Quase mil milhões de pessoas defecam ao ar livre todos os dias, provocando doenças e até mortes. O problema não se resume à inexistência de instalações sanitárias: em muitos locais, a cultura é o factor decisivo.
Aos 65 anos, Moolchand não tem qualquer problema em acordar cedo para dedicar-se à “caça” antes da alvorada.
Na verdade, adora essa actividade. “Escondo-me junto da estrada, com a minha lanterna”, diz, em voz baixa e entusiasmada, gesticulando enquanto desce a rua principal da aldeia de Gaji Khedi, no estado indiano de Madhya Pradesh. “E procuro pessoas de lota na mão.”
Uma lota é um contentor de água, tradicionalmente de latão, mas hoje o plástico é mais comum. Quando avista um alvo às primeiras horas da manhã, o mais certo é que o seu dono, ou dona, se dirija a um campo, ou beira de estrada, para defecar, usando a água para se limpar.
“Vou atrás deles”, prossegue Moolchand. “Sopro o apito e despejo-lhes a lota” Moolchand considera-se defensor de uma honra duramente conquistada: a administração distrital classificou a aldeia como “livre da defecação a céu aberto”. “As pessoas zangam-se comigo e gritam-me quando as impeço”, diz. “No entanto, o governo deu-nos grandes apoios para construção de sanitários e, por isso, não há desculpa.”
A defecação ao ar livre é tão antiga como a humanidade. Enquanto a densidade demográfica se manteve baixa e a terra foi capaz de absorver os dejectos humanos, o hábito não causou grandes problemas. Com um número cada vez maior de habitantes concentrados em vilas e cidades, fomos compreendendo a ligação que existe entre higiene e saúde e, em especial, a importância de evitar contacto com fezes. Actualmente, a defecação a céu aberto está a recuar em todo o mundo, mas quase 950 milhões de pessoas praticam-na de forma rotineira. Destes, cerca de 569 milhões vivem na Índia.
Em 2015, a ONU lançou um apelo no sentido de exterminar a defecação a céu aberto até 2030. Não é impossível dar grandes passos em frente: o Vietname, por exemplo, quase eliminou esta prática nas últimas décadas. A concretização desta meta global, a sexta prioridade na Lista de Metas para o Desenvolvimento Sustentável da ONU, permitiria melhorar radicalmente a saúde pública. Permitiria igualmente atenuar tanto a pobreza como a fome e melhorar a educação. As crianças doentes faltam à escola, assim como as raparigas em período de menstruação cujas escolas carecem de instalações sanitárias limpas e seguras.
A percentagem de indianos que defecam ao ar livre diminuiu substancialmente nas últimas décadas. No entanto, com a população em crescimento rápido, os dados dos censos indicam que a maioria dos indianos vive agora em lugares mais expostos ao contacto com as fezes dos outros.
Índia, num complexo comunitário de instalações sanitárias em Deli, mulheres aguardam a vez de entrar numa única latrina em funcionamento, enquanto protegem o nariz do fedor das fezes, deixado por alguém que não conseguiu aguentar-se.
O actual primeiro-ministro, Narendra Modi, dirigiu a campanha com a frase de ordem “primeiro casas de banho, depois templos”. Em 2014, antes de a ONU fixar a sua meta de 2030, Modi anunciou a intenção de pôr termo à defecação a céu aberto uma década antes desse prazo, até 2 de Outubro de 2019 – o 150.º aniversário de Gandhi. Investiu cerca de 39 mil milhões de euros numa operação-relâmpago de construção de latrinas e mudança de comportamentos
intitulada Swachh Bharat Abhiyan (Missão Índia Limpa), para a qual o Banco Mundial contribuiu com um empréstimo de mais 1.200 milhões de euros.
Modi tenciona construir mais de cem milhões de novas instalações sanitárias em zonas rurais até 2019. Poderá, ou não, consegui-lo, mas ainda é um enigma se os sanitários farão alguma diferença. Há pelo menos trinta anos que sucessivos governos indianos têm construído latrinas de baixo custo. Milhões destas estruturas simples e independentes pontilham a paisagem rural. Na Índia, os comportamentos enraizados constituem um travão à melhoria do saneamento ainda maior do que a falta de condutas e fossas.
