O que iremos nós proteger e o que iremos abandonar?  O mundo terá de enfrentar a subida do mar.

Quando o Sandy investiu sobre o nordeste dos estados unidos, a 29 de Outubro de 2012, já fustigara vários países das Caraíbas, provocando dezenas de mortos. Perante a maior tempestade alguma vez formada sobre o oceano Atlântico, Nova Iorque e outras cidades deram ordens de evacuação nas zonas de baixa altitude. Nem todos as cumpriram. Os nova-iorquinos que decidiram fazer frente ao Sandy obtiveram uma antevisão do que será o futuro, no qual um mundo mais quente dará origem a uma subida inexorável dos mares. 

Brandon d’Leo, um escultor de 43 anos, vive na península de Rockaway, uma faixa arenosa densamente povoada, com 18 quilómetros de comprimento, em Long Island. “Quando nos disseram que o tsunami provocado por esta tempestade seria mau, não tive medo”, conta. Em breve, isso iria mudar. 

Brandon arrenda um apartamento num prédio de três andares na estrada adjacente à praia da orla sul da península. Aproximadamente às 15h30, saiu de casa. As ondas embatiam contra o passadiço de nove quilómetros de extensão.
“A água já tinha começado a destruí-lo”, conta.
“E ainda faltavam quatro horas e meia para a maré cheia. Dez minutos mais tarde, a água estava provavelmente três metros mais próxima da rua.” 

De regresso ao apartamento, Brandon e a sua vizinha Davina Grincevicius observaram o mar, enquanto a chuva carregava sobre a porta de vidro da sua sala de estar. Com medo que a casa alagasse, o senhorio desligara a electricidade. Enquanto a escuridão caía, Davina Grincevicius reparou num indício alarmante. “Acho que o passadiço se mexeu”, disse. Poucos minutos depois, outra vaga de água levantou-o de novo e este começou a partir-se em bocados. 

Três secções de madeira esbarraram contra dois pinheiros diante do prédio. A rua transformara-se num rio com um metro de profundidade. 

Vagas sucessivas despejavam água sobre a península. Os carros começaram a flutuar, e os gemidos dos alarmes agravavam a cacofonia formada pelo vento, pela água e pela madeira a estalar. A oeste, o céu iluminou-se com o que parecia fogo-de-artifício. Na verdade, eram explosões de transformadores de electricidade em Breezy Point, um bairro na extremidade da península. Mais de cem casas arderam nessa noite.

As árvores do pátio da frente salvaram a casa de Brandon e talvez as vidas de todas as pessoas no interior: Brandon, Davina e duas idosas que viviam num apartamento do andar de baixo. “Não era possível sair para a rua”, diz Brandon. “Tenho em casa seis pranchas de surf e cheguei a pensar: se alguma coisa atravessar o muro,
vou tentar pôr estas pessoas em cima das pranchas e subir pelo quarteirão acima. Mas se tivéssemos sido obrigados a entrar naquela água, não seria agradável.”

Depois de uma noite de sono sobressaltado, Brandon saiu de casa pouco antes do nascer do Sol. A água recuara, mas algumas ruas ainda estavam cheias de poças com água que dava pelas coxas. “Estava tudo coberto de areia”, conta. “Parecia outro planeta.”

A nossa civilização alimentada a combustíveis fósseis está a criar um planeta profundamente alterado, um planeta onde cheias de proporções idênticas às do Sandy tornar-se-ão mais comuns e mais destrutivas para as cidades costeiras de todo o mundo. Ao emitirmos dióxido de carbono e outros gases com efeito de estufa para a atmosfera, aquecemos a Terra cerca de mais de 0,5ºC ao longo do último século, provocando uma subida de vinte centímetros do nível dos mares. Mesmo que parássemos de queimar a totalidade dos combustíveis fósseis amanhã, os gases com efeito de estufa já existentes continuariam a aquecer a Terra durante muitos séculos. Condenámos irreversivelmente as gerações futuras a um mundo mais quente e a níveis mais altos dos mares. 

