Para enterrar Bury Mukminah em 2021, foi preciso levar o caixão num barco a remos.

Desde 2020, o cemitério estava debaixo das águas em Timbulsloko, uma aldeia cerca de quatrocentos quilómetros a leste de Jacarta, a capital indonésia. Nos mapas, parece que ainda existe na costa norte da região de Java Central, mas, ultimamente, a terra em seu redor tem sido tragada pelo mar de Java. O cemitério, a poucas centenas de metros da aldeia, encontrava-se submerso, mesmo na maré vazia.

Bury Mukminah tinha pouco mais de setenta anos quando morreu. Ter-se-ia recordado, tal como os outros anciãos sobreviventes se lembram, da sua aldeia verdejante e próspera do passado. Cultivava-se coco, cebola roxa, malagueta, couve, cenoura e batata.

“Todas as sementes lançadas à terra davam fruto”, recorda Ashar, o chefe da aldeia. A água tem avançado aqui muito depressa nas últimas duas décadas.

A costa norte de Java está a afundar-se e o mar a subir. Em Jacarta, uma cidade com mais de 10 milhões de habitantes, pelo menos 40% do solo encontra-se abaixo do nível do mar. A região de Demak Regency, onde se encontra Timbulsloko, é uma das mais atingidas. Embora o aquecimento global esteja a provocar a subida do nível das águas do mar a um ritmo aproximado de 3,5 milímetros por ano, aqui aumenta um centímetro por ano. Demak perde mais de quatrocentos hectares (cerca de 0,5% da sua área) a cada ano que passa.

Em Timbulsloko, depois de a cultura do arroz ter fracassado na década de 1990, os aldeãos viraram-se para a aquicultura, criando peixe-leite e camarão-tigre em lagoas de água salobra. Tiveram alguns anos bons, mas, em meados da década de 2000, as lagoas também já se tinham transformado em pântanos. Agora, a “terra firme” fica a mais de 1,5 quilómetros de distância e os aldeãos deslocam-se para lá em barcos a remos. Para conseguirem manter-se secos dentro de casa, instalaram estrados de madeira ou elevaram os soalhos, por vezes a 1,80 metros do solo. Têm de andar curvados, devido aos tectos baixos das suas “casas anãs”, como lhes chamam. Das mais de quatrocentas famílias que ali viviam, restam apenas cerca de 170.

O cemitério é uma das últimas infra-estruturas que os liga à sua história. Sete homens foram incumbidos de preparar o terreno para sepultar Bury Mukminah. Escavaram na lama durante cerca de uma hora, construindo um dique em redor da cova. As enxadas embateram nas ossadas de uma sepultura mais antiga, mas continuaram a cavar. Em tronco nu e encharcados, cavaram até a maré cheia encher o buraco. Bury foi sepultada sete horas mais tarde, de noite, quando a maré vazara. Foi sepultada debaixo de mais de uma tonelada de terra solta, castanha-clara, que os homens transportaram num barco a remos a partir de terra firme.

“Não é possível enterrar um corpo com lama e água”, explica Ashar. “Por isso, temos de comprar terra nova.”

“Não é fácil viver aqui, como podem ver”, prossegue. Ashar não tem dinheiro para partir porque ninguém quer comprar a sua casa no mar. Os anciãos não querem partir. Querem viver com as suas recordações, perto dos antepassados. Depois do funeral, os aldeãos pediram ajuda ao governo de Demak. No Outono, o governo enviou ao local trabalhadores com uma retroescavadora, que arrancou do leito marinho, pouco profundo, lama suficiente para elevar a totalidade do cemitério em cerca de 1,5 metros. Isto vai dar um pouco mais de tempo aos mortos de Timbulsloko.

Na região de Demak Regency, vivem actualmente cerca de 1,2 milhões de habitantes, uma pequena percentagem da população de Jacarta. Em finais do século XV, este era um sultanato independente, o primeiro estado muçulmano de Java, e dominava a costa norte.

subida das águas

A Estrada da Costa Norte, construída no século XIX ao longo do perímetro da ilha de Java pela administração colonial holandesa, percorre toda a extensão de Demak. Na actualidade, ainda é uma artéria de grande importância, atravessada por 400 camiões por hora. Só que as fábricas agora sofrem repetidamente inundações provocadas pelas marés, com prejuízos elevadíssimos. As cheias devem-se a vários factores. Segundo os dados de satélite, a região de Java Central perdeu 8.000 hectares, 2.200 dos quais em Demak. A subida do nível do mar provocada pelo aquecimento global é um desses factores, mas o aluimento de terras é ainda mais importante.

