Achamos que a COVID-19 é uma pandemia humana, mas, na verdade, é muito mais do que isso. O vírus que causa a doença, o SARS-CoV-2, pode infectar um vasto e crescente número de animais, tanto em cativeiro como na natureza.

Até à data, o vírus foi detectado em mais de cem gatos e cães domésticos, bem como em tigres, leões, gorilas, leopardos-das-neves, lontras e hienas-malhadas em cativeiro, segundo o Departamento da Agricultura dos EUA (USDA). Funcionários de jardins zoológicos norte-americanos registaram um único caso positivo num urso-gato-asiático, coati, puma, furão, gato-pescador, lince, mandril e saimiri.

Nos Estados Unidos da América, apenas três espécies selvagens – visons, veados-mula e veados-de-cauda-branca – testaram positivas, segundo o USDA. Foram também detectados casos na natureza noutras partes do mundo, em micos da espécie Mico melanurus, tatus peludos e num leopardo.

No entanto, não é frequente a testagem em animais selvagens e a COVID-19 poderá ter afectado muito mais espécies do que a investigação começa agora a mostrar. “Acho que a transmissão para animais selvagens é muito maior do que pensávamos”, diz Joseph Hoyt, ecologista especialista em doenças da Virginia Tech.

De que forma o SARS-CoV-2 infecta uma tão grande variedade de espécies e quais os seus impactos?

A ligação aos receptores

Uma das principais razões reside num receptor complicado, que se encontra em todos os mamíferos, denominado ACE-2. Este receptor desempenha um papel importante na regulação da pressão arterial e noutras funções fisiológicas.

Quando a proteína de pico do SARS-CoV-2 entra no organismo, começa a infectar as células hospedeiras ligando-se ao receptor ACE-2, cuja presença é generalizada nas vias respiratórias superiores e seios perinasais dos seres humanos e de muitos outros mamíferos.

A estrutura física do receptor ACE-2 varia relativamente pouco entre as espécies de vertebrados comparada com a de outras proteínas semelhantes, diz Craig Wilen, virologista da Universidade de Yale. Mesmo assim, existem algumas pequenas variações que os cientistas acreditavam serem suficientes para diminuir consideravelmente a probabilidade de alguns mamíferos serem infectados.

No entanto, essa teoria alterou-se quando animais que se pensava serem menos susceptíveis revelaram precisamente o contrário. Tornou-se agora aparente que muitos, se não a maioria, dos receptores ACE-2 dos mamíferos são susceptíveis e não representam um factor limitador para o vírus.

“Parece ser bom o suficiente… mesmo que não seja um casamento perfeito”, diz Rick Bushman, professor da Faculdade de Medicina da Universidade da Pensilvânia, que estuda interacções entre micróbios e hospedeiros.

É provável que existam muitos outros factores que determinem a vulnerabilidade e desconhecemos quase completamente os seus pormenores.

Um vasto alcance

Já sabemos que o vírus pode infectar e propagar-se entre visons selvagens e veados-de-cauda-branca – e para ambas as espécies, há pelo menos uma ocasião verificada na qual o vírus foi transmitido dos seres humanos para os animais e novamente para os seres humanos. Além dos visons, os furões e os hamsters-dourados também parecem propagar rapidamente o vírus entre si quando em cativeiro.

Para além dos animais mencionados previamente, um estudo publicado antecipadamente na BioRxiv identificou causas prováveis de infecção por SARS-CoV-2 em ratos do género Peromyscus e da espécie Peromyscus leucopus, guaxinins, opossuns, esquilos-cinzentos, ratos e doninhas-fedorentas, entre outros.

Carla Finkielstein, co-autora do artigo juntamente com Hoyt e a bióloga especializada em conservação Amanda Goldberg, ficaram surpreendidos quando descobriram as primeiras evidências de infecção por SARS-CoV-2 em opossuns da Virgínia.

“Ficámos preocupados porque isso significa que está a saltar” para mamíferos mais afastados”, diz Finkielstein. “Os opossuns são muito diferentes de nós a nível biológico”, acrescenta Goldberg.