Em Maio, a concentração de dióxido de carbono na atmosfera alcançou as 400 partes por milhão, o valor mais elevado desde há três milhões de anos. Nessa época, o nível dos mares deveria ser mais de vinte metros superior ao actual: o hemisfério norte apresentava-se maioritariamente livre de gelo durante todo o ano. Passarão muitos séculos até os oceanos atingirem esses níveis catastróficos de novo e muito depende de conseguirmos restringir as emissões de gases com efeito de estufa no futuro. A curto prazo, a comunidade científica ainda não tem certezas quanto à velocidade a que os mares irão subir e até que altura o farão. As estimativas têm sido demasiado conservadoras. 

O aquecimento global afecta o nível dos mares de duas maneiras. Cerca de um terço da subida actual deve-se à expansão térmica, ou seja, ao facto de a água aumentar de volume quando aquece.
O resto tem origem na fusão dos gelos em terra. Até agora, têm sido sobretudo os glaciares de montanha a derreter, mas as maiores preocupações estão nos gigantescos mantos de gelo da Gronelândia e da Antárctida. Há seis anos, o Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (IPCC) publicou um relatório que previa uma subida máxima de 58 centímetros do nível dos mares até ao fim do século. No entanto, o relatório omitiu intencionalmente a possibilidade de esses mantos de gelo poderem fluir mais depressa para o mar, invocando o fraco conhecimento sobre
os mecanismos físicos desse processo.

No momento em que o IPCC se prepara para publicar um novo relatório este Outono, continuam por preencher as lacunas da ciência que estuda os mantos de gelo. Os climatologistas calculam que a Gronelândia e a Antárctida tenham perdido, em conjunto, 208 quilómetros cúbicos de gelo por ano desde 1992: cerca de 200 mil milhões de toneladas de gelo em cada ano.
Por isso, muitos consideram que o nível dos mares estará pelo menos um metro mais elevado em 2100 do que na actualidade. E até este valor pode ser demasiado baixo. 


 

“Nos últimos anos, assistimos a uma fusão acelerada dos mantos de gelo na Gronelândia e na Antárctida Ocidental”, explica Radley Horton, do Instituto da Terra da Universidade de Colúmbia. “Caso a aceleração prossiga, ao chegarmos ao final do século XXI, o nível dos mares pode subir até 1,80 metros a nível mundial, em vez de apenas 60 ou 90 centímetros.” No ano passado, uma comissão de peritos formada pela Agência Nacional para os Oceanos e Atmosfera dos EUA aprovou o valor de dois metros como o mais elevado de quatro cenários para 2100.
O Corpo de Engenheiros do Exército dos EUA recomenda que os responsáveis pelo planeamento ponderem um cenário de 1,5 metros. 

As cidades costeiras enfrentam uma dupla ameaça: o oceano em ascensão inundará progressivamente as terras baixas e os mares de águas mais altas provocarão mais danos com maior frequência. A ameaça nunca mais desaparecerá. Irá apenas agravar-se. No fim do século XXI, os fenómenos tempestuosos como o Sandy, que hoje ocorrem de cem em cem anos, poderão registar-se com intervalos iguais ou inferiores a uma década. Baseando-se numa previsão conservadora de meio metro de subida do nível dos mares, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico calcula que, em 2070, 150 milhões de habitantes das grandes cidades portuárias do planeta estarão em perigo devido a cheias costeiras, juntamente com um património imobiliário avaliado em 26,5 biliões de euros, um montante equivalente a 9% do PIB mundial. Como irão eles resistir?

“Durante a última glaciação, existia neste lugar, mesmo por cima de nós, um quilómetro e meio a três quilómetros de gelo”, diz Malcolm Bowman, no momento em que subimos a rampa de acesso a sua casa em Stony Brook, no estado de Nova Iorque, na margem setentrional de Long Island.  “Quando o gelo recuou, deixou um monte de areia, que é Long Island. Todas estas pedras arredondadas que vê são blocos glaciários”, diz ele, apontando para os grandes pedregulhos dispersos entre as árvores perto de sua casa.

