Os vikings estiveram sempre rodeados de mitos e mal-entendidos. As lendas nasceram com as suas primeiras incursões às Ilhas Britânicas, no final do século VIII e, desde então, cativaram o nosso imaginário. Inspiraram óperas, filmes, romances, livros de banda desenhada e até videojogos, mas isso também dificulta a separação dos factos da ficção. A ciência continua a investigar os vikings, escavando os seus vestígios e, sobretudo, sondando as suas origens arqueológicas e literárias.

Segundo hipóteses publicadas em 2021 na Nature, os vikings podem ter sido os primeiros europeus a alcançar o Novo Mundo, talvez 400 anos antes de Colombo. A hipótese é controversa e já foi questionada, mas continua em cima da mesa. Os primeiros estudos genéticos dos seus restos mortais sugerem que eram um grupo diversificado. As escavações trazem à superfície tesouros enterrados, como uma caixa de jóias descoberta nos arredores de Estocolmo, e continuam a alimentar o nosso fascínio por estes salteadores antigos. À medida que os arqueólogos preenchem as lacunas, examinamos alguns dos mitos mais duradouros inspirados pelos vikings.

O fim da era Viking
JORISVO/SHUTTERSTOCK

A Tapeçaria de Bayeux (pormenor) foi bordada à mão e retrata a conquista normanda de Inglaterra por Guilherme, o Conquistador, em 1066. O ano assinala o final da era da ocupação viking nas Ilhas Britânicas. O rei anglo-saxão Harold II repeliu os invasores noruegueses, derrotando-os na ponte de Stamford, junto de York, embora enfrentasse outra invasão pouco depois. Em Hastings, o seu exército foi derrotado pelos normandos de Guilherme. Os normandos foram assim designados por serem descendentes dos nórdicos (vikings) que se instalaram no Norte de França.

MITO 1: OS VIKING ERAM UM ÚNICO GRUPO

Os vikings são com frequência considerados uma só nação, mas eram, na verdade, pequenos grupos governados por chefes tribais eleitos. Algumas destas tribos (que viviam na actual Escandinávia) colaboravam entre si quando organizavam incursões a reinos estrangeiros.

“Viking” não se refere a um povo, mas a uma actividade. Nos dois séculos abrangidos pela era viking, a maioria dos habitantes do Norte da Europa dedicava-se à pesca, à agricultura, ao comércio e ao artesanato. “Fazer-se ‘viking’ era algo que os homens poderiam fazer na juventude para adquirir honra e despojos de guerra, mas raramente participariam em incursões ao estrangeiro e, muito menos, fá-lo-iam ao longo de toda a vida”, escreveu o académico Brian McMahon em “The Viking: Myth and Misconceptions”.

aldeia Viking no sopé do monte Vestrahorn
NICK FOX / SHUTERSTOCK

Esta aldeia viking no sopé do monte Vestrahorn, na península islandesa de Stokksnes, foi construída como cenário para um filme.

A origem do nome “viking” é incerta. A palavra do idioma nórdico antigo costumava significar “pirata” ou “salteador”. É provável que derivasse de uma palavra anterior, contemporânea dos vikings. Para McMahon, o termo refere-se àqueles que “se aventuravam no mar para atacar e saquear”, diz.

“Vik significa ‘baía’ ou ‘riacho’, como no topónimo Reiquejavique, na Islândia, onde migrantes escandinavos se instalaram pela primeira vez por volta do ano 870 d.C.” O historiador Fritz Askeberg sugere outra explicação. O verbo vikja significa quebrar, torcer ou desviar, e os vikings, explica Askeberg no seu livro sobre a cultura nórdica, eram pessoas que se afastavam das normas sociais vigentes, trocando os seus lares pelo mar em busca de fama e despojos.

Os vikings são com frequência considerados uma só nação, mas na verdade eram apenas pequenos grupos governados por chefes tribais eleitos.

Mito 2: ERAM INVULGARMENTE CRUÉIS

“Nunca existiu uma era de terror na Bretanha como o agora infligido por esta raça pagã… Estes bárbaros derramaram o sangue de santos em torno do altar e empilharam os corpos de santos no templo de Deus, como se fosse esterco nas ruas.” 

Reencenadores encenam uma batalha da era Viking no Festival dos Eslavos e Vikings em Wolin, Polónia.
DAVID GUTTENFELDER, NAT GEO IMAGE COLLECTION

Encenação de uma batalha da era Viking no Festival dos Eslavos e Vikings em Wolin, Polónia.

Esta aterradora descrição de um ataque ao Priorado de Lindisfarne, localizado numa ilha ao largo da costa nordeste de Inglaterra, foi escrita em 793 d.C. pelo erudito Alcuíno de York. Foi um evento marcante do início da era viking na Europa, que se prolongou por mais de 250 anos.

