Dion Poncet cresceu num sítio onde quase ninguém vive.

Nasceu a bordo de um veleiro em Leith Harbour, uma estação baleeira abandonada na ilha Geórgia do Sul. O pai, um aventureiro francês, conhecera a mãe, uma zoóloga australiana, num cais da Tasmânia enquanto dava a volta ao mundo no seu veleiro. O casal constituiu família no Atlântico Sul. Durante anos, cruzaram a costa ocidental da península Antárctica, realizando censos da vida selvagem em baías não cartografadas com três rapazes a reboque. Dion foi o primeiro.

Muito mudou no Atlântico Sul desde que Dion Poncet o atravessou, durante a infância, a bordo do veleiro dos seus pais. Eles viajaram desde a ilha Geórgia do Sul, onde Dion, na altura com 9 anos (à esquerda) e o seu irmão Leiv montavam guarda em 1988, para sul, em direcção à Antárctida. “A península Antárctica que conheci quando era miúdo praticamente desapareceu”, diz o explorador. Frans Lanting, National Geographic Creative

A península Antárctica é uma cordilheira de montanhas e vulcões com 1.300 quilómetros que se projecta a norte do continente branco. Era o recreio dos Poncet. O jovem Dion e os irmãos liam, desenhavam e brincavam, mas também perseguiam pinguins, roubavam chocolate em postos de investigação abandonados e desciam em trenó encostas nunca pisadas por um ser humano.

Outras crianças enfrentam rufias no recreio da escola. Dion foi atormentado por moleiros mergulhando a pique, que lhe batiam na cabeça com força suficiente para o fazer chorar. As outras crianças participam em filmes caseiros tremidos. Os rapazes Poncet apareceram num filme da National Geographic em 1990 sobre o significado de crescer na Antárctida. Por vezes, durante os intervalos das aulas em casa, a mãe de Dion obrigava-o a contar pinguins. “Tornou-se rapidamente entediante”, afirma.

Numa manhã gélida há quase 30 anos, eu e Dion estávamos na cabina do seu navio de 26,5 metros de comprimento, o Hans Hansson, examinando o gelo em busca de pinguins de Adélia. Agora com 39 anos, Dion, de maxilar quadrado, é louro, calmo e tem mãos enormes. Passou parte da sua vida adulta a transportar cientistas e outros visitantes em embarcações pelas águas em redor da ilha Geórgia do Sul e da Antárctida a partir da sua base no arquipélago das Malvinas. Acompanhado por uma equipa de fotógrafos chefiada por Paul Nicklen, juntei-me a ele para uma viagem ao longo da costa ocidental da península Antárctica.

Aqui, no fim do mundo, num sítio praticamente livre da presença humana, a humanidade está a destruir uma das zonas selvagens mais ricas do oceano. O consumo de combustíveis fósseis a milhares de quilómetros de distância está a aquecer a costa ocidental da península mais depressa do que quase todos os outros sítios do planeta. O aquecimento está a arrancar pedaços da engrenagem de uma máquina ecológica complexa, mudando aquilo que os animais comem, onde descansam, a maneira como criam os seus juvenis e até como interagem. Ao mesmo tempo, o krill, que serve de fonte de alimento a quase todos os animais que ali vivem, está a ser levado por traineiras de arrasto de países distantes. É depois transformado e incorporado em suplementos dietéticos e farmacêuticos e é utilizado como alimento para os salmões dos fiordes da Noruega e peixes tropicais em aquários.

Há tanto a mudar e tão depressa que os cientistas não conseguem prever o que ocorrerá. “Há uma mudança dramática em curso”, diz Heather Lynch, bióloga da Universidade Stony Brook. “Deveríamos estar preocupados por não sabermos ao certo o que se passa.”

Na costa ocidental da península, as populações de pinguins de Adélia colapsaram: 90% ou mais. Os registos de grandes bandos destas aves concentradas numa baía remontam a 1904. Actualmente, no mesmo local, “há apenas cerca de seis ninhos”, diz Dion. Naquele dia, na cabina, quando avistámos a primeira colónia enorme, já estávamos a sair da costa ocidental da península, rumando à extremidade nordeste.