Há muitos anos que Malcolm, especialista em oceanografia física da Universidade Estadual de Nova Iorque, defende a tese de que a cidade precisa de uma barreira de protecção contra tempestades que inclua toda a zona portuária. Comparada com outros portos, Nova Iorque encontra-se muito indefesa contra furacões ou cheias. Londres, Roterdão, São Petersburgo, Nova Orleães e Xangai construíram diques e barreiras contra tempestades nas últimas décadas. No passado mês de Outubro, Nova Iorque pagou um preço elevado pela sua vulnerabilidade. O Sandy deixou 43 mortos na cidade, 35 dos quais afogados, e custou à cidade cerca de 14 mil milhões de euros. Segundo Malcolm, tudo isto seria evitável. 

“Se tivesse sido construído um sistema de barreiras adequadamente projectadas contra vagas induzidas por tempestades e fosse reforçado com dunas de areia nas duas extremidades, ao longo das zonas costeiras de terras baixas, o Sandy não teria causado danos gerados por inundação”, diz.

Malcolm prevê a edificação de duas barreiras e comportas para controlar os navios e as marés, que só fechariam durante as tempestades, à semelhança das estruturas já existentes na Holanda. Segundo os seus cálculos, só a barreira meridional poderia custar 7,5 a 11 mil milhões de euros. No seu plano, existiria uma auto-estrada com seis faixas de rodagem sobre o dique, servindo de circular em volta da cidade, e uma linha férrea de ligação entre os dois aeroportos da cidade.

“Poderia ser um património valioso para a região”, observa. “Mais tarde ou mais cedo a cidade vai ter de tomar decisões porque o problema vai agravar-se. Talvez demore cinco anos de estudos e outros dez anos a mobilizar a vontade política necessária para concretizar o projecto. Nessa altura, já poderá ter acontecido outra catástrofe. Precisamos de começar a planear de imediato. De outro modo, estaremos a hipotecar o futuro.”

Outra maneira de proteger Nova Iorque poderia ser reconstituir um pouco do seu passado. No loft do 16.º andar onde está instalada a sua empresa de arquitectura paisagística, Kate Orff abre um mapa do porto de Nova Iorque no século XIX.
O porto actual tremeluz no exterior da sua janela, calmo e acolhedor, numa manhã invulgarmente quente volvidos três meses sobre a investida do Sandy. “Aqui está um arquipélago que protegeu Red Hook”, afirma Kate, apontando no mapa um pequeno grupo de ilhas ao largo da costa de Brooklyn. “Havia outra zona de baixios que unia Sandy Hook a Coney Island.” 

As ilhas e baixios desapareceram há muito, demolidas pelas dragagens portuárias e por aterros que acrescentaram novo património imobiliário à cidade. Kate propõe-se reconstituir alguns deles e entreligá-los com comportas que poderiam ser encerradas em caso de tempestade, formando uma barreira ecoprojectada que atravessaria as mesmas águas da barreira mais convencional proposta por Malcolm Bowman. Atrás dela, por todo o porto, existiriam dezenas de recifes artificiais construídos em pedra, corda e madeira empilhada, povoados por ostras e outras espécies de bivalves. Os recifes continua-
riam a crescer à medida que o nível dos mares fosse subindo, ajudando a formar um tampão contra as vagas, e os bivalves, como espécies filtradoras, contribuiriam igualmente para limpar o porto. “Antigamente, 25% da zona do porto de Nova Iorque era constituída por bancos de ostras”, afirma Kate.

A sua visão de uma “ostreiarquitectura” poderia materializar-se a um custo relativamente baixo. “Seria uma pechincha, comparada com uma barreira convencional. E o dinheiro não seria desperdiçado: mesmo que nunca acontecesse outro Sandy, ficaríamos com um porto restaurado e mais limpo, num contexto ecologicamente mais vibrante e numa cidade mais saudável.” 

