Do baú: Quais eram os desafios do papa Francisco em 2015? (com Fotogaleria)

Hoje republicamos uma grande reportagem sobre os desafios que enfrentava Jorge Mario Bergoglio cerca de dois anos após se tornar o 266º papa da Igreja Católica. Alguns – como por exemplo, os abusos sexuais dentro da igreja – continuam na ordem do dia.

Actualizado a

Vaticano

A preferência de Francisco pelo serviço aos pobres em detrimento da imposição de doutrina inspira alegria, mas também angústia, entre os católicos romanos.

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Filho de emigrantes italianos na Argentina, Jorge Mario Bergoglio tinha a fama de viver próximo do povo de Buenos Aires e era frequente visitar os bairros de lata e andar de metro.

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Acompanhado de guarda-costas e assessores, o papa atravessa a pé a Praça de São Pedro.

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Em Roma, Francisco viaja dentro de um papamóvel, sem a protecção de vido à prova de bala.

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Anteriormente avesso às máquinas fotográficas, o papa resignou-se à moda das selfies.

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O papa abraça um jovem deficiente em frente da Basílica de São Pedro, em Roma.

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As reacções à presença do papa são fortemente emotivas, onde homens e mulheres choram abertamente.

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Cardeais e bispos assistem à missa celebrada para comemorar a beatificação do papa Paulo VI.

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Os peregrinos chegam cedo, reservam lugares destacados e esperam horas.

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Quando Francisco aparece na Praça de São Pedro, a cacofonia acentua-se. Os fiéis entram em frenesi, erguendo cartazes, terços e crianças para serem abençoadas.

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Depois de transportado num automóvel discreto, Francisco entra no Palácio Apostólico. Os papas costumavam residir aqui, mas Francisco optou por um modesto apartamento nas proximidades.

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O papa caminha pela Sala Régia após proferir uma alocução.

No dia em que cerca de sete mil estranhos boquiabertos o vêem pela primeira vez em público, ele ainda não é papa. Porém, há algo assombroso já presente neste homem. No interior do Estádio Luna Park, em Buenos Aires, capital da Argentina, católicos romanos e cristãos evangélicos reuniram-se para uma celebração ecuménica. Um pastor apela ao arcebispo da cidade que suba ao palco e profira algumas palavras. Embora cardeal, não enverga ao pescoço a tradicional cruz peitoral. Veste apenas uma camisa negra sacerdotal e um casaco, réplica do simples sacerdote que era há décadas. É um homem magro e idoso, de semblante carregado, e, neste momento, ocorrido há nove anos, dificilmente alguém imaginaria que um argentino tão despretensioso e de aspecto fúnebre pudesse um dia tornar-se conhecido, em todos os cantos do mundo, como uma figura resplandecente e carismática.

“Que bonito ver que ninguém negoceia a sua história no caminho da fé, ver que somos diversos, mas que queremos ser, que começamos já a ser, uma diversidade reconciliada.”

Exprime-se calmamente, a princípio, mas mostra nervos de aço. Fala em castelhano, a sua língua materna. Não traz notas escritas. O arcebispo não faz menção aos tempos em que se referia depreciativamente ao movimento evangélico, tal como muitos sacerdotes católicos latino-americanos, como escuela de samba, manifestação frívola semelhante ao ensaio de uma escola de samba. Aliás, o mais poderoso argentino da Igreja Católica, declara que as distinções entre credos não importam aos olhos de Deus. “Que bonito ver irmãos reunidos, irmãos a rezar juntos”, diz. “Que bonito ver que ninguém negoceia a sua história no caminho da fé, ver que somos diversos, mas que queremos ser, que começamos já a ser, uma diversidade reconciliada.”

Em Roma, Francisco viaja dentro de um papamóvel, sem a protecção de vidro à prova de bala. O pontífice costumava deambular livremente pelas ruas quando era cardeal, em Buenos Aires., mas em Roma não pode fazê-los, por razões de segurança.

Abrindo os braços, de rosto subitamente animado, voz tremente de paixão, dirige-se a Deus num apelo: “Pai, estamos divididos. Torna-nos unidos!”

Aqueles que conhecem o arcebispo ficam estarrecidos, pois a sua expressão implacável granjeou-lhe alcunhas como“Mona Lisa”. O momento desse dia que ficará na memória ocorre imediatamente depois de ele parar de falar. Baixando-se lentamente, ajoelha-se no palco, um apelo para que os fiéis rezem por ele. Após uma pausa de espanto, a multidão começa a orar, dirigida por um ministro evangélico. A imagem do arcebispo ajoelhado entre homens de estatuto inferior, numa postura ao mesmo tempo humilde e impressionante, mereceu-lhe as primeiras páginas dos jornais na Argentina.