A planície costeira do Norte de Java é constituída por dezenas de metros de sedimentos aluviais, depositados ao longo de milénios pelos rios provenientes das montanhas no interior da ilha. Os sedimentos afundam-se à medida que se vão compactando sob o seu próprio peso, como explica o geólogo Aron Meltzner, do Observatório da Terra de Singapura, da Universidade de Tecnologia de Nanyang.

“É um processo natural”, conta Aron. “Porém, uma vez que o rio transporta cada vez mais sedimentos, à medida que os sedimentos preexistentes se vão compactando, acumula-se cada vez mais lama sobre eles e o delta permanece acima do nível da água.” Quando os rios transbordavam, ultrapassando as margens durante as cheias anuais, e os seus canais avançavam e recuavam através da lama mole, distribuíam os sedimentos pela planície de forma uniforme.

No entanto, as inundações ameaçavam as cidades contemporâneas. Em finais do século XIX, os holandeses construíram canais, diques e comportas como forma de controlarem as cheias nas cidades principais, em especial Jacarta e Semarang, capital da região de Java Central. Hoje, os diques e taludes de betão impedem os rios de transbordar, mas impedem-nos também de reabastecer a planície de sedimentos. Por isso, os sedimentos caem sobre o leito do rio e deslizam rapidamente até ao mar. Essa é uma das razões pelas quais a costa norte está a afundar.

“Mesmo que não existisse subida do nível dos mares, o simples facto de termos canalizado os rios, impedindo-os de migrar, interrompeu o processo natural”, afirma Aron Meltzner.

subida das águas

O investigador Heri Andreas, especialista em afundamento costeiro, explica que existe outro factor interveniente: a extracção maciça das águas subterrâneas, que provoca uma compactação mais rápida dos sedimentos. Só na região de Demak Regency havia quase 250 mil poços em 2014, com profundidades que podiam atingir 150 metros, numa área do tamanho de Berlim. Esses poços são, na sua maioria, privados, mas a autoridade responsável pela gestão dos recursos hídricos de Demak também escavou poços profundos em quatro locais. Em 2019, forneceu pelo menos 9,7 milhões de metros cúbicos de água subterrânea. Durante mais de uma década, a administração local promoveu a extracção de águas subterrâneas como a solução mais barata para satisfazer a procura crescente de água potável e as necessidades de saneamento básico.

“Os funcionários públicos estão sempre a apontar a subida do nível dos mares como causa principal” da perda de terra em Demak, afirma Andreas. “Mas nós concluímos que o principal culpado é a exploração das águas subterrâneas ao longo de décadas.”

A rede pública de abastecimento de água em Demak serve uma minoria da população da região administrativa, não assegurando a cobertura da freguesia de Sayung (à qual Timbulsloko pertence), onde se observam os níveis mais graves de subsidência do solo. Na aldeia de Sayung, os moradores abriram mais de uma dezena de poços para abastecer cerca de duas mil famílias. A água é armazenada em tanques elevados e custa cerca de 20 cêntimos por metro cúbico, um valor mais barato do que aquele cobrado pela rede pública.

“Tem sido um bom negócio, com bons lucros”, afirma Munawir, de 41 anos, o chefe da aldeia que despende, ele próprio, quase 13 euros por mês no serviço de abastecimento de água.

“Esperamos, como é evidente, que o governo crie uma rede de água canalizada para impedir o afundamento” da terra, diz Munawir. “Mas isso também destruirá o negócio local da água.”

Segundo a administração local, a abertura de poços profundos requer uma licença oficial e os poços não registados serão fechados. Porém, nos últimos anos, nenhum foi encerrado. À medida que a população e a indústria de Demak continuam a aumentar, o mesmo acontecerá à extracção de águas subterrâneas. Ninguém mostra disponibilidade para investir em alternativas.

Há uma década que a administração provincial da região de Java Central e as organizações não-governamentais desenvolvem esforços para proteger a orla costeira da erosão. O governo afirma que já plantou mais de três milhões de mangues em mais de 360 hectares desde 2011 para criar uma zona-tampão contra a ondulação e as marés. Está planeada a cobertura de 750 hectares até 2023.

Entretanto, as ONG ambientalistas e as comunidades piscatórias construíram quilómetros de vedações de bambu no mar, ao longo da costa. Estas vedações são quebra-mares permeáveis, capazes de reter os sedimentos levantados pela ondulação, sobretudo nas tempestades de monção. São uma solução temporária, pois destinam-se a reter apenas uma quantidade suficiente de sedimentos para que os mangues consigam enraizar. Em contrapartida, desmancham-se com facilidade e requerem reparações frequentes.