No pátio lateral de cada casa rebocada a adobe em Jawda, várias horas a sudoeste da aldeia de Moolchand, ergue-se uma casa de banho exterior de betão novinha em folha, do tamanho de uma cabina telefónica e pintada de rosa-salmão. No interior, numa sanita turca de cerâmica branca, os dejectos afunilam, liquefeitos pela água de um balde ou de uma lota, e descem por uma conduta até uma fossa a um metro de profundidade. Com paredes de tijolo, a fossa foi concebida para recolher as fezes e deixar os líquidos infiltrarem-se na terra. Uma pequena poça de água, aninhada numa curva da conduta, em forma de U, ajuda a conter os cheiros e a impedir os insectos de aceder à fossa. As moscas que se reproduzem nas fezes e delas se alimentam são um dos principais veículos de retransmissão de organismos infecciosos aos seres humanos: um grama de fezes pode conter dez milhões de vírus, um milhão de bactérias e mil quistos parasíticos. Infectam-nos através de minúsculas aberturas na nossa pele ou contaminando alimentos e água.
Índia, Baby, uma menina de 10 anos que mora em Sefeda Basti, sofre de uma grave insuficiência de peso. Neste bairro de lata, a diarreia e a subnutrição são endémicas, afirma o profissional de saúde Balram Yadare. As casas de banho são escassas e o abastecimento de água é intermitente.
Na Índia, as repercussões sanitárias são impressionantes. A diarreia mata anualmente mais de 117 mil crianças com menos de 5 anos. Milhões de outras crianças debatem-se com infecções crónicas nos seus intestinos, que não absorvem bem os nutrientes e os medicamentos. E a miséria acentua-se de forma articulada: mulheres com peso a menos dão à luz bebés com peso a menos, mais vulneráveis a infecções, com maiores probabilidades de ficarem enfezados e menor capacidade para beneficiarem da vacinação. Em 2016, 39% das crianças indianas com menos de 5 anos eram enfezadas.
A Missão Swachh Bharat oferece a cada agregado familiar cerca de 160 euros para construir uma latrina com fossa, uma soma muito superior à que qualquer outro país em desenvolvimento gasta. No entanto, em Jawda, ninguém usa as latrinas. “Servem para lavar roupa e para tomar banho”, diz uma mulher vestida de sari rosa-e-negro, descansando à sombra, numa rede de corda. “Há muito espaço ao ar livre. Por que razão não havemos de usá-lo?”
Em inquéritos realizados em todo o espaço rural do Norte da Índia, onde a defecação a céu aberto é mais dominante do que no Sul, as pessoas mostram preferir claramente aliviar-se fora de casa. Para muitos indianos, em termos religiosos até a mais imaculada das latrinas é poluente: uma casa de banho perto de casa parece-lhes mais suja do que responder ao apelo da natureza a duzentos metros de distância. As moscas, contudo, conseguem viajar mais de 1,5 quilómetros.
Na região de Khargone, no Sudoeste de Madhya Pradesh, passeio pelas ruas de uma aldeia na companhia de Nikhil Srivastav, investigador de políticas públicas e membro do Instituto de Investigação de Economia Solidária (RICE, na sigla anglófona). Esta organização sem fins lucrativos destaca investigadores para estudarem o bem-estar das populações mais pobres da Índia, com ênfase nas crianças.
Eu e Nikhil pisamos um pequeno riacho onde rebolam larvas de moscas-das-flores, parecidas com caudas de ratazana, e entramos num complexo bem varrido. É ali que nos encontramos com Jagdish, um motorista de autocarros reformado que gastou cerca de 660 euros na construção de uma latrina com fossa de dois metros de profundidade, em vez de um, como o governo recomenda, e fez o acabamento da estrutura com azulejos de golfinhos.
“É para a minha mulher e a minha nora”, diz.
À semelhança de muitos vizinhos, Jagdish prefere subir a colina e entrar no mato para as abluções diárias. Na Índia rural, é isso que é esperado dos homens. Os avisos patriarcais reforçam este conceito, apelando aos homens que construam sanitários, não para garantir a saúde familiar mas para proteger as mulheres e filhas de assédio sexual e evitar a vergonha de levantar o sari fora de casa.
E contudo, como pude testemunhar em Jawda, no mundo rural muitas mulheres ignoram estas mensagens e ainda vão sozinhas até ao mato. Estas mulheres e raparigas talvez sintam relutância em quebrar a tradição ou talvez se sintam constrangidas no interior de uma latrina. Algumas talvez valorizem a oportunidade de se reunirem com as amigas. A defecação a céu aberto, por estranho que possa soar aos ouvidos ocidentais, proporciona às jovens mulheres uma apreciada pausa para se afastarem das tarefas domésticas e da tutela dos sogros e maridos.