Embora os vikings suscitassem medo, os especialistas acreditam que a violência era endémica naquela época. “A crueldade viking não era diferente do que acontecia na altura”, diz Joanne Shortt Butler, da Universidade de Cambridge. “Eles não eram mais brutais do que os representantes de outras nações ou tribos. Os homicídios, os incêndios e as pilhagens estavam na ordem do dia.” 

“Fixemo-nos nos actos de Carlos Magno, rei dos francos, durante a era viking”, escreve. “O patrono do renascimento da cultura antiga ordenou a decapitação de 4.500 saxões em Verden!”

Mito 3: BEBIAM POR CAVEIRAS

Os relatos sobre a crueldade dos saqueadores escandinavos tornam plausível a atribuição de alguns hábitos desprezíveis aos vikings, como o gosto por usar as caveiras dos inimigos como taças. O popular mal-entendido foi originado por um equívoco de tradução. 

Viagem no tempo
CENTRO VIKING DE RIBE/VISIT DENMARK

Os visitantes podem recuar mais de um milénio no povoado mais antigo da Dinamarca, Ribe, onde um centro viking reconstrói a vida numa aldeia. A maioria das comunidades viking vivia da agricultura. As mulheres cuidavam de casas como esta, mas também tinham direitos e podiam herdar terras. Os vikings também escravizavam prisioneiros capturados em expedições de pilhagem. Os cativos faziam trabalhos pesados e também eram transaccionados. Alguns foram enviados para Constantinopla, onde foram trocados por seda e outros bens.

Ole Worm, médico da corte do rei da Dinamarca no século XVII, era também um linguista apaixonado por pedras rúnicas, os seixos inscritos com runas (o alfabeto germânico e nórdico). Em 1636, Worm publicou uma obra sobre runas. Citou um poema nórdico cujo protagonista dizia que beberia hidromel no Valhalla, o céu mítico dos guerreiros nórdicos mortos, pelos ramos curvos das caveiras.

O poeta referia-se às ramificações que irrompem das caveiras dos animais – ou seja, os cornos. Contudo, o médico da corte traduziu a frase para o latim como ex craniis eorum quos cecideruntdas caveiras daqueles que mataram. Isso acrescentou mais um elemento à má reputação dos vikings, embora existissem de facto outros grupos étnicos que, segundo consta, usavam as caveiras dos inimigos como taças. Não há indícios de que os vikings o tenham feito.

pedras rúnicas, gravadas com o seu alfabeto antigo
MUSEU ASHMOLEAN/HERITAGE IMAGES/GETTY IMAGES

Os vikings deixaram milhares de pedras rúnicas, gravadas com o seu alfabeto antigo.

Mito 4:  TORTURAVAM COM A “ÁGUIA DE SANGUE ”

Outro hábito deplorável atribuído aos saqueadores nórdicos era deixar a marca da “águia de sangue” em vítimas vivas. 

Como a primeira referência a esta prática surge num verso escáldico, poderá tratar-se de outro caso de liberdade poética, interpretado à letra por estrangeiros, explica Eleanor Rosamund Barraclough, professora de história medieval na Universidade de Durham, no livro “Beyond the Northlands: Viking Voyages and the Old Norse Sagas”.

avio durante o festival anual do fogo
ANDREW J. SHEARER / ADOBE STOCK

Habitantes das ilhas Shetland incendeiam a réplica de um navio durante o festival anual do fogo, que assinala o fim do Inverno e celebra o seu legado viking. Os vikings ocuparam as

ilhas durante 500 anos até estas se tornarem parte da Escócia.

No ritual, as costelas eram expostas, separadas da coluna e depois distendidas. Os pulmões eram extraídos e colocados sobre o corpo de uma forma que se assemelhava a asas. Na opinião de alguns, isso era feito para que o corpo pudesse voar até Odin, o deus supremo da mitologia nórdica. 

Há muito que Roberta Frank, da Universidade de Yale, questiona a veracidade do ritual. Na sua opinião, foi provavelmente criado pelos primeiros autores escandinavos cristãos, numa tentativa de estigmatizar os seus antepassados pagãos. “O procedimento da águia de sangue varia de texto para texto, tornando-se mais lúrido, pagão e requintado a cada século que passa”, escreveu a autora na “English Historical Review”.

Num artigo publicado em “Speculum: A Journal of Medieval Studies”, concluíram que, embora fosse anatomicamente possível realizar esta prática com as ferramentas disponíveis na altura, a vítima morreria por hemorragia ou asfixia nas primeiras fases da tortura. A execução completa de uma águia de sangue só poderia ser feita num cadáver. Até os arqueólogos encontrarem um corpo com evidências claras, é provável que nunca o saibamos.