“Ainda não sentimos os resultados desta engenharia costeira”, afirma Fadholi, de 36 anos, um pescador contratado por uma ONG para fazer a manutenção de uma estrutura de retenção de sedimentos na aldeia de Bedono. “Não vimos ainda quaisquer sedimentos acumulados aqui porque a corrente está sempre a levá-los.”

Investigadores da Universidade de Diponegoro, em Semarang, têm testado outros métodos de protecção costeira. Em 2012, construíram em Timbulsloko uma barreira marinha formada por cilindros de betão, ao longo de 150 metros da antiga orla costeira. No espaço de dois anos, havia sedimentos acumulados atrás da barreira em quantidade suficiente para cultivar mangues. A sua altura chega actualmente a três metros.

Porém, o betão é demasiado dispendioso para servir de solução em grande escala, explica o oceanógrafo Denny Nugroho Sugianto, professor na Universidade de Diponegoro. Nos locais onde a ondulação for suficientemente baixa, ele defende a utilização de quebra-mares permeáveis de bambu e tubos de PVC. No entanto, acrescenta, “fica ainda por resolver o problema da terra a afundar-se. Portanto, por muitos quebra-mares que construamos, eles não serão bem-sucedidos.”

Como medida para preservar activos e zonas industriais de importância vital, o governo está a construir uma estrutura combinada que funciona como auto-estrada e quebra-mar entre Semarang e a vila de Demak, numa distância de 27 quilómetros. A conclusão das obras está prevista para 2024 e o custo elevar-se-á a 523 milhões de euros. Contudo, só pequenas partes de duas aldeias ficarão protegidas. Esta iniciativa indigna os habitantes das aldeias localizadas fora do alcance do paredão, como Timbulsloko e Sayung, que sentem que as suas comunidades estão a ser abandonadas e condenadas a afogar-se.

O governador da região de Java Central, Ganjar Pranowo, de 53 anos, cabelo grisalho e sorriso jovial, reconhece as limitações do plano. Segundo afirma, o governo não dispõe de recursos suficientes para construir barreiras maiores, como as existentes nos Países Baixos, para proteger uma extensão maior da costa. Seriam precisas enormes centrais de bombeamento de água para retirar as águas das cheias acumuladas atrás da barreira. O sistema exigiria operações de manutenção perpétuas. E o governo não tem esse dinheiro, afirma o governador.

O que devem, então, fazer os habitantes das aldeias sujeitas às cheias, aquelas às quais só se consegue aceder durante a maré baixa, através de trilhos estreitos, aquelas onde se ouve o chapinhar da água sob os pés dos moradores nas suas salas de estar?

“O último recurso será realojá-los em locais seguros”, afirma Ganjar Pranowo, que muitos acreditam que se candidatará a presidente da Indonésia em 2024. “Ou, se insistirem em viver aqui, vão ter de adaptar-se às condições ambientais – por exemplo, construindo palafitas. É impossível recuperar a terra perdida e voltar aos tempos antigos. Agora, a terra está debaixo de água.”

Na região central de Java, a tradição muçulmana implica visitar os cemitérios ao final da tarde de quinta-feira. Numa quinta-feira recente, Khusnumarom, de 16 anos e estudante do ensino secundário, dirigiu-se ao cemitério de Timbulsloko.

Vestindo a indumentária tradicional, caminhou descalço sobre um passadiço estreito de madeira, com dois metros de altura e cerca de três quilómetros de comprimento, construído no ano passado pelos moradores para substituir as estradas entretanto desaparecidas. Virou à direita, descendo um lanço de degraus de madeira e atravessou um riacho sobre a escorregadia estrada submersa. As águas da maré cheia davam-lhe pelo joelho, mas prosseguiu com passada confiante. Chegado ao outro lado, voltou a subir para o passadiço e continuou a caminhar.

Ao chegar ao cemitério subaquático, as sombras da noite tinham começado a cair. As silhuetas da árvore morta e das lápides tumulares recortavam-se contra o céu cor-de-laranja escuro. Khusnumarom descobriu a sepultura da sua avó, Mukminah. Ergueu as mãos e começou a rezar.

Khusnumarom conhece o antigo aspecto da sua aldeia devido às histórias de embalar que ouviu. Essas memórias morrerão com a geração mais velha e, mais cedo ou mais tarde, também essas histórias se desvanecerão. À semelhança de muitos outros jovens, Khusnumarom não tenciona ficar em Timbulsloko.

“Eu sei como esta aldeia era antigamente”, diz. “Mas agora nós vemos aquilo em que se tornou.” Vai procurar emprego na cidade quando se licenciar. Quer ser engenheiro informático.

Nota: Esta reportagem foi produzida e publicada pela National Geographic em colaboração com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento.