Há mais de um século que as colónias de formigas são o tema de infindáveis investigações e fascínio. A escala a que as formigas trabalham em conjunto, como um todo, levou alguns cientistas a considerá-las um superorganismo.
No entanto, apesar de toda atenção dispensada às actividades frenéticas das formigas, os investigadores raramente se concentraram na fase de pupa, durante a qual se metamorfoseiam de larvas em formigas adultas.
“E elas não se mexem, não comem, não fazem nada que seja evidente no meio de todo o frenesim da colónia”, diz Daniel Kronauer, da Universidade Rockefeller, em Nova Iorque, que é mirmecologista, o termo utilizado para designar os cientistas que estudam formigas.
Num artigo publicado esta semana na revista Nature, Kronauer e os seus colegas disseram que as, frequentemente menosprezadas, pupas das formigas prestam um serviço essencial à colónia: os seus corpos em desenvolvimento produzem uma substância semelhante ao leite, que fornece nutrientes importantes ao resto da colónia.
E isto não acontece apenas numa espécie, mas pelo menos numa espécie por cada uma das cinco principais subfamílias de formigas.
Uma descoberta tão abrangente sugere que as excreções leitosas poderão ser comuns em mais espécies de formigas, diz Kronauer, e que podem ter tido origem numa fase incipiente da evolução de todas as formigas.
“Fiquei admirada”, diz Suzanne Foitzik, da Universidade de Mainz, na Alemanha, que não participou no estudo, “pois nunca vira isto antes, apesar de observar formigas há três décadas. Estou muito curiosa e vou iniciar as minhas próprias observações assim que possível.”
Formigas operárias da espécie Ooceraea biroi cuidam de larvas, que colocaram sobre as pupas para estas se alimentarem da substância semelhante ao leite.
Afogando-se em leite
O intrigante líquido foi descoberto por Orli Snir, bolseira de pós-doutoramento que não trabalhara com formigas antes de se juntar ao laboratório de Kronauer. Com um olhar fresco, reparou rapidamente em comportamentos que não pareciam ser explicados pela literatura científica existente.
“As pessoas estudam formigas há 100 anos”, recordou Kronauer, “por isso, no que está [Snir] a falar?”
No entanto, ele concordou com Snir quando ela propôs fazer uma experiência invulgar. Em vez de tentar dar sentido à actividade mista no interior da colónia, onde pupas e larvas estão sob cuidados constantes, sendo deslocadas ou empilhadas, Snir decidiu observar as pupas isoladamente. Demorou algum tempo a perceber como mantê-las vivas, mas acabou por descobrir os níveis certos de calor e humidade. Foi então que algo realmente estranho aconteceu: as pupas começaram a produzir um líquido e em grande quantidade.
Em tanta quantidade, de facto, que muitas estavam a afogar-se nele, diz Snir, pelo menos se não morressem primeiro de uma infecção fúngica. Seria isto um fenómeno anormal devido ao isolamento das pupas da colónia ou algo inteiramente normal que passara despercebido até então? Para descobrir, Snir injetou corante alimentar azul na abertura de onde o fluido saía e colocou as pupas azuladas novamente na colónia.
Uma Myrmecocystus mexicanu bebe fluido de um casulo acetinado. investigadores tingiram fluido com corante alimentar azul no âmbito de uma investigação recente.
Em breve, reparou em formigas adultas a remover o líquido das pupas e a engoli-lo, conforme revelado pela cor azul espalhando-se ao longo das suas entranhas. Elas também depositavam frequentemente jovens larvas sobre as pupas, que também se alimentavam do líquido. Também elas ficaram azuis.
Uma espécie de cola social
A descoberta surpreendeu e maravilhou a comunidade mundial de mirmecologistas.
“É um estudo muito sólido e bem concebido”, disse o mirmecologista Laurent Keller, da Universidade de Lausanne na Suíça, que concordou que o fenómeno pode ser bastante comum.
Bert Hölldobler, da Universidade Estadual do Arizona, que estuda formigas desde a década de 1960, diz ter em tempos suspeitado de que poderia haver algo nas pupas que atraísse as formigas adultas.
“Não voltei a pegar neste tema”, afirma, “embora tenha permanecido na minha mente. Estou absolutamente maravilhado com o que estes investigadores fizeram.”
Uma análise química do líquido revelou que, para além de produtos residuais da metamorfose, este contém todos os aminoácidos essenciais, bem como diversos hidratos de carbono e algumas vitaminas. As pupas de outras espécies de insectos tendem a reabsorver e reciclar estes líquidos nutritivos, diz Kronauer.
A partilha de nutrientes entre diferentes fases da vida nas formigas pode estar na origem do estilo de vida intensamente social desenvolvido por estes insectos ao longo de milhões de anos, sugerem Kronauer e Snir. “Isto faz com que formigas em diferentes fases da vida dependam umas das outras”, diz Kronauer. “É uma espécie de cola social que as mantêm juntas”.
Adria Le Boeuf, mirmecologista da Universidade de Fribourg, na Suíça, estuda a troca de substâncias nutritivas entre larvas e formigas adultas. Ela acrescenta que isso poderá ter aberto caminho para os comportamentos mais complexos por si investigados. “Este fluido pode ter contribuído para a evolução do cuidado cooperativo das ninhadas [de formigas], pois incentivou os adultos a tomarem conta dos mais jovens. E quando as formigas começaram a bebê-lo, isso poderá ter dado origem a transferências de outras coisas”.
Estarão alguns golos de fluido pupal realmente na origem da economia de partilha em permanente expansão das formigas? Uma investigação mais aprofundada deverá conduzir ainda mais descobertas sobre este grupo de insectos que, apesar de ser um dos mais amplamente estudados do planeta, conserva o seu mistério.