Índia, a norte Bhopal, a activista Santoshi Tiwari conduz os aldeões através de um campo pontilhado de dejectos humanos. Explica a maneira como as moscas transportam micróbios até aos alimentos e bebidas, oferecendo-se para ajudá-los a construírem casas de banho e tentando envergonhá-los pelos hábitos insalubres.
Jagdish mostra-se orgulhoso da sua latrina, construída com fundos da Swachh Bharat e com as suas próprias poupanças. Só lamenta não ter escavado a fossa ainda mais funda. As latrinas com fossa apresentam uma enorme desvantagem: acabam por encher. E em vez de esvaziarem a fossa com uma pá, de contratar um camião de bombagem ou de escavar uma latrina nova, prática comum noutros países, os indianos, em particular no Norte, preferem não construir latrina nenhuma.
Há três anos, os investigadores da RICE recolheram dados sobre a utilização de latrinas por mais de 22 mil habitantes da Índia rural.
A equipa descobriu que, em 40% dos agregados familiares com casas de banho, havia pelo menos um membro que continuava a defecar ao ar livre; havia duas vezes mais probabilidades de as pessoas com sanitários financiados pelo governo defecarem ao ar livre do que as que construíam a sua própria casa de banho; e as famílias sem instalações afirmavam não ter dinheiro para pagar o tipo de sanitários que efectivamente utilizariam. A RICE averiguou que as latrinas com fossa construídas por privados eram quatro a cinco vezes maiores do que os 1,4 metros cúbicos recomendados pela Organização Mundial da Saúde. “É esse o tamanho utilizado em todo o mundo e uma família de seis pessoas demora mais de cinco anos a enchê-la”, afirma Nikhil. Para os indianos, a latrina com fossa ideal seria ainda maior.
Porquê esta obsessão pelo tamanho? “Uma fossa de absorção mais pequena encher-se-ia em cinco meses”, explica Jagdish, erradamente. “Então, eu teria de contratar um dalit [antigamente designado por Intocável] para despejá-la.”
“E não poderia fazê-lo sozinho?”, pergunta Nikhil. Jagdish nega, com a cabeça.
“Haveria objecções da comunidade”, diz. “Seria ostracizado se limpasse a minha própria casa.”
Esta declaração sugere uma resposta ao grande quebra-cabeças do saneamento na Índia. Por que motivo são as taxas de defecação a céu aberto mais elevadas neste país do que noutros países menos desenvolvidos, quando a Índia é mais rica, possui taxas de alfabetização mais altas e tem acesso mais fácil à água? Os factores diferenciadores da Índia são as convicções dos habitantes rurais do país sobre pureza, poluição e casta.
Há milhares de anos que os dalit estão proibidos de beber dos mesmos poços, prestar culto nos mesmos templos ou de terem sapatos calçados na presença de castas superiores. A legislação contemporânea contra a discriminação raramente é aplicada e a pobreza e a violência continuam a obrigar os dalit a desempenhar as tarefas sujas da nação. Entretanto os indianos de casta mais alta preservam o seu estatuto e suposta superioridade em parte por evitarem qualquer associação com tais trabalhos degradantes.
Nos últimos anos, contudo, os dalit em luta pela igualdade começaram a rejeitar o tipo de empregos tradicionalmente utilizados para justificar a sua opressão. Assim, os custos associados ao despejo de latrinas de fossa aumentaram, à medida que a procura pelo serviço ultrapassava a oferta de trabalhadores dispostos a fazê-lo. Atendendo às tensões desta paisagem social e económica, não admira que alguns habitantes da Índia rural poupem dinheiro para construir latrinas com fossas de tal maneira grandes que nunca precisem de as esvaziar. Ou que centenas de milhões de indianos prefiram tratar do seu assunto ao ar livre.
A nível mundial, a maior parte das pessoas que defeca ao ar livre vive em espaços rurais. Na Índia, porém, o número de residentes em bairros-de-lata urbanos que o fazem está a crescer, à medida que a população aumenta e os aldeãos migram para cidades desprovidas de instalações sanitárias, de sistema de esgotos ou de estações de tratamento de águas residuais. Nas cidades indianas, vivem hoje 157 milhões de pessoas (37% da população urbana) sem casas de banho com segurança e privacidade. “É mais fácil mudar os comportamentos nos bairros de lata porque essa necessidade entra ali pelos olhos dentro”, resume Pragya Gupta, da WaterAid India, uma organização não governamental do sector do saneamento.