Em Junho, o presidente da câmara Michael Bloomberg apresentou um plano no valor de 14,8 mil milhões de dólares para defender Nova Iorque contra a subida do nível dos mares. “O Sandy foi uma contrariedade que, em última análise, nos pode obrigar a progredir”, disse. A proposta do autarca contempla a construção de diques, barreiras contra a ondulação de tempestade a nível local, dunas, recifes de ostras e mais de duzentas outras medidas. Vai mais longe do que qualquer outro plano feito por cidades norte-americanas. Mas o presidente da câmara rejeitou a ideia de uma barreira portuária. “Uma barreira gigantesca a atravessar o nosso porto não é prática nem financeiramente viável”, afirmou. Segundo este plano municipal, como a barreira permaneceria aberta a maior parte do tempo, não proporcionaria protecção à cidade da subida gradual do nível do mar. 

Entretanto a construção imobiliária prossegue nas zonas de cheia da cidade. Segundo o geofísico Klaus Jacob, da Universidade de Colúmbia, a região metropolitana de Nova Iorque precisa urgentemente de um plano director destinado a garantir que, no futuro, a construção pelo menos não exacerbe os riscos provocados pela subida dos mares. 

“Ainda estamos a construir a cidade do passado”, diz. “Os nova-iorquinos da década de 1880 não foram capazes de construir uma cidade para o ano 2000, como é natural. E nós, agora, não somos capazes de construir a cidade do ano 2100. Não deveríamos construir agora uma cidade que sabemos que não funcionará em 2100. Temos oportunidade de renovar as nossas infra-estruturas. Nem tudo são más notícias. Mas temos de aproveitar essas oportunidades.”


 

Irá Nova Iorque aproveitá-las depois de Bloomberg abandonar o cargo no fim deste ano? E bastará uma tempestade para mudar a política de um país inteiro? Já não é a primeira vez que isso acontece. A Holanda viveu a sua tempestade catastrófica há 60 anos e ela transformou o país. 

A tempestade surgiu do mar do Norte, rugindo, na noite de 31 de Janeiro de 1953. Ria Geluk tinha 6 anos nessa época e vivia no mesmo sítio onde hoje vive, na ilha de Schouwen Duiveland, na província meridional da Zelândia. Ela recorda-se de um vizinho vir bater à porta da casa rural dos seus pais, a meio da noite, para avisá-los de que o dique ruíra. Nesse mesmo dia, mais tarde, toda a família, juntamente com vários vizinhos que lá tinham passado a noite, treparam para o telhado, onde se acocoraram, embrulhados em cobertores e casacos grossos, para se protegerem do vento e da chuva. Os avós de Ria viviam do outro lado da estrada, mas as águas irromperam aldeia adentro com tanta força que ficaram presos dentro de casa, morrendo quando ela desabou. 

“A nossa casa aguentou”, conta Ria. “No dia seguinte de manhã, a cheia voltou. O meu pai olhava em redor e via o que estava a acontecer: conseguia ver as casas a desaparecer. De cada vez que uma casa desaparecia, sabíamos que as pessoas morriam. Da parte da tarde, um barco de pesca veio salvar-nos.”

Em 1997, Ria Geluk ajudou a fundar o Watersnoodmuseum (o “museu das cheias”) em Schouwen Duiveland. O museu encontra-se alojado em quatro caixotes de betão utilizados pelos engenheiros em 1953 para construir diques. A catástrofe matou 1.836 pessoas, aproximadamente metade das quais na Zelândia, incluindo um bebé nascido na noite da tempestade. 