O “Cabildo” foi um dos jornais que publicou a fotografia. É visto como porta-voz dos católicos ultraconservadores do país. A acompanhar a reportagem, uma manchete ecoava o substantivo dissonante: apóstata. O cardeal foi tratado como traidor à fé. Eis Jorge Mario Bergoglio, futuro papa Francisco.

Preciso realmente de começar a fazer mudanças agora mesmo”, contou Francisco a meia dúzia de amigos argentinos um dia de manhã, apenas dois meses depois de 115 cardeais reunidos em conclave no Vaticano o terem elevado de uma obscuridade relativa ao trono papal. Para muitos observadores, o novo papa já mudara aparentemente tudo da noite para o dia. Foi o primeiro papa latino-americano, o primeiro papa jesuíta, o primeiro em mais de mil anos que não nasceu na Europa e o primeiro que escolheu o nome Francisco em homenagem a São Francisco de Assis. Momentos depois da sua eleição no dia 13 de Março de 2013, o novo líder da Igreja Católica surgiu numa varanda da Basílica de São Pedro todo vestido de branco, sem a tradicional capa escarlate sobre os ombros nem a estola vermelha bordada a oiro envolvendo-lhe o pescoço. Saudou a multidão que rugia com uma simplicidade electrizante: “Fratelli e sorelle, buona sera.” E terminou com um pedido, que muitos argentinos já conheciam de outros discursos: “Rezem por mim.” Ao partir, ignorou a limusina que o aguardava e saltou para o autocarro onde seguiam os cardeais que tinham acabado de o eleger.

Em vez de celebrar a missa vespertina de Quinta-Feira Santa (comemorando a Última Ceia) numa basílica, lavando os pés a sacerdotes, como era tradicional, optou por celebrá-la numa prisão de jovens, fazendo o lava-pés a doze reclusos, incluindo mulheres e muçulmanos, estreia absoluta para um papa.

Na manhã seguinte, o papa pagou a conta no hotel onde estivera alojado. Prescindindo dos tradicionais aposentos papais reservados no interior do Palácio Apostólico, preferiu um apartamento de dois quartos da Casa Santa Marta, a residência para convidados do Vaticano. No seu primeiro encontro com os órgãos de comunicação social internacionais, proclamou a sua maior ambição: “Gostaria de ter uma igreja que fosse pobre e feita para os pobres.” Em vez de celebrar a missa vespertina de Quinta-Feira Santa (comemorando a Última Ceia) numa basílica, lavando os pés a sacerdotes, como era tradicional, optou por celebrá-la numa prisão de jovens, fazendo o lava-pés a doze reclusos, incluindo mulheres e muçulmanos, estreia absoluta para um papa. E tudo isto durante o seu primeiro mês como bispo de Roma.

Ainda assim, os amigos argentinos do novo papa perceberam bem o que ele queria dizer com “mudanças”. Embora o mais pequeno dos seus gestos transmitisse um grande significado, o homem que eles conheciam não se satisfazia com símbolos. Prático e calejado nas ruas, ele era um porteño, nome que os moradores da cidade portuária de Buenos Aires atribuem a si mesmos. Queria que a Igreja Católica fizesse uma diferença duradoura nas vidas das pessoas, como um hospital num campo de batalha, admitindo a entrada de todos os feridos, independentemente do lado em que combateram.

Embora para o mundo exterior o papa Francisco parecesse ter explodido nos céus como uma chuva de meteoros, no seu país ele era uma figura religiosa bem conhecida e ocasionalmente controversa. Filho de um contabilista cuja família emigrara do Piemonte, no Noroeste de Itália, Bergoglio destacara-se logo ao entrar no seminário em 1956, aos 20 anos, depois de trabalhar como técnico de laboratório e como porteiro-segurança numa discoteca. Pouco depois, optou pela intelectualmente exigente Companhia de Jesus como via para o sacerdócio. Enquanto aluno do Colégio Máximo de San José, em 1963, revelou um “elevado discernimento espiritual e capacidades políticas”, segundo um dos seus professores, o padre Juan Carlos Scannone, de tal maneira que rapidamente ascendeu a orientador espiritual, quer de alunos quer de professores.

