Miguel Vargas recorda-se bem do momento em que teve pela primeira vez consciência do poder da sombra. Frequentava o terceiro ciclo e andava a correr num campo de futebol de Huntington Park, uma vila atravessada por linhas de caminhos de ferro e cabos de alta tensão, situada imediatamente a sul da linha do horizonte Los Angeles. Corria tão depressa debaixo do sol escaldante que sobreaqueceu. Ficou com a visão desfocada. O coração batia-lhe com força. Atordoado, dirigiu-se aos tropeções até um enorme pinheiro no canto sudoeste do campo. Era praticamente a única árvore existente em redor. Sob aquele abrigo, as tonturas de Miguel começaram a melhorar. A frequência cardíaca abrandou. Recuperou os sentidos, reanimado pela sombra profunda e fresca.

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O planeamento urbano de Los Angeles, centrado na utilização do automóvel, sugere que a cidade deve ser apreciada a partir do interior de um veículo com ar condicionado. Sem muita sombra, os peões como estes torram frequentemente ao sol.

Aquela simples bênção é abundante noutros pontos da cidade, sobretudo nos bairros ricos e maioritariamente brancos. No entanto, em bairros com habitantes predominantemente negros ou latinos, a sombra é um bem cada vez mais escasso.

Los Angeles não é Phoenix nem Dallas. Tem um clima moderado, mas também é afectada por ondas de calor e aqui, ao contrário de qualquer outra cidade norte-americana, estes podem ocorrer em qualquer altura do ano. As alterações climáticas estão a agravar o problema. Já é altura de “desligar o sol”, diz Christopher Hawthorne, director de projectos da cidade de Los Angeles. Na sua opinião, a cidade precisa de descobrir formas de criar zonas de sombra, mais frescas, que podem até salvar vidas.

A cidade de Los Angeles hoje é uma metrópole feita para o sol e não para a sombra. Na transição para o século XX, os governadores do Sul da Califórnia seduziram os migrantes do Oriente com visões de “uma luz do Sol quase eterna”. A atracção da luz excepcional perdurou graças à promoção de Hollywood e à celebração de artistas locais como Robert Irwin. “Há muitos dias em que o mundo quase não tem sombra”, disse Irwin à revista “New Yorker” em 1998. “Luz do dia, na verdade imensa luz, e nenhuma sombra.”

Em Los Angeles, o planeamento urbano dá prioridade ao acesso ao sol. A legislação urbanística define frequentemente a quantidade de tempo durante o qual um edifício pode projectar sombra para que não sombreie excessivamente quintais, pátios ou parques. Os arquitectos projectaram edifícios e quarteirões inteiros de modo a serem transparentes à luz solar, deixando-a penetrar em todos os recantos. Depois da crise energética da década de 1970, a cidade tinha mais uma razão para garantir o acesso do sol a todo o lado e na actualidade tem mais capacidade solar instalada do que qualquer outra cidade do país.

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Riley D. Champine. Fontes: Jeremy S. Hoffman, Museu da Ciência de Virgínia; Universidade de Richmond, Digital Scholarship Lab; Richard Rothstein, “The Color Of Law: A Forgotten History Of How Our Government Segregated America”, 2017; Gabinete de Censos dos EUA

Contudo, num cenário de alterações climáticas, a luz solar de Los Angeles já não é tão positiva. Até meados deste século, se não se registarem significativos esforços internacionais para controlar as emissões de carbono, prevê-se que Los Angeles tenha 22 dias por ano com uma temperatura superior a 35ºC – mais do triplo do registo actual. Nos subúrbios do vale de San Fernando, poderá haver mais de 90 dias assim – um trimestre inteiro. O calor já é um factor que aumenta o risco de morte em Los Angeles, mesmo quando não é a sua causa directa. Durante uma vaga de calor curta, a taxa de mortalidade – atribuível a todas as causas de morte – aumenta 8% face ao valor normal. Passados quatro ou cinco dias, esse valor cresce para 25%, podendo atingir 48% nas comunidades idosas negras e latinas.

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Como a discriminação moldou Los Angeles. Durante grande parte do século XX, a segregação incentivada pela administração federal forçou a maioria das pessoas de cor a viver em zonas residenciais de densidade populacional mais elevada e de menor qualidade. Ao mesmo tempo, os moradores brancos recebiam créditos para aquisição de habitação em bairros exclusivos, onde o valor das casas subiu. O acesso desigual ao crédito e a disparidade racial na distribuição de riqueza mantêm-se, apesar de as políticas discriminatórias da habitação terem sido proibidas nas décadas de 1960 e 1970.