Na minúscula ilha de Paulet, há milhares de pinguins empoleirados em fila numa encosta rochosa, com espaços regulares entre eles, assemelhando-se à plateia de um teatro. Conseguimos avistar alguns deles vagueando entre as ruínas de uma antiga cabana de pedra construída em 1903 por exploradores suecos naufragados, que sobreviveram a um longo inverno antárctico alimentando-se de pinguins. Num icebergue flutuando a estibordo da nossa embarcação, um grupo ruidoso de pinguins escorregava e colidia como pinos de bowling prestes a balançar. Quando vi um deles, deslizando sobre o gelo polido e cair em cima de outros três, ri-me com gosto. Dion limitou-se a acenar com a cabeça.

A Antárctida não é apenas morte e caos: milhões de pinguins de Adélia ainda prosperam neste continente sem dono. No entanto, as mudanças ocorridas na costa ocidental da península Antárctica são profundas e há poucos observadores mais capazes do que Dion Poncet para prestar um testemunho pungente. O mundo que ele outrora conheceu está a desfazer-se. Ele fala sobre a perda como um miúdo que cresceu numa quinta e viu os subúrbios engolirem a propriedade da família.

A água e o ar quente esculpiram este icebergue. Quando a base derreteu, plumas da água doce do degelo subiram ao longo das faces laterais, trazendo atrás de si água salgada mais quente que talhou fendas profundas. Enquanto o topo derretia, o icebergue tornou-se mais leve e emergiu da água.

“Tomava como garantido o que costumava ver e fazer, todos os lugares onde ia quando era criança”, diz. “Agora percebo que nunca mais será possível.”

Grande parte da Antárctida é um vasto planalto: um deserto alto e desolado, com neve abundante e onde as temperaturas podem descer a registos incrivelmente baixos. A Antárctida de Dion Poncet não é nada assim.

A península Antárctica não é mais comprida do que Itália e encaracola-se para norte em direcção à zona temperada. O seu clima sempre foi ameno segundo os padrões da Antárctida. As temperaturas de Verão sobem frequentemente acima de zero. Pedaços isolados de vegetação cobrem o granito e o basalto. Os pinguins de Adélia vivem ao longo da costa continental, mas a península é também o lar de espécies que o continente, de clima mais inclemente, não consegue acolher: lobos-marinhos-antárcticos, elefantes-marinhos, pinguins-gentoos e pinguins-de-barbicha. Petréis e pombas-antárcticas rodopiam pelo céu. Toda esta vida depende do mar.

Nesta península de relevo acidentado, a calma é perturbada por guinchos, conversas e um movimento concentrado. É um sítio com ângulos bizarros: glaciares fluem até ao oceano e derretem, formando icebergues que assumem todas as formas imagináveis. Icebergues do tamanho de pequenas aldeias parecem chegar ao céu. Até a dezenas de quilómetros de distância conseguimos ouvi-los a estalar e a explodir como canhões.

A paisagem parece selvagem, mas não está intacta. Os seres humanos começaram a alterar a vida nesta região décadas antes de alguém ter sequer visto a Antárctida. Pouco depois de James Cook cruzar pela primeira vez as águas da Antárctida, na década de 1770, os caçadores começaram a abater milhões de lobos-marinhos, sobretudo para fabrico de chapéus e casacos. Também mataram elefantes-marinhos pelo seu óleo, utilizando-o em tintas e sabão. Os primeiros seres humanos a pisar o continente foram provavelmente caçadores de focas do Connecticut, que pisaram brevemente a costa ocidental da península em 1821.

Com o tempo, os baleeiros começaram a caçar baleias. Arrancaram-lhes as barbas para fabricar chicotes, estruturas de guarda-chuva, corpetes e molas de carruagem e usaram o óleo de baleia para dispositivos de aquecimento, lamparinas e margarina. No início do século XX, a ilha Geórgia do Sul tornara-se o paraíso dos baleeiros. Leith Harbour foi a última estação a encerrar, em 1966.