Ensinou rapazes indisciplinados, lavou os pés de prisioneiros, fez estudos no estrangeiro. Assumiu funções como reitor do Colégio Máximo, tornando-se presença habitual em bairros de lata miseráveis da cidade de Buenos Aires. E subiu na hierarquia dos Jesuítas, mesmo enquanto singrava pela vida política lodosa de uma época que assistiu aos compromissos assumidos pela Igreja Católica primeiro com Juan Perón e, mais tarde, com a ditadura militar. Caiu em desgraça junto dos seus superiores hierárquicos jesuítas e foi depois resgatado do exílio por um cardeal seu admirador. Bispo em 1992, tornou-se arcebispo em 1998 e cardeal em 2001.

Primeiro papa oriundo da América Latina, Francisco é filho de imigrantes italianos na Argentina. Era conhecido por viver próximo do povo de Buenos Aires, cidade onde nasceu, e era frequente visitar os bairros de lata e andar de metro, como nesta fotografia de 2008.

De temperamento tímido, Bergoglio — que se descreve como callejero ou vagabundo das ruas — preferiu a companhia dos pobres à dos ricos, fazendo a si mesmo poucas concessões: literatura, futebol, tango e gnocchi. Apesar de toda a sua simplicidade, este porteño revelou-se um animal urbano, um fino observador da sociedade e, na sua maneira discreta, um chefe natural. Também soube, conforme as ocasiões, como em 2004, lançar um ataque demolidor à corrupção durante um discurso presenciado pelo presidente argentino, ou em 2006, no Luna Park, baixar-se de joelhos no chão. O padre Carlos Accaputo, um assessor próximo desde que começou a trabalhar para Bergoglio em 1992, diz dele: “Acho que Deus o preparou, através de todo o seu ministério pastoral, para este momento.”

Além disso, a sua ascensão ao sólio pontifício não foi acidental. O jornalista romano Massimo Franco crê que “a sua eleição teve origem num trauma” — da súbita resignação (sem precedentes nos últimos quase seis séculos) do papa em funções, Bento XVI, e do sentimento partilhado pelos cardeais mais progressistas de que, devido à atitude fechada e eurocêntrica da Santa Sé, a Igreja Católica estava a apodrecer por dentro.

Nessa manhã, sentado na sala de estar do seu apartamento, o papa enumerou perante os seus velhos amigos os enormes desafios que o aguardavam. Descontrolo financeiro no Instituto para as Obras Religiosas (mais grosseiramente referido como Banco do Vaticano). Avareza burocrática ensombrando a administração central, conhecida como Cúria Romana. Revelações constantes sobre padres pedófilos protegidos da justiça por funcionários da igreja. Nestas e noutras matérias, Francisco manifestou a intenção de agir com rapidez, sabendo que, nas palavras de um amigo, presente na reunião dessa manhã, o pastor pentecostal e professor universitário Norberto Saracco, “criaria muitos inimigos. Não é uma pessoa ingénua, entende?”

Saracco recorda-se de manifestar a sua preocupação face ao arrojo do papa. “Jorge, nós sabemos que tu não andas vestido com um colete à prova de bala”, disse. “Anda aí muita gente doida.”

Francisco respondeu com calma: “O Senhor pôs-me aqui. Ele terá de olhar por mim.” Embora não tivesse pedido para ser papa, ele disse ter experimentado, no momento em que o seu nome foi proclamado, uma forte sensação de paz. E apesar das animosidades que provavelmente atrairia sobre si, assegurou aos amigos: “Ainda sinto a mesma paz.”

Já o que o Vaticano sente, isso é outra conversa.

Frederico Wals, durante vários anos adido de imprensa de Bergoglio, viajou de Buenos Aires para Roma no ano passado para visitar o papa. Primeiro, porém, foi falar com o padre Federico Lombardi, há muitos anos responsável do Vaticano para as comunicações, o seu homólogo mas a uma escala muito maior. “Então, padre, como se sente em relação ao meu antigo patrão?”, perguntou o argentino. Esboçando um sorriso com dificuldade, Lombardi retorquiu: “Confuso.”

“Para Francisco, a diplomacia não é estratégica. Prefere dizer que reuniu com esta pessoa, agora temos uma relação pessoal e vamos fazer o bem pelas pessoas e pela igreja.”

Lombardi exercera funções como porta-voz de Bento XVI, anteriormente conhecido como Joseph Ratzinger, um homem de precisão germânica. Depois de se reunir com um líder mundial, o papa anterior emergia e metralhava um resumo incisivo, conta Lombardi, com evidente saudade: “Era incrível. Bento falava com toda a clareza. Dizia: ‘Falámos sobre estes assuntos, eu concordo com estes pontos, discordaria destes outros, o objectivo da próxima reunião vai ser este’ — em dois minutos, ficava esclarecido sobre o teor da reunião. Com Francisco passa-se assim: ‘Eis um homem sensato. Teve estas experiências interessantes.’”