Depois disso, os holandeses lançaram um ambicioso programa de construção de diques e barreiras ao qual chamaram Obras do Delta. O programa prolongou-se durante mais de quatro décadas e custou mais de 4,5 mil milhões de euros. Um dos projectos decisivos foi a barreira de oito quilómetros de comprimento, que defende a Zelândia das águas do mar há 27 anos. Ria Geluk aponta para ela enquanto caminhamos por uma das margens do estuário do rio Scheldt, perto do museu, avistando-se no horizonte os seus enormes pilares. A derradeira componente das Obras do Delta, uma barreira amovível destinada a proteger o porto de Roterdão e cerca de 1,5 milhões de pessoas, foi finalizada em 1997. 

À semelhança de outras barreiras marítimas primárias da Holanda, ela foi construída para aguentar tempestades que ocorrem uma vez a cada dez mil anos. É o protocolo mais rigoroso do mundo. Nos Estados Unidos, a norma é de um para cem anos. O governo da Holanda pondera actualmente a possibilidade de reforçar os níveis de protecção para ajustá-los às previsões da subida do nível dos mares. Estas medidas são uma questão de segurança nacional, num país onde 26% da superfície se situa abaixo do nível do mar. 

Numa tarde gelada de Fevereiro, passei algumas horas a deambular a pé por Roterdão, em companhia de Arnoud Molenaar, responsável pelo programa de Protecção Climática da cidade, pensado para tornar Roterdão resistente aos níveis do mar previstos para 2025. Quando já levamos cerca de 20 minutos de caminhada, subimos uma rua íngreme perto de um museu projectado pelo arquitecto Rem Koolhaas. Eu deveria ter reparado na existência de uma colina nesta cidade plana, mas mostro-me surpreendido quando Arnoud me diz que estamos a subir pelo flanco de um dique. Ele acena na direcção de alguns peões que passam. “A maioria das pessoas também não tem noção”, diz. O dique Westzeedijk protege o centro da cidade do rio Meuse, localizado alguns quarteirões a sul, mas a ampla e movimentada avenida que lhe fica em cima assemelha-se a qualquer outra estrada holandesa, cheia de ciclistas pedalando em ciclovias. 

Enquanto passeamos, Arnoud identifica estruturas de controlo das cheias: uma garagem de estacionamento subterrâneo concebida para reter dez mil metros cúbicos de águas pluviais; uma rua ladeada por dois níveis de passeios: o mais baixo foi pensado para armazenar água, enquanto o mais alto permanece seco. Ao fim da tarde, chegamos ao Pavilhão Flutuante de Roterdão, um grupo de três cúpulas transparentes ligadas entre si, sobre uma plataforma num porto ao largo do rio Meuse. 

As cúpulas com cerca de três andares de altura estão construídas num plástico cem vezes mais leve do que vidro. Do interior, ouvimos o granizo matraquear sobre as nossas cabeças, enquanto nuvens baixas vindas do mar do Norte deslizam velozmente no céu. Embora as cúpulas sejam utilizadas para reuniões e exposições, o seu principal objectivo consiste em demonstrar o vasto potencial da arquitectura urbana flutuante. A cidade prevê que em 2040 estarão a flutuar nas águas do porto 1.200 casas. “Pensamos que estas estruturas serão importantes não só para Roterdão mas também para muitas cidades do mundo”, afirma o arquitecto Bart Roeffen, responsável pelo projecto do pavilhão. As casas de 2040 não serão necessariamente cúpulas: Bart escolheu esta forma devido à sua integridade estrutural e encanto futurista. “A construção sobre as águas não é inédita. A novidade aqui é o desenvolvimento de comunidades flutuantes em grande escala e num porto com marés”, diz Arnoud. “Em vez de combatermos as águas, queremos viver com elas.” 

Durante a minha visita à Holanda, ouvi repetidamente a seguinte anedota: “Deus terá construído o mundo, mas os holandeses construíram a Holanda.” Há quase mil anos que este país tem conquistado terra ao mar. Grande parte da Zelândia construiu-se assim. A subida do nível do mar ainda não cria pânico entre os holandeses. 