Índia, depois de um investimento de 22 mil euros na instalação de uma conduta de esgoto em Safeda Basti, 62 agregados familiares construíram casas de banho privadas associadas, algumas das quais no alto dos telhados (como se vê no canto esquerdo da imagem). Sem canalizações, porém, a maioria dos moradores ainda precisa de trazer água das torneiras da rua.
Eu e Pragya estamos a visitar Safeda Basti, um bairro de lata na Colónia Geeta, na região leste de Deli. O bulício é constante nas ruas estreitas e repletas de lojas. Sem instalações sanitárias em casa, as pessoas aliviam-se em lotes juncados de lixo ou fazem fila junto de um complexo comunitário de casas de banho nas proximidades.
Pergunto a um grupo de mulheres que vantagens vêem na existência destas instalações, na expectativa de ouvi-las falar em comodidade, privacidade e segurança. Em vez disso, todas dizem detestá-las. “Somos obrigadas a fazer fila e esperar porque não há casas de banho suficientes”, diz uma delas. “Por isso, os nossos filhos chegam atrasados à escola.”
“As pessoas agridem-se”, acrescenta a sua vizinha. “As raparigas são assediadas à noite.” As sanitas turcas estão sujas, as torneiras avariadas e não há sabão. Em alguns complexos, não há telhado, o que é uma desgraça durante a monção. Outros não possuem electricidade. E como se tudo isto não fosse suficientemente mau, o complexo cobra algumas rupias por dia e encerra das 11 horas da noite às 4 ou 5 da manhã. De noite, as pessoas fazem o que precisam de fazer.
Enquanto enxoto moscas, sigo uma vala de escoamento no meio da rua até ao ponto em que se aproxima de um canal fétido, no limite da colónia. Valas de escoamento como esta também se apresentam carregadas de lixo, restos de comida e de urina e fezes das crianças que não conseguem aguentar até à casa de banho. Em zonas estagnadas, o metano borbulha até à superfície através da água cinzento-esverdeada e o fedor a ovos podres (sulfureto de hidrogénio) esvoaça pelas casas adentro. Com tantos seres humanos amontoados e tanta matéria fecal presente, não ficamos surpreendidos quando um trabalhador do sector da saúde local nos diz que os principais problemas médicos da colónia são a diarreia e as lombrigas.
Noutros bairros de lata de Deli, as valas de escoamento das ruas transbordam quando há chuvadas fortes e a água sobe até dar pelas canelas, inundando os soalhos onde os moradores dormem. Ao visitar vários desses lugares, ouço um refrão constante: “Queremos esgotos, queremos as nossas próprias casas de banho”, um pedido ambicioso, para lá das latrinas construídas pelo governo. Muitos bairros de lata, porém, encontram-se demasiado sobrepovoados ou são estruturalmente inseguros para se construir um sistema de esgotos e o governo mostra-se relutante em prestar serviços a moradores que considera ilegais, em terrenos que podem ser afectos à construção imobiliária privada.
Então, onde poderá haver esperança? Abrindo caminho através de bosques cerrados de burocracia interministerial, a WaterAid India e o Centro para a Excelência Urbana e Regional, uma organização sem fins lucrativos sediada em Deli, conseguiram recentemente angariar financiamento para instalar uma pequena linha de esgoto pouco profunda numa das vielas de Safeda Basti. A conduta, que desagua num esgoto principal na fronteira do bairro de lata, ficou pronta em 2015. Poucos meses mais tarde, 62 agregados familiares instalaram latrinas, algumas das quais no topo do telhado, com ligação ao novo esgoto, retirando trezentos utilizadores da multidão amontoada junto do complexo de instalações sanitárias.
De súbito, certos tabus culturais inabordáveis desmoronaram-se: viver perto de uma casa de banho é vantajoso. Da maneira como Pragya Gupta entende o desafio sanitário da Índia, nas cidades a situação é oposta à observada no campo. Na cidade, a mudança dos comportamentos é relativamente fácil. Difícil, é a construção e manutenção de infra-estruturas.