“É muito simples, na verdade. Se nos preocuparmos com o conforto das pessoas, basta darmos-lhes mais oportunidades de usufruírem de sombra”, diz V. Kelly Turner, especialista em planeamento urbano da Universidade da Califórnia.

Num dia quente, sentimos muito mais calor sob luz solar directa do que à sombra, mesmo que a temperatura atmosférica seja a mesma. Essa temperatura resulta da velocidade à qual as moléculas do ar se deslocam e aquecem um ser humano ao colidirem com ele. No entanto, a radiação solar também aquece o organismo. Directamente expostos à luz solar, podemos sentir-nos até 11 graus mais quentes do que numa sombra ali ao lado.

O mesmo se aplica aos edifícios, passeios e outros grandes objectos: a luz solar directa transmite mais energia e, consequentemente, mais calor. O asfalto é particularmente absorvente e, juntamente com o betão, liberta na atmosfera esse calor capturado durante várias horas, mesmo após o desaparecimento do Sol, contribuindo para o efeito de ilha de calor urbano. Uma árvore bem posicionada, por outro lado, pode manter um edifício 10 graus mais fresco do que se estivesse completamente exposto ao sol. A sombra mantém tudo mais fresco e a cidade sobreaquecida tem reparado nisso.

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Imagem à esquerda: em Los Angeles, a maior parte da sombra concentra-se em comunidades onde as pessoas podem pagar a manutenção das árvores. Classificação: A,  Rolling  Hills. Imagem à direita: em zonas de baixo rendimento, maioritariamente habitadas por minorias étnicas, a falta de investimento público implica menos árvores. Classificação: D,  Hawthorne

Quando os colonizadores europeus chegaram à bacia de Los Angeles, encontraram uma paisagem cuidadosamente mantida pelos tongva e pelos restantes habitantes nativos, uma rede ecológica rica com vastas zonas de sombra. Florestas de carvalhos e outras árvores serpentavam ao longo dos rios e nas terras altas que são agora a zona leste de Los Angeles, dando sombra e uma nutritiva chuva de bolotas.

Os espanhóis abateram muitos dos carvalhos para aproveitarem a sua madeira e limparam outras áreas florestadas para criarem espaço para o gado. Fizeram sombra, construindo edifícios, em vez de plantarem árvores: as ruas foram dispostas ao longo de um eixo com aproximadamente 45 graus em relação ao sentido norte-sul, de modo a maximizar o Sol e a sombra durante todo o ano. Arcadas compridas revestiam as fachadas das missões e das residências.

sombras em Los Angeles

Desequilibrado. As zonas de classificação A têm uma quantidade mais ou menos igual de cobertura arbórea e superfícies expostas ou “paisagens rígidas” (como edifícios e pavimento). Nas zonas com classificação D, as paisagens rígidas dominam o ambiente, deixando pouco espaço para o crescimento de árvores de grande porte.

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Em Los Angeles, a presença de árvores reflecte a desigualdade urbana. À medida que percorremos de norte para sul a Vermont Avenue, as árvores tornam-se mais escassas e faz mais calor: são dez quilómetros que reflectem os efeitos duradouros da discriminação do sistema "redlining", que classificava por cores as zonas A (“verdes” ou melhores para investir) a D (“vermelhas” ou piores). Nas zonas de categoria A, um mapa de 1939 refere que a propriedade de certas casas ficava “perpetuamente limitada a caucasianos”. A B era “razoavelmente homogénea”, mas a classificação C estava definida por “elementos raciais subversivos” e possíveis “infiltrações” das zonas de categoria D – como aquela que se encontra em Pico-Union, quase sem árvores e com uma temperatura muito mais alta do que dez quilómetros a norte.