As alterações climáticas deixaram uma marca inconfundível desde então. A temperatura ambiente de Inverno na costa ocidental da península aumentou mais de 5ºC desde a década de 1950. Os ventos provocam mudanças na circulação dos oceanos que trazem as águas profundas, mais quentes, para a superfície, contribuindo para a redução do gelo marinho – a crosta quebrada que se forma quando a superfície salobra do oceano congela. Na actualidade, o gelo marinho aparece e desaparece mais depressa. O período sem gelo na costa ocidental da península dura mais 90 dias do que em 1979. Para termos uma ideia de algo equivalente no hemisfério norte, imagine que o Verão se prolongava subitamente até ao Natal.

No Inverno antes de Dion Poncet nascer, os seus pais passaram semanas a acampar e a explorar a congelada baía de Marguerite, transportando os seus bens e equipamentos de trenó sobre a superfície sólida. “Hoje em dia, isso acabou”, diz Dion. “O gelo marinho mal chega a formar-se.”

A perda de gelo expõe água quente ao ar frio, aumentando a evaporação, que regressa ao continente mais seco do mundo sob a forma de neve ou até de chuva. Numa viagem que fez até à baía de Marguerite em 2016, Dion enfrentou um dilúvio a meio da costa ocidental que durou quase uma semana. “Há 30 anos, penso que nunca ninguém tinha visto uma gota de água cair do céu aqui em baixo”, disse.

A água mais quente vinda das profundezas até afecta o gelo em terra, atacando os glaciares no local onde estes se encontram com o oceano, sob a forma de plataformas flutuantes. Pelo menos 596 dos 674 glaciares da costa ocidental da península estão a regredir, segundo um estudo britânico. Noutras áreas da Antárctida, plataformas de gelo muito maiores estão a derreter e a desfazer-se, o que representa a ameaça de uma subida rápida e global dos níveis dos mares. Na costa oriental da península, o gelo também tem diminuído espectacularmente. Contudo, a costa oriental ainda consegue ser quase 3ºC mais fresca do que a ocidental.
Os ventos prevalecentes empurram com frequência o gelo marinho de oeste, contornando a extremidade da península e chegando a leste, onde um giro de corrente o encurrala contra terra.

A costa ocidental da península é o ponto quente da Antárctida. Frequentemente retratado nos mapas a branco, é agora tão quente que tufos das únicas plantas com flores endémicas do continente, Deschampsia antarctica e Colobanthus quitensis, estão a disseminar-se. O mesmo aconteceu a ervas e líquenes invasores. O musgo cresce agora três vezes mais depressa do que no passado. Os picos da ilha, outrora revestidos de neve, estão agora molhados e a derreter, expondo lama ou fendas gigantescas. “A paisagem está a ficar engelhada”, resume Dion Poncet.

Numa caminhada recente pela costa da ilha Elephant, Dion ficou estupefacto por tudo parecer tão ameno. O clima estava húmido, a terra sem gelo e germinava erva suficiente para nos fazer pensar num prado. “Não parecia a Antárctida”, disse.

Uma chuvada forte caía quando saímos do Hans Hansson em semi-rígidos pretos, rumando a uma costa coberta de seixos junto do estreito da Antárctida, na extremidade setentrional da península. Numa plataforma rochosa colorida por riscas de guano, espiamos vários pinguins de Adélia enlameados. Entre eles há uma cria, cuja penugem cinzenta e fofa se apresenta húmida e emaranhada.

Estes pinguins são a única espécie de pinguim verdadeiramente antárctica da península, pois os pinguins-de-barbicha também vivem na América do Sul e os pinguins-gentoo, com os seus bicos vermelhos, estendem-se daqui até África. Os pinguins de Adélia constroem ninhos com seixos e regressam ao mesmo local todos os anos na mesma altura, mesmo que chova, caia neve ou que o gelo esteja a derreter. Preferem rocha seca ou solo, mas agora são obrigados a construí-los em neve macia e vêem os ninhos desfazerem-se quando a neve derrete ou inundarem-se como charcos quando chove. Os ovos destes pinguins afogam--se em ninhos inundados. Pintos encharcados e fustigados pelo vento estão a morrer congelados. Faltam-lhes as penas repelentes da humidade que protegem os adultos.

Rochas alisadas pelo mar formam um caminho até aos fragmentos de gelo encalhados em terra.  O gelo é essencial para a vida na península Antárctica, que se projecta em direcção à América do Sul.  O aquecimento da atmosfera e da água estão a fundi-lo sobre a terra e no mar.

Os adultos, entretanto, debatem-se com a perda de gelo marinho. Os pinguins de Adélia mudam de penas em plataformas de gelo marinho e usam-nas como poiso para evitarem os predadores entre caçadas. Podem nadar durante dias, mas tendem a mergulhar apenas nas centenas de metros superiores do mar. À medida que as águas aquecem, pinguins mais adaptáveis estão a invadir o seu território. Os pinguins-gentoo — generalistas, altos e gordos – são mais flexíveis em relação a quando e onde constroem ninhos e são mais aptos a pôr ovos novos quando a nidificação corre mal. Caçam mais perto de terra e comem o que estiver disponível. Entre 1982 e 2017, o número de casais de pinguins de Adélia caiu mais de 70% (de 105.000 para 30.000) ao longo da costa ocidental e do arquipélago das Shetland do Sul. Os casais de pinguins-gentoo aumentaram seis vezes, de 25 mil para 173 mil.

O gelo não é só essencial para os pinguins de Adélia. É tão vital para esta região como o capim para a savana. Quando desaparece, as relações podem mudar de forma imprevisível. Certa manhã, perto do estreito da Antárctida, eu, Paul e o fotógrafo Keith Ladzinski vestimos fatos de mergulho e decidimos fazer snorkeling junto da costa. Vemos um pinguim de Adélia inquieto, examinando as ondas criadas por um pedaço de gelo a desfazer-se. A ave parece hesitante em entrar na água e com razão. Uma foca-leopardo nada em círculos e, ocasionalmente, bate com o focinho no gelo.

As focas-leopardo podem pesar quase metade de um pequeno automóvel. As suas mandíbulas cheias de dentes abrem-se mais do que as de um urso. Quando fechada, a sua boca curva-se, esboçando um sorriso travesso. É este o aspecto que o predador tem enquanto rodopia à nossa volta: malicioso, impaciente, como um rei nos seus domínios.

Subitamente, aparecem mais duas focas-leopardo. Dão curvas lentas, enrolando-se em espirais uma atrás da outra. Pouco depois, outras duas juntam-se a elas e ficam de olhar fixo nos pinguins. Um a um, eles entram na água e são perseguidos pelas focas. Alguns pinguins retrocedem e regressam à segurança do gelo, mas outros não têm tanta sorte.

Numa zona pouco maior do que dois hectares, cinco focas não tardam a banquetear-se com os pinguins, abanando e desfazendo os corpos ensanguentados das suas presas.

O espectáculo é hipnótico e “altamente invulgar”, diz mais tarde Tracey Rogers, da Universidade de Nova Gales do Sul. À semelhança dos ursos-pardos, as focas-leopardo são criaturas solitárias que caçam em grandes territórios ao largo da costa. Precisam de plataformas de gelo onde possam descansar entre caçadas. A perda de gelo devido às alterações climáticas está a obrigá-las a agruparem-se mais perto de terra, mudando a forma e o sítio onde caçam e até as suas presas.

As focas-leopardo raramente são vistas junto dos locais de reprodução dos lobos-marinhos-antárcticos. “Alguns caçadores de focas da década de 1800 mantinham diários e registos meticulosos”, diz Doug Krause, biólogo especializado em vida selvagem da Agência Norte-Americana para o Oceano e a Atmosfera (NOAA). “Nenhum menciona a presença de focas-leopardo.” Actualmente, 60 a 80 focas-leopardo rondam a costa todos os anos em Cape Shirreff, no arquipélago das Shetland do Sul. No maior local de reprodução do lobo-marinho-antárctico, matam mais de metade das crias recém-nascidas.

Quando a caça à foca para fins comerciais foi proibida na Antárctida, na década de 1950, os lobos-marinhos-antárcticos começaram a recuperar. Os cientistas pensavam que eles se adaptariam bem a um clima mais quente. Agora, porém, os números de Cape Shirreff estão a descer 10% por ano. “É extraordinário”, diz Doug. “Ninguém adivinharia que isto iria acontecer.”

Também ninguém previra as boas notícias: o crescimento explosivo das baleias--de-bossa. A partir do início do século XX, os baleeiros industriais empurraram a maior parte dos cetáceos da Antárctida para o limiar da extinção e muitas espécies ainda se encontram em dificuldades. Estima-se que as baleias-azuis, por exemplo, totalizassem cerca de um quarto de milhão em 1900: a sua população actual deverá ser apenas 5% desse valor. No entanto, as baleias-de-bossa da Antárctida recuperam actualmente: a sua população está a aumentar 7 a 10% ao ano. “Estão completamente malucas!”, grita Ari Friedlaender enquanto cruzamos as águas do arquipélago de Palmer num esquife.

Este ecologista da Universidade da Califórnia e explorador da National Geographic estuda as baleias-de-bossa ao largo da Antárctida desde 2001, monitorizando a maneira como estas se deslocam e se alimentam e onde o fazem. Tem registos sobre elas a rodopiarem e a brincarem umas com as outras, mergulhando mais fundo do que alguém esperava. Já as viu abrir fissuras no gelo com os seus espiráculos. Para animais que podem pesar até 36 toneladas, tudo isso requer muita energia e, por enquanto, as alterações climáticas estão a aumentar a quantidade de alimento disponível.

Ari Friedlaender observou os primeiros indícios desse aumento durante um cruzeiro em Maio de 2009. O Outono estava a chegar ao fim, por isso ele e os colegas presumiram que as baleias-de-bossa já teriam regressado ao local onde passam o Inverno, junto do Equador e do Panamá. Foi então que um sonar detectou uma mancha de krill com quilómetros de extensão por baixo do navio. “Acordámos no dia seguinte e havia mais baleias do que qualquer um de nós alguma vez vira, em qualquer altura e em qualquer lugar do planeta”, comenta o especialista. Contaram 306 baleias-
-de-bossa numa extensão de 15 quilómetros. “Elas estavam aqui porque não havia gelo.”

As baleias-de-bossa costumavam partir da Antárctida em finais de Março ou inícios de Abril, quando o gelo marinho começava a cobrir as águas. Agora têm mais semanas sem gelo e com mais mar aberto por onde podem deambular à vontade e alimentar-se de krill. Aquelas criaturas translúcidas com olhos parecidos com missangas são do tamanho do dedo mindinho de uma criança, mas viajam em grupos densos que podem ter quilómetros de extensão, com 60 mil ou mais indivíduos num único metro cúbico. As baleias-de-bossa deixam-se ficar pela Antárctida, enchem-se de krill até engordarem, e isso está a provocar um aumento explosivo da população. As fêmeas conseguem gerar crias todos os anos. As progenitoras lactantes estão agora tão fortes que conseguem amamentar as recém-nascidas estando prenhes. “É uma loucura para um animal tão grande”, diz Ari Friedlaender.

Há alguns anos, um quebra-gelos arrastou redes em redor do arquipélago de Palmer, em busca de Pleuragramma antarcticum, um peixe gordo, parecido com a sardinha, que desova sob o gelo marinho. Este era antigamente o peixe dominante ao largo da costa ocidental da península, compondo metade da dieta de alguns pinguins de Adélia. No entanto, a equipa liderada por Joseph Torres, da Universidade da Florida do Sul, andou noite e dia a rondar as ilhas de Anvers e Renaud sem conseguir capturar um único destes peixes. Nestas águas anteriormente geladas, ele tinha praticamente desaparecido. Entretanto, os cientistas repararam que os pinguins estavam a comer mais krill, embora sejam necessários 20 indivíduos para igualar o valor calórico de um Pleuragramma antarcticum.

Haverá krill suficiente para todos? Os pinguins e as baleias-de-bossa comem krill, assim como os moleiros, as lulas, os lobos-marinhos-antárcticos e as focas-caranguejeiras. As focas-leopardo também, tal como as baleias-azuis. Os animais que não ingerem krill alimentam-se de presas que o fazem.

Na década de 1960, frotas soviéticas começaram a circundar o continente. Actualmente, cerca de dez navios por ano capturam krill. Este organismo é utilizado em comprimidos de ómega 3, gomas mastigáveis de óleo de krill e como alimento para o salmão de aquicultura. Na Ucrânia, krill descascado é vendido em latas, como as sardinhas. Por vezes, é processado em enormes traineiras, ainda no mar, sendo cozido e desidratado até ficar reduzido a pó.

Após quase um mês no mar, vemos finalmente um navio de pesca de krill, no estreito de Bransfield. Uma tempestade abana o Long Da, uma traineira chinesa com redes de média profundidade, quando nos aproximamos da sua popa. As redes da embarcação parecem a boca escancarada de um tubarão-baleia. Quando a tripulação puxa a rede, a sua malha verde enrola-se sobre si mesma, envolvendo uma massa compacta de krill.

Por enquanto, o krill permanece abundante em redor da Antárctida. As traineiras capturam uma fracção minúscula do stock continental. A pesca é gerida por 24 países e pela União Europeia, organizados sob a forma da Comissão para a Conservação dos Recursos Marinhos Vivos da Antárctida (CCAMLR). Porém, as populações de krill são cíclicas e os investigadores não conseguem avaliar quão depressa, nem quão gravemente, o aquecimento e a perda de gelo poderão afectá-las.

Vários peritos temem que os navios possam pescar e esgotar o krill em locais de alimentação importantes para a vida selvagem. Em 2017, uma equipa de cientistas norte-americanos resumiu assim o problema: “Se os predadores e a indústria das pescas usarem a mesma população de krill, a remoção de uns poderá limitar a disponibilidade para os outros.” A maior parte da pesca ocorre nos locais onde as alterações climáticas mais afectam os animais, junto da costa ocidental da península.

Em 2017, o Chile e a Argentina propuseram ao CCAMLR uma interdição da pesca de krill em milhares de quilómetros quadrados a oeste e a norte da península. Precisamente neste Verão, grupos ambientais e a norueguesa AkerBioMarine, a maior empresa de pesca, ajudou a convencer a maioria das outras empresas da indústria a evitarem pescar junto de colónias de pinguins nas épocas de reprodução no próximo ano. A partir de 2020, as empresas asseguram que irão manter--se a pelo menos 30 quilómetros das colónias de pinguins durante todo o ano.

Certa noite no Hans Hansson, Dion Poncet desenhou um mapa na cozinha, apontando os locais onde em tempos pescou krill com uma rede de borboletas. Em criança, era comum ver enormes concentrações deste organismo à superfície, diz. “Por vezes, o motor sobreaquecia porque as entradas de água estavam bloqueadas”, recorda Poncet. Agora, “quase nunca o vemos” nesses sítios.

Este ano Poncet vendeu abruptamente o Hans Hansson. Disse que ele e a sua companheira, Juliet Hennequin estavam exaustos. Mas ele também achava que demasiados visitantes tomavam a riqueza da região por garantida, mesmo agora, que está a transformar-se num sítio que ele mal reconhece. “Quando avalio a situação actual, a península Antárctica que conheci quando era criança praticamente desapareceu”, comenta. “Penso muito sobre o que lhe acontecerá.”