Haiti, em Port-au-Prince, Exilien Cenat posiciona-se sobre uma casa de banho comunitária. Trabalhando de noite, para evitar a troça pública, esvazia a fossa com as mãos e um balde, recolhe os dejectos em sacas e despeja as sacas em valas ou canais. Sanitários com autoclismo e esgotos seriam uma solução mais saudável, mas o seu custo é proibitivo.
Para Bezwada Wilson, activista dos direitos humanos residente em Deli cuja actividade se destina a melhorar a situação dos dalit, os sanitários com autoclismo são a única via para a emancipação social. “A Índia tem electricidade e estradas”, afirma. “Somos fornecedores de gás natural. Quando chegamos às valas de escoamento e esgotos, o governo diz que não há dinheiro?” Sacode a cabeça, incrédulo. Mesmo em zonas rurais, Bezwada não percebe qual é a necessidade de promover as latrinas com fossa. “A criação de mais latrinas só servirá para criar mais limpeza manual coerciva”, diz.
Além de mais dispendiosos, os sanitários com autoclismo e os esgotos requerem águas correntes, indisponíveis em muitas regiões da Índia.
A tecnologia pode dar um contributo. Estão a ser desenvolvidas instalações sanitárias sem necessidade de água, funcionando a energia solar, que permitirão esterilizar os resíduos recolhidos, tornando-os utilizáveis como adubo agrícola ou carvão. Uma solução mais barata e mais simples, já disponível, consiste em recorrer a latrinas de compostagem equipadas com duas fossas instaladas a cerca de um metro de distância uma da outra. Depois de cheia a primeira, os resíduos são desviados para a segunda. Muito antes de a última encher, o conteúdo da primeira já secou, os agentes patogénicos morreram e os resíduos secos (com elevado teor de azoto, fósforo e potássio) podem ser aplicados nos campos agrícolas com segurança.
Ainda assim, a fossa precisa de ser escavada e isso tem gerado enormes limitações à instalação de latrinas de fossa dupla na Índia. “Nas aldeias, dizem-me: ‘Por muito secos que estejam, continuam a ser dejectos”, afirma Nikhil Srivastav. “ ‘Se os remover, isso tornar-me-á intocável.’”
Para Diane Coffey, da RICE, esse preconceito constitui o nó górdio do problema indiano. É importante ensinar que as fossas normais demoram anos, e não meses, a encher: o mesmo é válido para as bombas, financeiramente comportáveis, que tornariam o esvaziamento das fossas mais higiénico. Na verdade, o contributo mais importante para travar a defecação a céu aberto “é contrariar as noções de casta que consideram inaceitáveis as latrinas de fossa”, diz a especialista.
Parameswaran Iyer, ministro para a Água Potável e Saneamento Básico da Índia, reconhece o peso da casta na questão do saneamento. “A Missão Swachh Bharat está efectivamente a contribuir para derrubar barreiras porque uma aldeia não pode ficar livre da defecação a céu aberto (LDAC) se todas as suas componentes não estiverem também LDAC”, insiste. “A comunidade inteira tem de aderir.” “Cem mil é o número de aldeias actualmente livres da defecação a céu aberto”, diz o ministro. Já só faltam 540 mil, observei. E três anos para terminar o prazo fixado pelo primeiro-ministro.
Parameswaran Iyer não se deixa impressionar. O governo recompensa as aldeias com certificação LDAC, fazendo-as subir na lista prioritária para introdução de melhorias no sector rodoviário ou da água potável. Lançou uma campanha publicitária que exalta mascotes da Swachh Bharat, como a senhora de 106 anos residente no estado de Chhattisgarh que vendeu sete cabras para construir duas casas de banho. Mobilizou o empenho das estrelas do críquete e de Bollywood para exortarem as pessoas a servir-se das novas latrinas. Quanto ao tema do esvaziamento dessas latrinas, a campanha mantém-se silenciosa.
Entretanto, as aldeias que se empenham a fundo no estatuto LDAC tomam medidas contra os infractores. A perseguição movida por Moolchand às pessoas que andam furtivamente de lota na mão é apenas um exemplo. Há chefes de aldeias que chegam mesmo a deter os delinquentes ou a multá-los em 500 rupias (mais do dobro do salário diário de um trabalhador agrícola), enquanto os chefes de distrito podem cortar as rações de arroz, trigo, açúcar, óleo ou querosene disponibilizadas pelo Estado.
