desta técnica em móbulas será um sucesso. Os nossos resultados preliminares com mantas, que têm um sistema visual idêntico, são animadores”, conta Iqbal. Num estudo-piloto levado a cabo ao longo de seis meses na região de Lamakera, em que foram utilizadas luzes LED vermelhas, a taxa de sobrevivência das mantas foi de cem por cento e as capturas de atum aumentaram. Embora sejam necessários mais estudos, o possível equilíbrio entre o homem e a natureza desperta agora na linha do horizonte.

De volta ao arquipélago atlântico do meu sonho, as manhãs na ilha do Faial, nos Açores, destinadas a longas viagens com a empresa marítimo-turística Norberto Diver, começam cedo e agitadas. A lotação do catamaran está esgotada com doze pessoas oriundas dos quatro cantos do globo determinadas a navegar em oceano aberto para chegar a um local único no mundo.

“Encontros destes na natureza são um raro privilégio”, explica à plateia, durante o briefing de mergulho, José Carvalho, biólogo marinho e guia da empresa. “Além de fornecer experiências únicas que, só por si, transformam mentalidades, é também através de acções de sensibilização que o ecoturismo contribui para a conservação ambiental”, dirá mais tarde o biólogo.

Depois de uma hora a nadar sobre o topo de um monte submarino, conhecido por Banco Princesa Alice, os turistas emergem, estupefactos. Devido às condições oceanográficas especiais, este oásis da biodiversidade marinha atrai centenas de móbulas nos meses de Verão. “Num só dia, cheguei a ver cinquenta”, recorda, nostálgico, Norberto Serpa, proprietário da empresa. Ao leme da embarcação, confessa que gostaria que este local fosse protegido das pescas. “Apesar de já não se pescarem aqui raias-diabo, creio que o turismo de observação de vida selvagem não é compatível com locais onde se capturam animais.” 

O ecoturismo marinho funciona como um importante potenciador do desenvolvimento económico mundial. Gera anualmente cerca de cinquenta mil milhões de euros em receitas, com a participação de 120 milhões de turistas. Nos Açores, o mergulho com tubarões e raias-diabo rende todos os anos cerca de oito milhões de euros, enquanto na Indonésia a mesma actividade com mantas chega aos quinze milhões. 

O ecoturismo na ilha do Faial, especialmente a observação de vida marinha selvagem, funciona como um importante potenciador do desenvolvimento económico regional. Esta é uma actividade sustentável que atrai cada vez mais turistas oriundos de todo o mundo. As autoridades regionais calculam que o mergulho com móbulas e tubarões renda anualmente cerca de oito milhões de euros.

O período de transição até a nossa economia girar em torno de indústrias mais sustentáveis promete ser longo. No entanto, se o equilíbrio ecológico do planeta se tornar uma prioridade na agenda política de todas as nações, ver um dia Sanusi iluminar o mar com as suas redes de pesca ou mesmo vê-lo com um grupo de turistas na sua embarcação, repetindo os mesmos gestos de José Carvalho nos Açores, será uma evolução notável.