Musa de pintores e artistas. Jacopo Comin, Tintoretto, foi um dos artistas que frequentaram o salão de Veronica Franco. São-lhe atribuídos os dois únicos retratos que existem da cortesã, embora não seja certo se foi mesmo ela a posar como modelo. Em ambos, Dama que descobre os seios (1570) e Retrato de dama (1574), está retratada uma mulher de formas arredondadas, tez branca, cabeleira acobreada, olhos claros e feições finas, enfeitada com pérolas, a jóia que se tornou o sinal de identidade de Veronica. Alguns autores sustentam que a cortesã também posou como modelo para Susana e os velhos (1556). Na imagem Dama que descobre os seios, possível retrato de Veronica Franco. Óleo de Tintoretto. 1570. Museu do Prado, Madrid.
Em 1564, Veneza espantou-se com o arrojo de uma jovem que, com apenas 18 anos e grávida do primeiro filho, decidiu separar-se do marido e reclamar o seu dote para ser dona da sua vida. Chamava-se Veronica Franco, estava cansada de ser espancada pelo marido e iniciava desta forma uma nova etapa: aquela que a levaria a ser a mais respeitada das cortigiane oneste que habitavam a cidade dos canais.
Fontes de inspiração para artistas e poetas, cultas e refinadas, amantes do luxo e dos prazeres, as chamadas “cortesãs honestas” eram meretrizes que uniam à sua beleza e distinção uma vasta cultura e até mesmo um domínio das artes e das letras, qualidade que lhes permitia funcionar como verdadeiras companheiras dos homens, não apenas no sexo, mas também na conversação e à mesa. Nas palavras do poeta Pietro Aretino, “Vénus [a deusa do amor] tinha-se tornado uma mulher de letras”.
Exóticas e dotadas de grandes qualidades para a vida social, estas mulheres eram evidentemente uma excepção no sórdido mundo da prostituição. Em Veneza, havia mais de três mil prostitutas registadas, mas apenas cerca de duzentas eram consideradas cortigiane oneste. Eram, além do mais, privilegiadas noutros âmbitos da sociedade, já que gozavam de liberdade, auto-suficiência e acesso à cultura vedados às mulheres do povo e às filhas e esposas das grandes famílias da aristocracia e da burguesia.
Um ofício herdado
Veronica Franco nasceu em Veneza em 1546, em casa de Francesco Maria Franco, um veneziano pertencente aos “cidadãos”, o que hoje seria denominado por classe média, e de Paola Fracassa, uma famosa cortesã que, ao casar, abandonou o antigo ofício. A morte prematura de Francesco obrigou Paola a regressar à antiga e lucrativa profissão, embora tenha tentado dar uma vida honrada à filha. Com esse fim, quando Veronica tinha apenas 16 anos, a mãe combinou o seu casamento com Paolo Panizza, um médico amante do jogo e da bebida que apenas trouxe grande sofrimento à jovem esposa.
Após a separação, Veronica regressou para junto da mãe, que acabou por a iniciar no ofício a ponto de ambas o exercerem por turnos. É a razão pela qual os seus nomes aparecem registados na edição de 1572 da Tariffa delle puttane, o livro onde se encontram catalogadas as 215 cortesãs de maior prestígio de Veneza com os respectivos preços.
Igreja de Santa Maria Formosa. A igreja veneziana, construída em 1492 em estilo renascentista, foi a paróquia da cortesã Veronica Franco, que viveu nas imediações por longos anos.
Neste caso, a importância era a mesma para ambas: dois escudos por noite, se bem que se diga que, anos mais tarde, um beijo de Veronica estava avaliado em quinze escudos e em cinquenta uma noite na sua desejada companhia.
Bela e delicada no trato, inteligente e culta, Veronica não tardou a entrar nos salões venezianos. As cortigiane oneste tinham o privilégio de eleger os seus amantes e Veronica escolhia-os sistematicamente com base na sua classe social, dinheiro e cultura, o que lhe permitiu conviver com quem dominava a cidade. Não é estranho, pois, que no Verão de 1574, quando Henrique de Valois viajou para o Véneto em vésperas de ser coroado rei de França, a Senhoria (a República veneziana) recorresse aos serviços da famosa Veronica.
