Não há números absolutos quando se discute a biodiversidade da Guiné-Bissau ou a do arquipélago de Bijagós, que comemorou no ano passado o vigésimo aniversário de classificação pela UNESCO como Reserva da Biosfera. Mas há indicadores animadores. E, sobretudo, há histórias que só poderiam ter acontecido aqui – com tudo o que isso implica de paixão, responsabilidade ambiental e esperança. Comecemos pela história do Bananas.

Há histórias que só poderiam ter acontecido aqui – com tudo o que isso implica de paixão, responsabilidade ambiental e esperança.

No início de 2014, Manjaco, um colaborador do Parque Nacional Marinho João Vieira e Poilão (PNMJVP), trepou a uma árvore alta com alguma apreensão. Ele e os biólogos no solo temiam o pior: um dos ninhos instalados entre os ramos parecia manipulado e, efectivamente, depois de vistoriado, verificou-se que a cria de papagaio-de-timneh desaparecera. Esta espécie, recentemente separada pelos especialistas do papagaio-cinzento mais comum, tem na ilha de João Vieira um dos escassos territórios identificados como local de reprodução. No âmbito de um apaixonante projecto de conservação do Instituto de Biodiversidade e Áreas Protegidas (IBAP) da Guiné-Bissau, de cientistas portugueses do ISPA – Instituto Universitário e do World Parrot Trust, a espécie está a ser pela primeira vez monitorizada cientificamente. Ninhos artificiais foram igualmente criados e, com extraordinário simbolismo, antigos caçadores furtivos foram recrutados para esforços de conservação. Agora, porém, existia um problema – a predação de ninhos regressara.

Mapa: NGM-P.

Os funcionários do parque promoveram de imediato reuniões com líderes das comunidades bijagós. “Essas reuniões desencadearam uma série de acontecimentos inesperados que levaram à recuperação da cria de papagaio”, conta Mohamed Henriques, um biólogo guineense apaixonado por aves, às quais dedicou a investigação do seu mestrado. Cinco dias depois da detecção do roubo do papagaio, a cria foi devolvida anonimamente – numa caixa de cartão abandonada numa palmeira. Vigilantes, biólogos e curiosos tiveram de aprender de repente cuidados básicos para papagaios. Alimentaram a cria com amendoins torrados previamente mastigados pelos membros da equipa, arroz cozido com óleo de palma e bananas, fruto que a ave mostrou adorar e que lhe valeu rapidamente a alcunha.


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O tecelão (Ploceus cucullatus) constrói afincadamente ninhos em forma de bolsa, utilizando matérias vegetais disponíveis.

Bananas recuperou e, cerca de três semanas depois do desaparecimento, foi devolvido aos cuidados parentais. Uma câmara instalada no ninho mostrou que os progenitores o aceitaram após a aventura e, em breve, a família afastou-se e retomou a normalidade. Hoje, será uma entre as poucas centenas de papagaios que nidificam no arquipélago. Ave difícil de acompanhar, a sua população tem sido estimada através de observações directas e de estimativas em corredores de passagem, mas sabe-se, com certeza, que se a espécie tiver alguma hipótese de futuro, essa hipótese terá de materializar-se nas pequenas ilhas de João Vieira e Meio.

Ausente do território continental da Guiné-Bissau, o papagaio-de-timneh tem o estatuto global de espécie ameaçada.

Ausente do território continental da Guiné-Bissau, o papagaio-de-timneh tem o estatuto global de espécie ameaçada e este incidente, literalmente caído do céu, proporcionou um bom exemplo de demonstração de práticas de conservação que têm sido desenvolvidas pelo IBAP, através do seu director, Alfredo Simão da Silva, com impacte na população das ilhas. A conversão de antigos caçadores furtivos possui um forte simbolismo e introduz vantagens significativas: são eles que melhor conhecem os locais de nidificação (hoje em dia, bem mais longe do solo do que no passado) e que trepam, como acrobatas, pelos troncos acima. São eles igualmente que, ao regressarem à comunidade, introduzem uma nova sensibilidade face a estas aves.

