Tamara Pierre, de 6 anos, em Ca Douche, traz choublak (flores de hibisco) no cabelo. “Tirei esta fotografia porque o hibisco é uma das minhas flores preferidas”, explica Myrmara.- Fotografia  Myrmara Prophète, 14 anos.

 Os fotógrafos aprendizes haitianos tinham entre 14 e 35 anos e provinham de todas as partes do país e de todos os quadrantes socioculturais. Estavam incumbidos de uma missão tão simples que parecia radical: mostrar ao mundo o Haiti como raramente o país é visto. No fundo, teriam de o mostrar como eles o viam: não apenas o país de catástrofes e salvamentos, mas também um lugar onde o sol brilha e torna o mar cintilante, um lugar animado pela música e pela espontânea irrupção de dançarinos a tocar trompetes de bambu entre a atmosfera de uma festa de rua. Um lugar de orgulho e com possibilidades. 
“Foi bom, porque nós, haitianos, estamos cansados de ler reportagens em jornais estrangeiros que descrevem o nosso infortúnio”, disse-me Junior Saint Vil, meu intérprete e consultor de viagens, que também está a frequentar um curso de Direito. “Aqui existe tanta beleza, tanta força.” Junior sugeriu que visitasse um sacerdote vudu, um houngan, em Arcahaie, uma cidade costeira a cerca de quarenta quilómetros de Port-au-Prince. 

Wilky captou, de manhã cedo, as actividades desenvolvidas na praia Jacmel, enquento os pescadores recolhem as redes. "Gosto muito da maneira como os nossos pescadores trabalham", disse. "Com muita determinação, capturam o peixe para alimentar as suas famílias". Fotografia Wilky Douze, 19 Anos.

Cheguei ao templo numa tarde escaldante de meados de Agosto. Um assistente explicou que o sacerdote se sentia cansado porque estivera levantado quase a noite inteira a prestar serviços telepáticos a um cliente de Miami. Mesmo assim, o venerável homem, que me pediu para não divulgar o seu nome, emergiu vestindo um barrete de lã preta, uma T-shirt de poliéster com padrão de leopardo, calções de praia pretos e uma corrente de ouro ao pescoço. Fez-me lembrar a representação hollywoodesca de um ditador africano em férias.

O vudu nasceu como religião dos escravos da ilha e permanece profundamente enraizado na cultura dos descendentes desses escravos. Por outras palavras, é a religião de quase toda a ilha.
“Você é daquelas pessoas que consideram os haitianos incapazes de tratarem dos seus próprios assuntos?”, perguntou. “Que nos vêem como crianças a precisar de tutela?” Exprimia-se num tom lento e calmo. O aroma a perfume recentemente oferecido aos espíritos vudu pairava no ar. Poças de cera de vela pontilhavam as aspersões de farinha, complexas invocações dos espíritos, chamadas vèvès, no solo do templo.


Manuela Clermont vende pão que traz num cesto, no seu bairro em Camp Perrin. "Compro-lhe pão todos os dias", diz Smith. "Tirei-lhe esta fotografia porque são uma família feliz e trabalham muito para isso" - Fotografia Smith Neuvieme, 32 anos.

O vudu reconhece a existência de um deus supremo, Bondye, palavra crioula para Bon Dieu (Bom Deus), mas deixa a maior parte das tarefas pesadas do quotidiano, como o sucesso nos negócios ou a felicidade no amor, para uma multidão de espíritos, ou lwas, que são manifestações de Bondye. Na sua maioria, são reminiscências dos panteões do Oeste africano e congolês, com correspondência em vários santos do catolicismo romano. O vudu nasceu como religião dos escravos da ilha e permanece profundamente enraizado na cultura dos descendentes desses escravos. Por outras palavras, é a religião de quase toda a ilha.
A religião omnipresente que os forasteiros consideram difícil de compreender e impossível de controlar representa uma ameaça para aqueles que alimentam esperanças de exercer o poder total. Quando os senhores coloniais franceses tentaram suprimi-la nos séculos XVII e XVIII, a prática tornou-se clandestina. Depois de o país conquistar a independência, em 1804, a elite haitiana fez tudo o que pôde para erradicar o vudu que, mais uma vez, passou à clandestinidade. Entre 1915 e 1934, época de ocupação do Haiti pelos Estados Unidos da América, os fuzileiros norte-americanos destruíram os templos do vudu, confiscando os tambores sagrados, e a religião desceu de novo às catacumbas. 