“Não podemos retroceder! Para onde iríamos? Para a Alemanha?”, pergunta Jan Mulder, sobrepondo a voz ao vento. Passeamos por uma praia chamada Kijkduin, enquanto rajadas de granizo esfoliam-nos o rosto. Jan é especialista em morfologia costeira e trabalha na Deltares, uma empresa privada de gestão costeira. Hoje de manhã, ele e Douwe Sikkema, gestor de projectos responsável pela província da Holanda Meridional, levaram-me a visitar a inovação mais recente em matéria de protecção adaptativa das praias. Chama-se zandmotor, o motor de areia.

No leito marinho de alto mar, existe uma camada com centenas de metros de espessura formada por areia depositada pelos rios e pelos glaciares em regressão. Antigamente, as ondas do mar do Norte distribuíam essa areia pela costa, mas, com a subida do nível dos mares desde a última glaciação, as vagas já não descem a profundidade suficiente para remexer a areia e as correntes dispõem de menor quantidade para distribuir pela região. Por isso, o mar provoca erosão. 

A solução típica consistiria em dragar a areia em alto mar e despejá-la sobre as praias afectadas pela erosão e repetir o processo todos os anos. Jan e os colegas recomendaram à administração provincial uma única operação de dragagem para criar a península arenosa sobre a qual caminhamos agora, um troço de praia com a forma de um gancho, do tamanho de 185 campos de futebol. Se o projecto funcionar, ao longo dos próximos 20 anos, o vento, as ondas e as marés distribuirão areia ao longo de 25 quilómetros, subindo e descendo a costa. A actuação combinada do vento, ondas, marés e areia constitui o zandmotor.

O projecto começou há apenas dois anos, mas parece estar a resultar. Jan mostra-me pequenas dunas que começaram a crescer numa praia onde antigamente só existia mar aberto. “É muito flexível”, afirma. “Se virmos que o nível do mar está a subir, podemos aumentar a quantidade de areia.” E Douwe acrescenta: “E é muito mais fácil ajustar a quantidade de areia do que reconstruir um sistema de diques na sua totalidade.” 

Mais tarde, Jan conta-me que existe um memorial com uma inscrição afixado na barreira do Escalda Oriental, na Zelândia: “A inscrição diz: Aqui quem manda na maré é a Lua, o vento e nós.’” A mensagem reflecte a confiança de uma geração que dava como garantida a existência de um mundo estável. “Temos de compreender que não mandamos”, diz Jan. “Precisamos de nos adaptar.”

Perante as alterações climáticas e a iminência da subida do nível dos mares, várias cidades em todo o mundo, desde Nova Iorque à cidade de Ho Chi Minh, voltaram-se para a Holanda em busca de inspiração. A empresa holandesa Arcadis concebeu um projecto conceptual de uma barreira contra vagas de tempestade, que será construída em Verrazano Narrows, a fim de proteger Nova Iorque. A mesma empresa ajudou a projectar uma barreira no valor de 835 milhões de euros, com 3,2 quilómetros de extensão, que protegeu Nova Orleães de uma vaga de tempestade com quatro metros de altura no Verão passado, quando o furacão Isaac atingiu a cidade. O bairro do Lower Ninth Ward, tão massacrado durante o furacão Katrina, ficou incólume. 

“O Isaac representou uma enorme vitória para Nova Orleães”, contou-me Piet Dircke, executivo da Arcadis, em Roterdão, durante um jantar. “Todas as barreiras foram fechadas; todas as comportas aguentaram; todas as bombas funcionaram. Nunca ouviu falar no assunto? Não ouviu porque nada aconteceu.” 

Nova Orleães poderá estar em segurança durante algumas décadas, mas as perspectivas de longo prazo para esta cidade e outras a baixa altitude afiguram-se pessimistas. Entre as mais vulneráveis conta-se Miami. “Não consigo imaginar o Sudeste da Florida habitado por muita gente no final deste século”, diz Hal Wanless, presidente do departamento de ciências geológicas da Universidade de Miami. Estamos sentados no seu gabinete, inspeccionando mapas da Florida no computador. A cada clique do rato os anos passam, o oceano sobe e a península encolhe. As zonas alagadiças de água doce e os pântanos de mangue entram em colapso, numa espiral de morte que já começou na extremidade meridional da península. Com o nível dos mares 1,2 metros acima do actual (um cenário verosímil para 2100), cerca de dois terços do Sudeste da Florida ficam alagados. As Florida Keys desapareceram quase por completo. Miami é uma ilha. 