No século XIX, os colonos provenientes do Leste dos EUA remodelaram de novo a paisagem, plantando novas culturas e pomares de citrinos. No século XX, usando água extraída do outro lado da bacia de Los Angeles, acabaram por criar uma “floresta urbana”, na expressão de Travis Longcore, cientista ambiental da UCLA. Após a Segunda Guerra Mundial, uma casa unifamiliar com um carro estacionado ao lado de um jardim com um belo relvado tornou-se a metáfora do sonho americano e a crescente população de Los Angeles assimilou-a. A densidade arbórea cresceu 150% entre a década de 1920 e o início da década de 2000, altura em que havia muito mais de dez milhões de árvores na cidade. No entanto, as florestas urbanas são alimentadas com dinheiro e este não se encontra distribuído de forma igual. A maior parte da sombra de Los Angeles existe em terrenos privados, em locais como Los Feliz, Hollywood ou Brentwood, onde os residentes podem comprar árvores e pagar despesas, frequentemente avultadas, com os seus cuidados. Actualmente, quase 20% das árvores da cidade localizam-se em somente cinco quarteirões, que servem de lar apenas a 1% da população. Por contraste, as árvores não germinaram tão depressa nas zonas mais pobres da cidade. Na primeira metade do século XX, a prática discriminatória do redlining (bairros pobres demarcados por uma linha vermelha) negou a muitas pessoas de outras etnias créditos à habitação e conduziu a um enorme desinvestimento no património público, incluindo as árvores. As árvores públicas plantadas nesses bairros eram frequentemente negligenciadas pelos serviços florestais por falta de financiamento. Além disso, para criar espaço para os automóveis, a cidade removeu árvores das ruas e estreitou os passeios. A disparidade é gritante: em alguns dos bairros mais pobres da cidade, como Huntington Park, a sombra das árvores cobre muito menos de 10% da área, enquanto em sítios mais abastados, como Los Feliz, a cobertura arbórea pode alcançar quase 40%. A disparidade tem um impacte directo da saúde pública. Bairros anteriormente discriminados como “zonas vermelhas” são, em média, 4,2 graus mais quentes do que os bairros mais ricos. “Simplesmente, não se vê verde nas zonas vermelhas”, diz Vivek Shandas, ecologista urbano da Universidade Estadual de Portland, consultor da cidade de Los Angeles num projecto para plantação mais equitativa de árvores.

Los Angeles sombra
sombra das árvores

As árvores podem ajudar a arrefecer uma cidade. A cobertura arbórea de uma cidade é uma infra- estrutura à semelhança do sistema de esgotos. O arvoredo desenvolvido é potencialmente mitigador do efeito de “ilha de calor”, no qual os pavimentos e edifícios podem reter o calor e aumentar as temperaturas muito acima do que acontece nas paisagens naturais fora da cidade. No entanto, a manutenção de uma floresta urbana demora tempo e consome recursos, sobretudo num clima quente como o de Los Angeles, onde a irrigação é cara. Diana Marques. Fonte: Yujuan Chen, Treepeople

Em alguns troços de uma das avenidas de Los Feliz, as raízes de figueiras-estranguladoras com décadas de idade estendem-se pelos dois passeios da sossegada estrada com dois sentidos. Ramos luxuriantes encontram-se no meio da avenida com 12 metros de largura. Luz encoberta e fresca tremeluz na erva que cresce no chão. Contudo, 11 quilómetros mais a sul nessa mesma avenida, na zona Centro-Sul de Los Angeles, não há barreiras contra o sol.

Rachel O’Leary e Cindy Chen trabalham para uma organização sem fins lucrativos chamada City Plants e andavam à procura de sítios para plantar árvores no Centro-Sul da cidade. Num longo quarteirão, encontraram apenas nove árvores na rua. Seis eram tão jovens que só faziam um projecto de sombra. Um cão rafeiro estava deitado ao fresco sob um jacarandá excessivamente podado. Trabalhadores da construção civil descansavam à sombra de duas figueiras de troncos grossos. O resto do quarteirão estava exposto ao sol.

calor em LA
calor em LA

Não há sombras em parte de Los Angeles. À medida que Los Angeles tem mais dias extremamente quentes devido às alterações climáticas, a capacidade do arvoredo urbano para baixar as temperaturas poderá salvar vidas. Actualmente, porém, a cobertura arbórea da cidade encontra-se sobretudo em zonas onde os moradores são tendencialmente brancos e ricos. Nos bairros mais pobres, classificados como zonas vermelhas e negligenciados, não existe esta protecção contra o calor. *Temperatura média à superfície da terra no dia 3 de julho de 2020. Riley D. Champine, Theodore Sickley Fontes: Jeremy S. Hoffman, Museu de Ciência de Virgínia; Universidade de Richmond, Digital Scholarship Lab; Gabinete de Censos Dos EUA; EPA; NASA

Cindy criou um modelo informático que descobre as pequenas parcelas de terra onde a cidade pode acrescentar árvores, mas a proposta é mais difícil do que parece. Nesse quarteirão, dos 8.220 metros quadrados de terrenos sob gestão pública (incluindo a rua), apenas cerca de mil metros quadrados são potencialmente plantáveis. O modelo de Cindy pôs de lado os sítios que não serviam para plantar árvores, por neles existirem acessos para automóveis, bocas de incêndio, becos e outros obstáculos. O espaço que sobrou chegava para mais 16 árvores de rua.

Não é muito, reconhece Rachel O’Leary, mas esta área tem actualmente menos de 3% de cobertura da vegetação. “Meia dúzia de árvores é melhor do que nenhumas”, diz.

Los Angeles pretende plantar mais 90 mil árvores até finais deste ano para aumentar a cobertura vegetal em mais de 50% até 2028 em bairros negligenciados como o Centro-Sul da cidade. A campanha está longe de ser uma solução rápida, admite, sem rodeios, Rachel Malarich, directora florestal da cidade. As árvores demoram anos, ou mesmo décadas, a crescer e precisam de uma grande quantidade de água. O benefício, porém, supera largamente os custos.

Christopher Hawthorne defende uma abordagem holística que leve em conta as necessidades de sombreamento em todas as decisões relacionadas com o planeamento urbano desta e de outras cidades. “Em vez de abrirmos a porta ao sol e à luz solar, precisamos de começar a pensar em projectos que nos protejam do sol e do calor”, diz.

Numa escala maior, isso implicaria reorientar a cidade, afastando-a dos automóveis e devolvendo espaço aos peões e às árvores. Poderia significar estreitar as ruas e permitir que fossem sombreadas por edifícios mais altos do que a actual legislação permite. Existem leis que ditam o direito ao calor nos edifícios e, na Europa, até à luz solar. Talvez tenha chegado o momento de garantir o direito à sombra e à frescura.

plantar árvore

Ladale Hayes planta uma árvore no âmbito de uma campanha de Los Angeles para plantar 90 mil árvores até ao fim de 2021. Ladale trabalha para a organização sem fins lucrativos North East Trees e lidera uma equipa de jovens para plantação nos bairros onde vivem. As árvores precisarão de muitos anos de cuidados até que a sua sombra proporcione alívio.

A cidade começou a dar passos pequenos. Num concurso público de projectos para reimaginar candeeiros de iluminação pública, os concorrentes tiveram de imaginar duas ou três funções – dar luz, fazer sombra e, se possível, talvez servirem de suporte a obras de arte. Os abrigos das paragens de autocarro serão os próximos a reconfigurar e, ainda antes disso, a cidade vai acrescentar 750 abrigos em paragens muito usadas nas ruas mais quentes.

Qualquer sombra, de qualquer género, seria mais do que bem-vinda, diz Esmerita Gómez enquanto espera pelo autocarro na esquina de Vermont Avenue com Venice Boulevard, perto da baixa da cidade de Los Angeles. “Antigamente, havia aqui três árvores, mas cortaram-nas.” Ela coloca-se cuidadosamente sob a sombra estreita do poste de uma linha telefónica até o autocarro parar à sua frente.

O processo de descobrir ou fazer sombra é uma aptidão bem aperfeiçoada pelos moradores latinos da cidade, comenta James Rojas, planeador urbano que cresceu na zona oriental. Veja-se o caso dos pátios, alpendres e terraços de Boyle Heights: são uma miscelânea de soluções criativas de sombra. Tapetes de bambu atados a vedações de ferro forjado. Chapéus de sol desbotados encaixados no sítio certo, encostados a treliças cobertas de buganvílias. Lonas penduradas com elegantes dobras “para proteger mi padre y la Virgen de Guadalupe”, diz Gubernal Velasquez, debaixo de um belo toldo branco, apontando na direcção do seu pai idoso e de um ícone religioso. São soluções de design de necessidade que a cidade pode incentivar enquanto espera que as copas cresçam ou que se processe uma remodelação urbana.

Miguel Vargas, o plantador de árvores, prefere a visão de longo prazo. Conhece bem como é precioso um momento à sombra e sabe que é ainda mais importante para as abuelitas do seu bairro que vão buscar os netos a pé, para as empregadas domésticas que esperam pelo autocarro na paragem ou para todas as pessoas que não têm um equipamento de ar condicionado. Uma gota de suor escorre-lhe pela bochecha enquanto ele escava um buraco para uma de 1.400 novas árvores que ajudou a plantar em Huntington Park.

“Isto não vai acontecer a curto prazo. Não vamos sentir os efeitos este ano, nem talvez daqui a dez anos. As pessoas que os vão sentir são da próxima geração”, diz. “Devagar, mas com segurança, haveremos de lá chegar, para que faça menos calor nos bairros de habitação social.”

Los Angeles não é a única:

> Baltimore, Maryland, também contratou moradores para plantar árvores em comunidades necessitadas.

> Phoenix, Arizona, está a escolher os bairros mais quentes para plantar árvores, construir estruturas de sombra e redesenhar ruas.

> Boston, Massachusetts, é uma de muitas cidades que criaram mapas de sombra sofisticados para os esforços de planeamento no futuro.

Elliot Ross

A National Geographic Society, empenhada em dar a conhecer e proteger as maravilhas do nosso mundo, financiou o trabalho fotográfico do explorador Elliot Ross sobre a resiliência climática das comunidades nativas do Alasca. Ilustração: Joe Mckendry