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O guarda-rios-de-poupa (Corythornis cristatus) é particularmente exuberante em comparação com outros membros da família de latitudes mais frias. A plumagem berrante distingue-o durante o comportamento de corte. 

Os bijagós praticam maioritariamente uma religião animista, com forte componente ritual que, em boa medida, contribuiu para a salvaguarda de bolsas de biodiversidade no território que ocupam. Pouparam ilhas, ilhéus e florestas à humanização, considerando-as sagradas e exclusivas para práticas rituais. A sua resistência face ao estrangeiro no passado impediu ao mesmo tempo a aculturação e a integração de práticas exógenas que, no território continental, penetraram com mais facilidade. Mas, como rapidamente se percebe, essas divisórias culturais não chegam para proteger o seu modo de vida e os ecossistemas em que estão inseridos num mundo globalizado. 


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O papagaio-de-timneh (Psittacus timneh) foi recentemente separado do papagaio-cinzento pelos especialistas. É uma espécie rara e um dos últimos refúgios é o arquipélago de Bijagós. Um projecto de conservação tem combatido a caça furtiva e o aprisionamento, facilitando igualmente a reprodução de casais.

Coordenado pelos biólogos Aissa Regalla (IBAP) e Paulo Catry (ISPA), o projecto de investigação ao serviço da conservação no PNMJVP começou em 2013 com objectivos concretos: pretendia dotar a rede de áreas protegidas do país de conhecimento científico concreto sobre o qual pudesse depois ser alicerçada uma estratégia de gestão. Ao mesmo tempo, tal como o episódio do papagaio--de-timneh revelou, o IBAP pretendia integrar as comunidades locais no esforço de conservação, implicando-as na gestão do seu território e escutando os seus pontos de vista, reconhecendo que só assim as áreas protegidas ganham efectivamente dimensão real para lá dos mapas e das decisões de gabinete. Muitos planos de gestão, aliás, incorporaram práticas ancestrais dos bijagós, reconhecendo o seu mérito conservacionista avant la lettre
Durante o projecto, que terminará em 2018 e foi financiado pela Fundação Mava, dois estudantes guineenses (Emanuel Dias e Mohamed Henriques) fizeram o seu mestrado em Lisboa com teses, respectivamente, sobre peixes e aves da Guiné-Bissau. Vários artigos têm sido publicados em revistas internacionais nos últimos anos e estudantes portugueses tiveram igualmente acesso ao terreno em  mestrados e doutoramentos – como o mestrado de Daniel Lopes sobre o papagaio-de-timneh. 

O abutre-das-palmeiras (Gypohierax angolensis) é uma ave versátil. Tem uma dieta diversificada e adaptada às variações do ano. Quando as tartarugas desovam em Poilão, esta e outras aves lançam-se desenfreadamente sobre as crias, procurando capturá-las antes de estas atingirem a segurança do mar.

O conhecimento da biodiversidade de Bijagós aumentou exponencialmente. Foi no âmbito desta colaboração que se fizeram descobertas importantes. “Descobriu-se que as tartarugas-verdes do arquipélago chegam à América do Sul durante a sua fase juvenil”, conta Paulo Catry, sobre um dos ícones mais conhecidos do território, a par dos hipopótamos com hábitos marinhos e dos furtivos manatins. Mas tem sido no ar que as descobertas adquirem relevo.

O conhecimento da biodiversidade de Bijagós aumentou exponencialmente.

Em Fevereiro de 2016, um grupo de biólogos guineenses e portugueses lançou-se à estrada no território continental da Guiné-Bissau. Durante três meses, os investigadores percorreram 1.711 quilómetros de estradas e caminhos, sempre de olhos nos céus. Pretendiam estabelecer o primeiro tijolo do edifício da biodiversidade das aves de rapina no país – quantas são e onde se encontram?
Diligentemente, durante o transecto, detectaram 4.989 aves, correspondentes a 33 espécies – três das quais desconhecidas para o país. Não foi inesperado: nunca um censo desta natureza tivera lugar no país e muitos dados de distribuição datavam de meados do século XX, quando alguns investigadores obstinados fizeram recolhas localizadas para obter espécimes para museus. Como seria de esperar, um censo de cariz científico mudou o panorama do conhecimento sobre o tema.