Quando pergunto a Hal Wanless se as barreiras poderiam salvar Miami, pelo menos a curto prazo, ele sai do gabinete por uns instantes. Ao regressar, traz na mão uma amostra calcária cilíndrica com 30 centímetros de comprimento. Parece um queijo suíço petrificado e cinzento. “Experimente vedar isto”, pede ele. 

Miami e a maior parte da Florida encontram-se implantados em cima de alicerces de calcário altamente poroso. Esta rocha compõe-se dos restos de um número infindável de criaturas marinhas aqui depositadas há mais de 65 milhões de anos, numa época em que um mar quente de águas pouco profundas cobria o que hoje é a Florida. Esse passado poderá assemelhar-se ao futuro deste lugar. 

Qualquer barreira seria inútil porque a água limitar-se-ia a correr por baixo, infiltrando-se através do calcário, explica Hal. “É claro que vão ser tentadas algumas obras dramáticas de engenharia”, diz. “Mas o calcário é tão poroso que nem sistemas de bombagem gigantescos conseguiriam impedir a água de entrar.” 

A subida do nível dos mares já começou a ameaçar as reservas de água doce da Florida. Cerca de um quarto dos 19 milhões de moradores do estado são abastecidos por poços abertos no enorme aquífero Biscayne. A água salgada está a infiltrar-se neste aquífero através de dezenas de canais construídos para drenar os Everglades. Durante décadas, o estado tentou controlar o influxo de água salgada edificando barragens e estações de bombeamento nos canais de drenagem. Estas “estruturas de controlo da salinidade” mantêm uma muralha de água doce atrás de si, para bloquear a infiltração de água salgada até às águas subterrâneas. Para compensar a maior densidade da água salgada, o nível de água doce nas estruturas de controlo é geralmente mantido cerca de sessenta centímetros acima do mar em avanço. 

No entanto, as estruturas de controlo também desempenham uma segunda função: durante as tempestades frequentes que varrem o estado, as comportas têm de ser abertas para escoar o fluxo de água doce para o mar. “Temos cerca de trinta estruturas de controlo da salinidade no Sul da Florida”, explica Jayantha Obeysekera, responsável pela modelização hidrológica da Região de Gestão Hídrica do Sul da Florida. “Há ocasiões em que o nível da água do mar é mais alto do que o nível da água doce no canal.” 

Ora, uma solução de engenharia desse calibre tem duas consequências: acelera a intrusão da água salgada e impede o escoamento das águas pluviais. “Tememos que esta situação se agrave à medida que a subida do nível dos mares acelerar”, afirma Jayantha.

O uso de água doce para impedir a infiltração da água salgada acabará por ser inviável, porque a quantidade de água doce necessária submergirá zonas ainda maiores por detrás da estruturas de controlo, acabando efectivamente por inundar o estado de dentro para fora.
“Com 50 centímetros de subida do nível dos mares, 80% das estruturas de controlo da salinidade deixarão de ser funcionais”, argumenta o meu interlocutor. “Ou afogamos as comunidades para mantermos a barreira de água doce acima do nível do mar ou permitimos a intrusão da água salgada.” Quando a subida do nível dos mares atingir a marca dos sessenta centímetros, os aquíferos da Florida poderão ser envenenados sem recuperação possível. Mesmo agora, quando ocorrem marés cheias invulgarmente altas, a água salgada jorra dos esgotos em Miami Beach, Fort Lauderdale e outras cidades, inundando as ruas. 