Haiti, Os pais de Fritznel Xavier demoraram seis horas a transportar o filho com vómitos até a o centro de tratamento da cólera em Jérémie. Estabilizado com líquidos por via intravenosa, sobreviveu mas regressou a uma aldeia que carece de instalações sanitárias adequadas.
Todas estas medidas começam a ter repercussões, segundo Parameswaran Iyer. “Mesmo com séculos de hábitos e crenças, acho que todos estão a mudar. A mudança já ganhou embalagem.”
Talvez seja verdade, mas, para os críticos, a análise governamental pinta o desafio com cores demasiado garridas. Citando estatísticas da ONU, o governo afirma que a taxa de defecação a céu aberto diminuiu de 75 para 44% da população entre 1990 e 2015. Mas essa estimativa reflecte apenas o número de latrinas construídas e não o número das que são efectivamente utilizadas, de maneira consistente, por todos os membros da família.
Certo dia de manhã, numa aldeia a norte de Bhopal, mais de cem pessoas reúnem-se numa zona aberta. Santoshi Tiwari, uma trabalhadora rural de língua afiada e colaboradora da organização regional Samarthan, manda-as sentar-se. Primeiro pergunta-lhes qual a estrutura da sua aldeia de que sentem mais orgulho. O templo, afirmam. E o que os envergonha mais? Os dejectos humanos ao longo das estradas.
Santoshi Tiwari condu-los, depois de passarem pelo templo, até um campo recentemente lavrado, onde de súbito se detém. “O que é isto?” pergunta, apontando para o solo.
Alguns brincalhões propõem variantes do termo técnico. Santoshi pergunta se os excrementos podem ser identificados – se são de homem, de mulher ou de criança e de que casta. “São de uma casta inferior porque nesta zona vive gente dessa”, afirma uma mulher. Santoshi prossegue: Quantas pessoas vivem aqui? Cerca de 1.500, grita um jovem. Santoshi Tiwari explica que cada pessoa produz diariamente cerca de 250 gramas de fezes. Ou seja, a aldeia gera todos os anos aproximadamente 130 mil quilogramas.
Agora, porém, muda para uma expressão séria. Explica-lhes que as fezes circulam pela aldeia nas patas das moscas, na água e na poeira. Abre uma garrafa de água, deita um pouco numa taça de plástico e dá um golinho. De seguida, arranca um cabelo comprido da sua cabeça, passa-o pelo monte de esterco que se encontra no solo e roda o fio imundo dentro da taça de água. A multidão recua um passo: os rostos contorcem-se de nojo. “Seriam capazes de beber esta água?”, pergunta, estendendo-lhes a taça. “É só um cabelo”, acrescenta. “As moscas têm seis patas.”
Provocar nojo, descrevendo e quantificando as fezes e mergulhando cabelos sujos dentro de água potável, é o símbolo do “saneamento total dirigido pela comunidade”, um método ao qual foi atribuído o mérito de reduzir a defecação a céu aberto em locais não afectados pela divisão por castas. Santoshi Tiwari promete regressar para ajudar os moradores a tratar da papelada para obter o subsídio do governo, comprar tijolos e formar pedreiros para a construção de fossas. No entanto, mesmo que as lamas residuais primárias sejam despejadas numa vala distante, representarão um problema sanitário de menor importância do que pilhas individuais de fezes depositadas nas estradas e campos.
A Samarthan e outros grupos promovem as latrinas de fossa dupla e o adubo inofensivo que geram. Depois da apresentação de Santoshi Tiwari, pergunto a um ancião da aldeia, que não é dalit, o que fará quando a sua fossa encher. “É como se fosse lama, por isso, não há problema em sermos nós a despejá-la,” responde. Quero acreditar nele. Mas muitos outros, em aldeias supostamente LDAC, contaram-me que contratariam um dalit.
De regresso à aldeia, Santoshi Tiwari recorda a ligação existente entre as fezes e a diarreia, lembrando que a aldeia gasta dezenas de milhares de rupias por ano em medicamentos. Santoshi embaraça-os por gastarem rupias em telemóveis ou em alimentos funerários, em vez de as despenderem em instalações sanitárias. Tenta todos os argumentos. Depois de uma hora de discurso, pergunta: “Acham que isto deve mudar?” “Sim!”, responde a multidão. “Quem vai acabar com a defecação ao ar livre?”, grita. Cem mãos levantam-se no ar.