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O jugudé (Necrosyrtes monachus) é uma espécie de abutre globalmente ameaçada, mas ainda abundante na Guiné-Bissau, onde desempenha um papel importante na limpeza de todo o tipo de lixos orgânicos, tanto na cidade como no campo.

Como indicadores de biodiversidade à escala local, as aves de rapina transmitem informação valiosa sobre a saúde do ecossistema. E a descoberta de que a Guiné-Bissau ainda acolhe milhares de abutres de espécies criticamente ameaçadas, como o jugudé ou o grifo-africano, constituiu um indicador positivo. Outros abutres e águias foram igualmente detectados, embora em muito menor quantidade. De alguma maneira, o projecto do transecto forneceu elementos de esperança e de desânimo: há de facto bolsas de importância mundial para algumas espécies, mas a raridade de avistamento de muitas aves de rapina sugere que também na Guiné-Bissau a intervenção humana teve fortes impactes nas populações selvagens.
Uma vez mais, a ciência forneceu a informação de base – o futuro será o que os decisores quiserem.

A descoberta de que a Guiné-Bissau ainda acolhe milhares de abutres de espécies criticamente ameaçadas, como o jugudé ou o grifo-africano, constituiu um indicador positivo.

O abutre-das-palmeiras é uma ave muito especial em Bijagós. Particularmente oportunista, adapta a sua dieta à sazonalidade. Um estudo publicado este ano pelo biólogo Camilo Carneiro e outros sete autores estudou o comportamento desta ave no arquipélago guineense e validou aquilo que os bijagós sabem há muito: o abutre come o que encontra, dependendo da época do ano. “Tanto consome matéria vegetal, como se alimenta de organismos marinhos e até de crias de tartaruga ou de caranguejo”, explica Mohamed Henriques. “Tudo depende da sua percepção da mudança entre a maré alta e a maré baixa, mas assistimos a alguns momentos de frenesi alimentar.”
A população no PNMJVP foi estimada em 350 a 500 indivíduos, um valor animador face a outros territórios vizinhos. Perseguido em muitos pontos de África, como vários outros membros da sua família, este abutre encontra em Bijagós um invulgar oásis que lhe permite atingir densidades inéditas em zonas costeiras e tirar partido do único delta arquipelágico activo na costa africana atlântica. No ciclo da sua vida, estudando as marés e as oportunidades que estas trazem e adaptando a dieta às disponibilidades da despensa insular, teremos algo a aprender com esta invulgar ave de rapina?

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O arquipélago de Bijagós é um dos locais mais importantes a nível mundial para muitas espécies de aves pernaltas, como a garça-dos-recifes (Egretta gularis).

Na verdade, este paraíso ainda bravio e pouco afectado pela pressão turística tem pela frente algumas nuvens cinzentas – tão cinzentas como o papagaio-de-timneh.
Há muito que se discute a oportunidade de extracção de petróleo na região – já fora dos limites das áreas protegidas, mas com inevitáveis consequências sobre os ecossistemas das imediações. 
A extracção de bauxite, um minério cobiçado, tem igualmente um reverso ambiental doloroso. E a própria expansão territorial das comunidades locais e dos pescadores estrangeiros, intensificando a extracção de recursos, incrementando queimadas e cultivando mais arroz de sequeiro, traz consigo um custo ambiental.
Este é o debate que estará em curso na Guiné-Bissau sobre o seu arquipélago quase prístino que um artigo recente, publicado no Marine Pollution Bulletin, reconhece estar ainda pouco afectado pela poluição e pela contaminação de mercúrio, um dos sintomas das doenças do desenvolvimento industrial e económico.
Mohamed Henriques tem uma visão muito límpida sobre Bijagós: “Não conheço muitos sítios do mundo, mas Bijagós é das coisas mais lindas que o mundo tem. Como cientista, quero contribuir.”