Mito 5:  USAVAM CAPACETES COM CORNOS

Alguns mitos tiveram origem em lendas, incluindo o famoso capacete com cornos. O único capacete da era viking alguma vez encontrado, o Gjermundbu, escavado em Ringerike, na Noruega, é parecido com a máscara do Batman, mas sem orelhas pontiagudas. Nem cornos, salienta Rosamund Barraclough.

Capacete de ferro
MUSEU DE HISTÓRIA CULTURAL, UNIVERSIDADE DE OSLO/KIRSTEN J. HELGELAND

Descoberto em 1943 num monte de enterramento norueguês, este capacete de ferro foi o único encontrado na Escandinávia até à data. Os capacetes não faziam parte do equipamento viking habitual. Os especialistas acreditam que seriam demasiado pesados para os guerreiros em movimento.

Nas representações da era viking, os guerreiros figuram de cabeça exposta ou usam capacetes simples, possivelmente de ferro ou couro. Embora existam algumas personagens com cornos na arte nórdica, como a tapeçaria de Oseberg, estas costumam representar deuses ou monstros e não guerreiros, prossegue Brian McMahon.

Também neste caso conhecemos uma das fontes para o mito dos capacetes com cornos: Carl Emil Doepler, o desenhador de guarda-roupa da estreia da ópera “O Anel dos Nibelungos”, de Wagner, no Festival de Bayreuth em 1876. Outro propagador deste mito no século XIX foi o pintor Johan August Malmström, que usou capacetes com cornos nas suas ilustrações das sagas nórdicas. 

Doepler e Malmström, entre outros, podem ter sido inspirados pelas descobertas contemporâneas dos antigos capacetes com cornos, os quais – como se descobriu mais tarde – eram anteriores à era viking. Talvez os artistas tenham sido inspirados pelos ecos distantes de historiadores gregos e romanos, cujas descrições asseguravam que os europeus do Norte usavam capacetes decorados com cornos. Não só o acessório passara de moda pelo menos um século antes da chegada dos vikings, mas também só seria usado por sacerdotes nórdicos e germânicos para fins cerimoniais.

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MUSEU DE HISTÓRIA CULTURAL, UNIVERSIDADE DE OSLO/KIRSTEN J. HELGELAND (

A cabeça de dragão esculpida do século IX foi descoberta no monte de enterramento de Oseberg, onde duas mulheres de estatuto social elevado foram enterradas num navio acompanhadas de um luxuoso espólio funerário.

Mito 6:  ERAM TODOS ALTOS E LOUROS

A palavra “viking” evoca a imagem de um homem forte, de cabelos claros e olhos azuis. Por outras palavras, Chris Hemsworth na saga “Thor”. No entanto, ao realizar exames genéticos dos esqueletos encontrados em túmulos medievais, Lise Lock Harvig, da Universidade de Copenhaga, concluiu que haveria uma mistura saudável de louros, ruivos e morenos na época, tal como hoje. A sociedade viking não era exclusivamente de ascendência escandinava. “Já havia uma mistura cultural e étnica”, diz Lise. Tal como a cor do cabelo, as íris também eram diferentes

Martelo divino
FINE ART IMAGES/HERITAGE IMAGES/GETTY IMAGES

Thor pertence ao panteão viking pelas suas ligações familiares: era filho de Odin, o principal deus nórdico. Era o deus das tempestades e provocava trovões com os golpes do seu martelo, Mjölnir. Os seus símbolos incluíam um cinto que duplicava a sua força e luvas de ferro. Thor podia desferir ataques com força ilimitada e, depois de arremessado, o martelo regressava sempre à sua mão. Combatia as forças do caos e defendia o mundo do mal, mas o seu apetite era lendário e, segundo um mito, certa vez comeu um boi inteiro. Foi com frequência retratado como glutão. Há muitas miniaturas do martelo de Thor em sepulturas vikings. Os arqueólogos acreditam que funcionavam como talismãs.

Segundo Brian McMahon, até a sugestão da altura invulgar dos vikings é um mito. O homem típico daquelas regiões setentrionais teria cerca de 1,73 metros de altura, o mesmo que um homem típico europeu. A nutrição poderia ser um factor relevante: os verões curtos e os invernos árduos na Escandinávia limitavam os recursos alimentares, o que significa que as incursões poderiam ser uma forma de obter alimento. A sua reputação de homens altos deriva provavelmente do nacionalismo que despontou nos séculos XIX e XX e promoveu os vikings ao arquétipo nórdico e ariano

Mesmo o conceito de que os vikings não teriam hábitos de higiene foi refutado por evidências arqueológicas: as suas sepulturas e outros sítios escavados estão repletos de pentes, pinças e lâminas, dispostos junto de corpos masculinos e femininos. Também é possível que usassem um sabão com um elevado teor de soda cáustica para prevenir as infestações de piolhos, um potencial efeito secundário da descoloração do cabelo.

Adaptação de artigo publicado originalmente na edição de Agosto de 2023 da revista National Geographic.