Num estado exposto quer a furacões quer à subida do nível dos mares, pessoas como o oceanógrafo John Van Leer, da Universidade de Miami, mostram-se preocupadas por um dia deixarem de ser capazes de segurar, ou vender, as suas casas. “Se os compradores não puderem segurá-las, não conseguirão hipotecá-las. E se não conseguirem fazer a hipoteca, só podem vender a indivíduos que comprem em dinheiro vivo”, diz. “No fundo, só conseguirei vender a minha casa a um indivíduo endinheirado que se recuse a acreditar nas alterações climáticas.”

Se não mudarmos de rumo radicalmente nos próximos anos, as nossas emissões de carbono criarão um mundo totalmente diferente daquele em que a nossa espécie evoluiu. “Se nada mudarmos, a concentração de dióxido de carbono na atmosfera atingirá cerca de mil partes por milhão no final do século”, explica o geoquímico Gavin Foster, da Universidade de Southampton. Estas concentrações, segundo diz, já não existem na Terra desde a época inicial do Eocénico, há 50 milhões de anos, quando o planeta se encontrava totalmente livre de gelo. De acordo com os Serviços Geológicos dos EUA, o nível dos mares numa Terra sem gelo poderia elevar-se 66 metros acima do actual. Poderiam ser precisos milhares de anos e mais de mil partes por milhão para criar um mundo com esses contornos mas, se queimarmos todos os combustíveis fósseis, chegaremos lá. 

Independentemente da redução que façamos agora das nossas emissões de gases com efeito de estufa, já se tornou inevitável uma subida do nível dos mares de pelo menos várias dezenas de centímetros, e talvez vários metros, enquanto o planeta se adapta à quantidade de carbono que hoje existe na atmosfera, defende Gavin Foster. Um estudo holandês recente prevê que a Holanda conseguirá conceber, a custos exequíveis, soluções de engenharia para fazer face a uma subida máxima de cinco metros, mas os países menos industrializados terão de esforçar-se mais para se adaptarem por muito menos

Além disso, em épocas diferentes e em diferentes regiões, as soluções de engenharia deixarão um dia de ser suficientes. As populações começarão então a afastar-se da costa. Em algumas regiões, não haverá terras mais altas para onde possam retroceder. 

No próximo século, se não for antes disso, um elevado número de pessoas será obrigado a abandonar várias zonas costeiras do planeta. Alguns investigadores temem mesmo que surja uma vaga gigantesca de refugiados provocada pelas alterações climáticas. “Das Bahamas ao Bangladesh, passando pela maior parte da Florida, vamos ter de nos mudar e talvez tenhamos de nos mudar todos ao mesmo tempo”, afirma Hal Wanless. 

“Vamos assistir a revoltas populares, guerras. Vale a pena perguntar como funcionará o mundo civilizado. Até que ponto são ténues os fios que o agregam? Não somos capazes de entender isto. Achamos que Miami sempre existiu neste lugar e sempre existirá neste lugar. Como conseguimos que as pessoas compreendam que Miami ou Londres não vão existir para sempre nos lugares onde estão?”

Qual será o aspecto da cidade de Nova Iorque dentro de 200 anos? Klaus Jacob, o geofísico da Universidade de Columbia, antevê a baixa de Manhattan como uma espécie de Veneza, sujeita a cheias periódicas, talvez com canais e táxis amarelos aquáticos. Grande parte da população da cidade aglomerar-se-á em zonas mais altas dos restantes bairros. “Os terrenos altos tornar-se-ão caros, ao passo que a zona ribeirinha será mais barata”, prevê. 

No entanto, entre os nova-iorquinos, tal como acontece com todas as outras pessoas, a ideia de que o mar vai subir ainda não foi interiorizada. Dos milhares de pessoas no estado de Nova Iorque cujas casas foram gravemente danificadas ou destruídas pelas ondas do Sandy, prevê-se que apenas 10 a 15% estejam dispostas a aceitar que o Estado lhes compre as casas pelo valor que tinham antes da tempestade. Os restantes tencionam reconstruí-las.