Os opossuns são marsupiais que dão à luz crias do tamanho de abelhas que mamam nas tetas existentes dentro das bolsas das progenitoras. Os marsupiais divergiram dos mamíferos placentários – que incluem muitos mamíferos comuns – há mais de 150 milhões de anos.

Se o SARS-CoV-2 consegue infectar os opossuns, pensaram, é provável que possa infectar uma enorme variedade de mamíferos. Com efeito, a equipa descobriu sinais de anticorpos contra o SARS-CoV-2 em percentagens significativas em seis espécies de animais urbanos selvagens no sudoeste da Virgínia. Também obtiveram testes PCR positivos – que, embora indicativos, não provam uma infecção – em duas destas espécies e em quatro outras, incluindo raposas vermelhas e linces-pardos.

Outro artigo recentemente publicado também descobriu sinais do patógeno infectando 17% dos ratos de esgoto testados na cidade de Nova Iorque. E uma pequena percentagem de ratos Peromyscus leucopus selvagens também ficaram infectados no Connecticut, segundo uma investigação desenvolvida por Rebecca Earnest, doutoranda da Universidade de Yale.

Perguntas infecciosas

Mas como são animais selvagens como os veados expostos ao vírus?

Essa pergunta ainda não tem resposta, mas existem teorias. Os animais selvagens podem ser infectados quando se aproximam do lixo humano ou das nossas águas residuais ou inalam o vírus na proximidade de pessoas. A exposição também pode ocorrer após interacções com animais de estimação como cães e gatos – ou veados de cativeiro - que podem ser portadores do vírus.

Mas “penso que todos concordam… que ninguém sabe”, diz Bushman.

No entanto, os veados-de-cauda-branca estão a ser expostos e isso está a acontecer com frequência. Um estudo de 2021 sugeriu que mais de 1/3 dos veados das regiões do Nordeste e do Centro Oeste dos EUA foram expostos. Outro artigo concluiu que o vírus tinha infectado veados pelo menos em quatro alturas diferentes dos seres humanos e um terceiro estudo descobriu que o vírus fora retransmitido para um único ser humano no Canadá.

Uma das razões pelas quais as infecções de animais são importantes é porque proporcionam novos reservatórios ao vírus, nos quais este pode permanecer e adquirir novas mutações que podem, teoricamente, ajudá-lo a propagar-se melhor – caso volte a infectar os seres humanos.

“Não queremos ver mais transmissão entre espécies”, diz Earnest.

Problema menosprezado

A capacidade do SARS-CoV-2 de infectar animais selvagens equivale a uma zoonose de grande escala escondida — a versão animal de uma epidemia — com efeitos quase inteiramente desconhecidos, diz Finkielstein.

Os animais infectados apresentam frequentemente sintomas moderados, mas os especialistas não sabem quase nada sobre como as diversas variantes do vírus afectam a maioria dos animais. Por vezes, as infecções são mortais. O vírus parece matar uma pequena percentagem de visons infectados e três leopardos-das-neves morreram devido a complicações causadas pela COVID-19 no jardim zoológico Lincoln Children’s Zoo, no Nebraska.

Wilen adverte que não sabemos, ao certo, quão doentes os animais podem ficar em estado selvagem, citando o exemplo do vírus da imunodeficiência símia dos chimpanzés (VIScpz), que passou para os seres humanos e se transformou no VIH-1. Durante muito tempo pensou-se que o VIS causava apenas sintomas moderados nos chimpanzés, mas os estudos acabaram por determinar que o vírus pode provocar uma condição semelhante à SIDA nos animais, geralmente encurtando o seu tempo de vida.

Os efeitos dos vírus são particularmente difíceis de estudar em animais selvagens, sobretudo ao nível ecológico, diz Hoyt.

“Não sabemos as consequências disto para os animais selvagens", concorda Finkielstein. “Esse é outro aspecto que tem sido muito ignorado.”

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