A conversa flui no exterior de um bar em Cap-Haïtien, numa noite quente de Agosto. Para Frico, esta cena é um indício reconfortante de que hoje se vivem tempos mais sossegados. “Como há menos insegurança na cidade, há mais pessoas nas ruas à noite e ainda mais ao fim-de-semana”, explica - Fotografia Frico Bien-Aimé, 24 anos.

Actualmente, o vudu é visível por todo o lado. Nos pátios e casas particulares, existem altares consagrados aos espíritos. No Mercado de Ferro, em Port-au-Prince, há sectores inteiros dedicados às poções vudu, à arte vudu e vêem-se baldes com tartarugas vivas, que são “animais de estimação vudu”, explicou um vendedor. Embora a sua simples existência seja prova de resistência, o vudu ainda parece oculto e fugidio. 


Num mercado de rua em Cap-Haïtien, Maryse (à direita) e a sua amiga Martine vendem produtos religiosos para rituais vudu. “Amo as minhas raízes e tiro muitas fotografias que representam as minhas raízes”, diz Philomène. Fotografia Philomène Joseph, 20 anos.

“Não precisamos de promessas de ajuda externa”, disse o sacerdote, gesticulando na direcção do templo. “Este templo foi construído e decorado inteiramente pela comunidade, voluntariamente.” Inclinou-se para trás na cadeira. “O espírito do Haiti não pode ser destruído. Nem a pior catástrofe conseguirá erradicar-nos.”
O Haiti é o país do hemisfério ocidental mais vulnerável aos efeitos das catástrofes naturais. Os furacões e as cheias são comuns. O primeiro sismo de que há registo ocorreu em 1562. Os terramotos não são tão frequentes como os furacões e as cheias, mas desde o início do século XX optou -se por construir casas, hospitais e escolas em blocos de betão e betão armado, mais resistentes ao vento, ao fogo e à água do que a madeira.
No entanto, quando a terra treme, até os edifícios de betão abrem fendas e desmoronam-se.

O Haiti é o país do hemisfério ocidental mais vulnerável aos efeitos das catástrofes naturais. Os furacões e as cheias são comuns.

O sismo mais recente que se abateu sobre o Haiti teve magnitude 7 e atingiu o país a oeste de Port-au-Prince no dia 12 de Janeiro de 2010. Um número indeterminado, mas seguramente de vários milhares de pessoas, pereceu na catástrofe. O governo haitiano acabou por fixar o número em 316 mil mortos. Segundo cálculos de uma equipa financiada pela Agência para o Desenvolvimento Internacional dos EUA (USAID), o número não pode ter excedido as 85 mil pessoas. Um grupo de universitários norte-americanos fixou o número de mortos em 185 mil. 
De cada vez que acontece uma catástrofe, as organizações não-governamentais (ONG) estrangeiras e os missionários inundam o país com tanta previsibilidade que alguns habitantes locais chamam “estação dos missionários” ao período de rescaldo dos furacões. Embora muitos estrangeiros permaneçam ali apenas durante poucos dias, no equivalente a um período de férias de beneficência, há outros que ali ficam durante anos de trabalho árduo, por vezes fundamental, num país carente de serviços essenciais. No Haiti, existem mais de quatro mil ONG registadas, mas não há supervisão eficaz das instituições estrangeiras de ajuda, nenhuma avaliação imparcial da eficácia da ajuda, nem sequer uma contagem do número de missionários presentes no país. 

Dos cerca de 5,3 mil milhões de euros de ajuda internacional doados ao país para recuperação após a catástrofe, apenas 9,1% foram canalizados para o governo e menos de 0,6% chegaram directamente às ONG e empresas haitianas. 

“Não aprendemos a maneira de fechar a porta aos mecânicos que para aqui querem vir arranjar-nos o motor”, comentou Nixon Boumba, um activista haitiano dos direitos humanos. “Eles mudam-nos as peças, mas não arranjam o automóvel. E, claro, as coisas ficaram piores depois do sismo. A população mostrou-se desesperadamente necessitada de ajuda. Estendeu as mãos e pediu ajuda.” E estendeu as mãos, muito abertas, para imitar os mortos-vivos. 
Dos cerca de 5,3 mil milhões de euros de ajuda internacional doados ao país para recuperação após a catástrofe, apenas 9,1% foram canalizados para o governo e menos de 0,6% chegaram directamente às ONG e empresas haitianas. O Centro para a Investigação Económica e Políticas Públicas, sediado nos EUA, concluiu que a maior parte dos fundos disponibilizados pela USAID (efectivamente monitorizados) tiveram como destino empresas e organizações norte-americanas. “O dinheiro visita o dinheiro”, disse Saint Vil, citando um provérbio da sua mãe. 
É indiscutível que mais de um milhão de haitianos foram deslocados por catástrofes naturais e líderes despóticos, tal como os seus antepassados o foram pela escravidão. Os mais tristemente célebres desses líderes, em tempos recentes, foram os Duvalier, apoiados pelos EUA: François “Papa Doc”, cuja ditadura se prolongou entre 1957 e a sua morte em 1971, e Jean-Claude “Baby Doc”, que manteve o desgoverno do seu pai. 

Presença habitual nesta lagoa em Camp Perrin, Johnny Pierre aproveita bem os recursos disponíveis. “Observei-o a capturar peixes para a família durante vários meses e quis fotografar este momento de madrugada”, diz Smith. - Fotografia Smith Neuvieme, 32 anos.

Baby Doc tinha apenas 19 anos quando ascendeu ao poder. Era um adolescente gorducho com gosto pela vida faustosa. A maioria dos haitianos partiu do princípio de que o seu mandato seria misericordiosamente abreviado, mas os EUA, que disponibilizavam até 3,3 milhões de euros por ano em ajuda quando Baby Doc se tornou presidente, recompensando assim a posição anticomunista do país, aumentaram esse montante para 31,6 milhões em 1975. Baby Doc mantinha a ideologia anticomunista do pai e era um sicofanta ainda mais flagrantemente susceptível aos interesses empresariais norte-americanos. Baby Doc serviu-se da maior parte da ajuda norte-americana para preservar o seu poder, sustentando uma força militar de mais de nove mil efectivos e milhares de Tonton Macoutes, a milícia privada que o seu pai fundara. Tonton Macoute é o termo crioulo para o Homem-do-Saco, uma figura do folclore haitiano que raptava as crianças mal-comportadas, fazendo-as desaparecer no seu saco. Baby Doc foi ainda mais longe e criou a Força Leopardo, a sua própria força de elite de segurança pessoal e antimotim, treinada pelas forças armadas norte-americanas. 
Quando Baby Doc foi deposto, na sequência de um levantamento popular que culminou na sua fuga para França em 1986, o Haiti estava mergulhado no mais completo caos. Durante quase três décadas de tirania sob o regime dos Duvalier, foram assassinados 30 a 60 mil haitianos, muitos dos quais pelos Tonton Macoutes, que também violaram e torturaram inúmeros concidadãos. Cerca de um milhão de haitianos fugiram do país.

Quando Baby Doc foi deposto, na sequência de um levantamento popular que culminou na sua fuga para França em 1986, o Haiti estava mergulhado no mais completo caos.

Dez meses depois da partida de Baby Doc, o Fundo Monetário Internacional emprestou ao Haiti 21,9 milhões de euros. Como contrapartida, foi exigido ao governo haitiano que reduzisse as taxas aduaneiras sobre o arroz importado e outros produtos agrícolas. O esforço de liberalização do comércio desenvolvido em meados da década de 1990 foi liderado por Bill Clinton, visitante tradicional do Haiti e autoproclamado apoiante do seu povo. As imposições externas abriram ainda mais os mercados do Haiti. As taxas sobre o arroz foram reduzidas de 50 para 3%. 
Arroz norte-americano fortemente subsidiado, muito do qual proveniente do Arkansas, o estado natal de Clinton, inundou os mercados haitianos. O arroz dos agricultores haitianos não conseguia competir com as importações baratas e com os donativos. Muitos agricultores, depois de abaterem as suas últimas árvores e de as venderem para carvão vegetal, abandonaram a lavoura e afluíram em massa às cidades, amontoando-se em bairros de lata.
Em Março de 2010, Clinton pediu desculpa pelo papel que desempenhara. “Poderá ter sido bom para alguns dos meus agricultores no Arkansas, mas não correu bem”, afirmou ele à Comissão dos Negócios Estrangeiros do Senado dos Estados Unidos. “Foi um erro. Um erro pelo qual eu também fui responsável… tenho de me lembrar todos os dias das consequências da perda de capacidade do Haiti para produzir colheitas de arroz a fim de alimentar os seus cidadãos, devido àquilo que fiz.” 


A histórica mansão Manoir Alexandra, em Jacmel, danificada durante o sismo de 2010, está a ser reconstruída na praça principal da vila. Segundo Philomène, a cena transmite uma coisa especial: “Eu gosto do velho e do novo." - Fotografia Philomène Joseph, 20 anos.

Em 1492, quando Cristóvão Colombo avistou pela primeira vez a ilha mais tarde conhecida como Hispaniola, chamou-lhe “uma maravilha”. Mas a beleza não serve para comer e, por isso, os espanhóis cometeram um acto ruinoso: mineraram ouro, extraindo do solo cada grama que puderam, e escravizaram os taino para o fazerem. Como resultado, praticamente todos os taino morreram em seguida quer pelo excesso de trabalho quer devido às doenças europeias entretanto introduzidas, como a varíola. 
Chegaram então os colonos franceses, que se assenhorearam do terço ocidental da ilha durante 140 anos e enriqueceram loucamente durante esse período. Trouxeram de África quase um milhão de escravos para a colónia, a que chamaram Saint-Domingue, para arrasar as lendárias florestas da terra, “árvores altas de vários tipos que pareciam tocar no céu”, escrevera Colombo. Procuravam madeira maciça para decorar as suas mansões na Europa e criar espaço para lucrativas plantações de cana-de-açúcar e café. A incipiente catástrofe ambiental tem consequências modernas: o Haiti é hoje um dos países mais desflorestados do mundo, com menos de 2% do seu território revestido por floresta.
Em Saint-Domingue, os senhores franceses tratavam os escravos com tamanha brutalidade que estes morriam aos milhares. Para substituírem os escravos mortos, os franceses importavam mais. Na noite de 22 de Agosto de 1791, quando um sacerdote vudu chamado Boukman lançou o apelo inicial para o levantamento que se transformaria na mais bem-sucedida revolta de escravos da história, os escravos ultrapassavam em número os seus senhores na proporção de dez para um. Em 1804, após 13 anos de insurreição sangrenta, o Haiti emergia como o primeiro estado negro independente da história. 

Um rapaz e o seu cachorro em Jacmel. - Fotografia PhilomèneJoseph, 20 anos. 

A influência de África sobre o Haiti mantém-se indelével. Assim que aterrei no Aeroporto Internacional Toussaint Louverture, tive, quase de imediato, a sensação inquietante de que estava num pequeno país da África subsaariana, como se o Haiti fosse uma lasca mítica que se soltou do continente-mãe, navegando à deriva até ao hemisfério errado. 
Em primeiro lugar, e acima de tudo, espantaram-me os cheiros: a sabão carbólico, ao fumo do carvão vegetal das bancas de comida de rua onde se vendiam búzios frescos, fritos de milho e porco e ao aroma da folhagem vindo dos jardins do subúrbio de Pétionville. Num desses enclaves de gente rica, um Baby Doc doente, regressado em 2011 de um exílio de 25 anos em França, vivia os seus últimos dias em paz e descanso.
A presença do ex-ditador fracassado, falecido a 4 de Outubro de 2014, não atraiu muita atenção dos habitantes locais, talvez porque as pessoas já tivessem suficientes problemas no quotidiano. A realização de eleições parlamentares e autárquicas estava três anos atrasada. No entanto, o Conselho Eleitoral do Presidente Michel “Sweet Micky” Martelly, anunciou que as eleições seriam adiadas por tempo indeterminado. As eleições preliminares para o Parlamento acabaram finalmente por ter lugar em Agosto de 2015. Para alguns dos seus cidadãos, o Haiti tornara-se ainda mais anárquico. 

Havia graffiti, transmitindo desespero e humor, espalhados por toda a capital.

Havia graffiti, transmitindo desespero e humor, espalhados por toda a capital. “O governo criou um grande vazio e nada faz para impedir que esse vazio seja preenchido por aqueles que nos roubam até à última gota de energia, iniciativa e riqueza”, disse Nixon Boumba. “Não podemos deixar que continuem a roubar-nos. Temos de continuar a fazer-lhes frente para nos defendermos, defender a nossa terra, defender as riquezas que existem sob os nossos pés.”
Quando referiu as riquezas sob os pés dos haitianos, Nixon Boumba não se exprimia metaforicamente. Desconhece-se o valor do ouro e outros minérios, como o cobre, a prata e o irídio, existentes no subsolo do Haiti. As prospecções preliminares apontam para um potencial de 17 mil milhões de euros. Em Dezembro de 2012, o Ministério de Energia e Minas emitiu as três primeiras licenças de mineração de ouro e cobre. Um deputado queixou-se mais tarde que só soubera das licenças pela rádio. Dois meses depois, o Senado aprovou uma resolução não-vinculativa que apelava a uma moratória da extracção mineira. Para contornar este impasse, o governo haitiano solicitou ao Banco Mundial uma reformulação da lei da mineração, efectivamente realizada, em estreita parceria com colaboradores da própria sociedade de exploração mineira.


O agitado Mercado de Ferro em Port-au-Prince,  destruído em 2010 na sequência do terramoto, foi reconstruído de forma a ficar igual ao que tinha sido erguido há mais de um século. "Trabalhavam muitas pessoas no Mercado de Ferro", diz Angelaure, "fiquei feliz por ter sido reconstruído". - Fotografia Angelaure Saint Louis, 17 anos.

Em Janeiro de 2015, com a ajuda da Global Justice Clinic da Faculdade de Direito da Universidade de Nova Iorque e do Accountability Coun-sel, o Colectivo de Justiça para a Mineração do Haiti apresentou uma reclamação contra o Banco Mundial, alegando que os haitianos tinham sido esquecidos nos esforços financiados pelo Banco Mundial no sentido de redigir nova legislação pensada para atrair investidores estrangeiros que financiassem a extracção do ouro e outros minérios do Haiti. Em Fevereiro, o Painel de Inspecção, organismo criado para apreciar queixas apresentadas por indivíduos ou instituições afectados por projectos patrocinados pelo Banco Mundial, recusou-se a receber a reclamação, com base em argumentos técnicos. 
Alguns activistas haitianos criticam a relação promíscua entre o Banco Mundial e as empresas mineiras estrangeiras, bem como o desrespeito pelas preocupações dos grupos da sociedade civil haitiana. Nesta perspectiva, trata-se da repetição exaustiva da catastrófica chegada do arroz norte-americano barato. “A recolonização surge de duas formas”, preveniu Nixon Boumba. “Ou as entidades estrangeiras utilizam o nosso espaço para invadir os nossos mercados com os seus próprios produtos ou, pura e simplesmente, roubam-nos tudo o que temos.

Jerny Saint Hilaire em Labadie. - Fotografia Manige Mésidor, 35 anos. 

Agora, temos alguns grupos preparados para combater este hábito extractivo.” O meu interlocutor contou-me a história de Samuel Nesner, um jovem agricultor e activista no longínquo Noroeste do país, que faz voluntariado nos seus tempos livres para ajudar os agricultores a compreenderem melhor os seus direitos e a linguagem daqueles que pretendem extrair recursos minerais da sua terra. 
A viagem de automóvel entre Port-au-Prince e Chansolme, uma comunidade na zona de Trois Rivières que parece situar-se num país diferente do da cidade, demora cerca de seis horas. É um lugar de refúgio e acolhedor, como um lar supostamente deveria ser. A estrada de terra batida, de piso irregular, apresentava-se ladeada de mangueiras e palmeiras. Avistava-se também, de vez em quando, um aglomerado de sumaúmas, árvores gigantes que podem atingir sessenta metros de altura, com troncos contrafortados como se fossem torres. Sagradas para o Loko do vudu, o espírito da vegetação e guardião dos santuários, estas árvores escaparam ao abate. O rio largo corria límpido e poderoso.

A viagem de automóvel entre Port-au-Prince e Chansolme, uma comunidade na zona de Trois Rivières que parece situar-se num país diferente do da cidade, demora cerca de seis horas.

Samuel Nesner, de 28 anos, encontrou-se comigo em Chansolme. O apelido de todos os outros seus familiares era Nelner, mas, quando Samuel nasceu, a sua mãe, analfabeta, pediu a outra pessoa que lhe escrevesse o nome na certidão de nascimento. “Acho que sou a única pessoa no Haiti que tem este nome”, disse. Aos 17 anos, travou conhecimento com Hansy Vixamar, hoje com 55 anos, um experiente activista comunitário que se fixara na região três décadas antes, logo após o seu casamento.  
Enquanto me conduzia até casa de Hansy, Samuel explicou-me que aquele homem mais velho o inspirara a fazer trabalho voluntário na sua própria comunidade. “Fez-me perceber que tudo gira à volta da educação e da capacitação”, afirmou. “Em termos históricos, a extracção mineira repercutiu-se negativamente no ambiente, envenenando a água e o solo. O problema é o seguinte: como pode um camponês sem estudos, analfabeto, discutir com um licenciado em engenharia, com alguém ligado ao poder político ou com um interlocutor do Banco Mundial?” 