Veneza precisava da aliança gaulesa e nada melhor para a conseguir do que tornar inesquecível a permanência do futuro rei na cidade. A Senhoria dispôs-se a receber o ilustre hóspede com banquetes, arcos triunfais, concertos e fogos-de-artifício, mas, como se tal esbanjamento não fosse suficiente, decidiu acrescentar um presente exclusivo e particular: uma noite na companhia de Veronica Franco, a mais bela, culta e refinada cidadã de Veneza.
As autoridades não tinham contado com a preferência sexual do visitante, que habitualmente era visto em Paris na companhia de adolescentes vestidos de mulher. Não se conhece o nível de intimidade a que chegaram a cortesã e o futuro Henrique III, mas o certo é que este se mostrou tão satisfeito com a noite que, desde essa altura, a Senhoria contou com a aliança francesa e Veronica consagrou-se como a cortesã mais influente de Veneza.
Naquela altura, Veronica Franco contava com a amizade de Domenico Venieri, um célebre poeta seguidor de Petrarca, que influenciou fortemente a sua carreira literária e que validou a publicação do seu poemário Terze Rime, em 1574. À época, Veronica mantinha relações com dois sobrinhos de Domenico: Marco e Maffeo. O primeiro foi, sem dúvida, o grande amor da sua vida, pelo que Maffeo, ao ver-se substituído por Marco,não teve dúvidas em dedicar a Veronica versos ofensivos que circularam livremente por toda a Veneza:“Veronica, ver unica puttana” (Veronica, a única everdadeira puta). Não contava que a cortesã, em vez de se dar por ofendida, o desafiasse publicamente para um duelo poético do qual saiu vencedora e que lhe serviu para consagrar-se como poeta.
Amizades literárias
Instalada num bonito palácio em Santa Maria Formosa, Veronica Franco converteu a sua casa num autêntico ateneu onde se reuniam músicos, pintores e nobres e onde, além dos prazeres mais terrenos, se usufruía também de concertos, debates filosóficos e leitura de poesia.
Um dos mais ilustres visitantes foi o humanista francês Michel de Montaigne que, em 1580, se estabeleceu em Veneza. No dia 7 de Novembro, de acordo com o próprio escritor, ceou com Veronica e recebeu como presente um pequeno volume que ela editara com o título de Lettere familiari e diversi (Cartas íntimas e variadas), no qual estava reunida a sua correspondência com diversas personagens da época e que hoje constitui um testemunho único dos usos e costumes da Veneza do Cinquecento.
Óleo de Jacopo Palma, o Jovem, um pintor emergente na Veneza de Veronica Franco. Século XVI. Galeria da Academia, Veneza.
O ocaso de uma cortesã
A visita de Montaigne marcou um ponto de inflexão na vida de Veronica. Poucos meses depois, Ridolfo Vannitelli, preceptor de um dos seus quatro filhos e, possivelmente, amante despeitado, denunciou-a ao Santo Ofício, acusando-a de falta de zelo religioso e prática de feitiçaria. Encarcerada na prisão da República, a audição teve lugar no dia 8 de Outubro de 1581 e, embora as excelentes relações de Veronica com os hierarcas da cúria veneziana e da Senhoria lhe permitissem sair em liberdade e ser absolvida, este processo marcou o seu declínio definitivo e a perda quase total de todos os seus bens.
Existem poucas informações sobre os últimos anos da vida de Veronica. Retirada na sua mansão, sabe-se que negociou com as autoridades venezianas para criar um asilo para acolher as cortesãs doentes ou idosas e onde se ensinasse um ofício às mulheres que decidissem retirar-se da profissão. Além disso, é provável que tenha continuado a trabalhar em novas obras literárias que, lamentavelmente, não chegaram aos nossos dias.
O rasto de Veronica Franco perde-se definitivamente em 1582 e o seu nome só volta a aparecer no registo do Magistrato alla Sanità, onde numa referência concisa datada de 22 de Julho de 1591 consta que “a signora Veronica Franco faleceu de febres com a idade de 45 anos”.
Com ela, findava a idade de ouro das cortesãs venezianas. Mulheres fortes, livres, instruídas e sensuais que, nas palavras da própria Veronica, estavam “condenadas a comer pela boca de outros, a dormir pelos olhos de outros, a movimentar-se de acordo com o desejo de outros, correndo em manifesto naufrágio sempre das faculdades e da vida”.