Peter-Michael em Petite Rivière de L’artibonite. - Fotografia Philomène Joseph, 20 anos. 

Quando chegamos a casa, encontramos Hansy sentado na varanda, quase imóvel, frágil e magro. Sofre de diabetes e teve recentemente uma trombose. Fora hospitalizado em Port-au-Prince e a situação parecia irrecuperável. “Esteve perto da morte”, contou a sua mulher, Micheline. Segundo ela, foi nessa altura que os espíritos do vudu desceram sobre ele no hospital e lhe disseram que voltasse para casa. Foi como se o revitalizassem.
Às perguntas que lhe colocava, Hansy respondia com voz suave e hesitante, mas com persistência amável. Em Agosto de 1988, durante o período instável que se seguiu ao reinado dos Duvalier, Hansy fora detido por tentar ajudar os agricultores a negociar um preço justo para o seu café. “Os camponeses trabalhavam duramente para cultivar o café e, de seguida, os grandalhões (antigos militares, advogados, juízes, gente do poder) exportavam o café e pagavam preços muito baixos ou nem sequer pagavam nada”, contou. “Apercebi-me de que precisávamos de nos unir para resistir aos métodos utilizados pelos outros que se aproveitavam facilmente de nós.”

 

Não só o país de catástrofes e salvamentos, mas também um lugar onde o sol brilha e torna o mar cintilante, um lugar de orgulho e com possibilidades.
Os agricultores aglomeraram-se em redor da prisão, exigindo a libertação de Hansy. “Isso deu-me ainda mais força”, disse. “Nessa época havia unidade entre os camponeses. Depois, veio o fluxo de ajuda externa e de missionários, que quebrou essa unidade. Mas a semente desse espírito ainda perdura.”
Hansy Vixamar levantou a mão trémula e fez um gesto na direcção do seu jardim, como se o espírito tivesse de súbito descarrilado. “Quando eu e a minha mulher viemos para aqui viver, só havia uma mangueira”, disse. “Por isso, construímos a casa ao pé da árvore e começámos a partir daí. Sempre a plantar e a plantar mais. Isto pode acontecer tudo de novo. De uma mangueira até uma floresta com diversos tipos de vegetação.” Compreendi então que se exprimia por metáforas. Ele era a mangueira. Samuel Nesner era o começo de uma nova floresta indígena.
Ao princípio da tarde, Hansy estava evidentemente cansado. Antes de partir, perguntei-lhe se queria enviar alguma mensagem ao mundo para lá do seu refúgio sombreado do Haiti. Sorriu. “Por favor, diga ao governo dos Estados Unidos que pare de incomodar o nosso país e nos dê uma hipótese de definirmos o nosso destino. Isso contribuirá para a paz no mundo.”

Roix des Bouquets, arredores de Port-au-Prince. - Fotografia Woodens Sejour, 20 anos. 

A solução apresentada por Hansy parecia improvável e, contudo, ao mesmo tempo era uma resposta compreensível para uma história que, como sugere a experiência passada, está programada para se repetir. Samuel concordava, mas tinha outro argumento. “Se o cidadão haitiano comum tiver uma palavra a dizer sobre a maneira como os recursos minerais do país devem ser extraídos, talvez isso possa finalmente alterar o padrão.” Mostrou-se imperturbável quanto às fraquíssimas probabilidades de as suas iniciativas serem bem-sucedidas. “Os haitianos estão enraizados na resistência. Como é lógico, se o vudu foi aquilo que conduziu as pessoas da escravidão até à liberdade, quem quiser voltar a dominar-nos vai ser obrigado a privar-nos do nosso vudu. Não é possível erradicar aquilo que é secreto, aquilo que existe por todo o lado. Pense bem em tudo a que conseguimos sobreviver até hoje. Ninguém pode erradicar-nos.”  

Colégio Alexandre Dumas Filho, em Cap-HaÏtien. - Fotografia Wilky Douze, 19 anos. 

Veja o vídeo relativo à reportagem aqui

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