Com uma risadinha a roçar o desalento, Lombardi acrescenta: “Para Francisco, a diplomacia não é estratégica. Prefere dizer que reuniu com esta pessoa, agora temos uma relação pessoal e vamos fazer o bem pelas pessoas e pela igreja.”

O porta-voz do papa alarga-se sobre a nova orientação do Vaticano, sentado numa pequena sala de conferências no edifício da Rádio Vaticano, a dois passos do rio Tibre. Lombardi usa uma sotaina de sacerdote amarrotada, a condizer com a expressão de estupefacção cansada do seu rosto. Ainda ontem, conta, o papa organizou uma reunião na Casa Santa Marta com 40 líderes judaicos, e o gabinete de imprensa do Vaticano só soube disso depois do facto ocorrido. “Ninguém sabe tudo o que ele anda a fazer”, afirma Lombardi. “Nem sequer o seu secretário pessoal sabe. Tenho de andar a bater de porta em porta. Cada pessoa conhece um fragmento apenas da sua agenda.” O responsável pelas comunicações do Vaticano encolhe os ombros e comenta: “É assim a vida.”


Cardeais e bispos assistem à missa celebrada para comemorar a beatificação do papa Paulo VI e assinalar o fim de um sínodo em que se debateram temas como o divórcio e o casamento entre pessoas do mesmo sexo.

A vida era totalmente diferente no tempo de Bento XVI, um universitário cerebral que continuou a escrever livros de teologia ao longo dos seus oito anos de papado, e no tempo de João Paulo II, um executante com formação teatral e linguista consumado cujo papado durou quase 27 anos. Os dois homens eram guardiães fiáveis da ortodoxia papal. O espectáculo deste novo papa, de relógio de plástico e sapatos ortopédicos volumosos, tomando o pequeno-almoço na cafetaria do Vaticano, exigiu algumas adaptações.





sentido de humor

O mesmo se pode dizer do seu

, que é claramente informal. Depois de receber a visita, na Casa Santa Marta, do seu velho amigo e concidadão argentino, o arcebispo Claudio Maria Celli, Francisco insistiu em acompanhar o seu convidado ao elevador.

Francisco reduziu drasticamente as competências do secretário de Estado, em especial no que se refere às finanças do Vaticano.

“Porquê?”, perguntou Celli. “Para teres a certeza de que me fui embora?” Sem perder tempo, o papa retorquiu: “E para ter a certeza de que não levas nada contigo.”

Para tentarem adivinhar as idas e vindas do papa de 78 anos [que hoje conta com 86], os funcionários do Vaticano recorrem ao cardeal Pietro Parolin, secretário de Estado de Francisco, um diplomata veterano muito respeitado, em quem o seu patrão deposita confiança, segundo Wals, “porque ele não é demasiado ambicioso e o papa sabe disso. Essa é a qualidade fundamental para o papa”. Ao mesmo tempo, Francisco reduziu drasticamente as competências do secretário de Estado, em especial no que se refere às finanças do Vaticano. 

“O problema disto é que a estrutura da cúria deixou de ser transparente”, afirma Lombardi. “O processo encontra-se em curso e, no fim, ninguém conhece o resultado. O secretário de Estado já não desempenha um papel tão central e o papa tem muitas relações conduzidas apenas por si sem qualquer mediação.”

Sublinhando corajosamente as vantagens, o porta-voz do Vaticano acrescenta: “Num certo sentido, isto é positivo, porque no passado ouviam-se críticas por haver uma pessoa com demasiado poder sobre o papa. Essas vozes já não o podem dizer agora.”

À semelhança de muitas instituições, o Vaticano não mostra receptividade às mudanças e olha com suspeição a sua introdução. Desde o século XIV que o epicentro do mundo católico é uma cidade-estado com 44,5 hectares no interior de Roma. Há muito que a Cidade do Vaticano funciona como um íman que atrai os turistas, graças à Capela Sistina e à Basílica de São Pedro, bem como destino de peregrinação para os 1.200 milhões de católicos do planeta, o que significa que é o mundo que se dirige a Roma e nunca o contrário. Mas também é apenas aquilo que a sua designação implica: um Estado soberano voltado sobre si mesmo, com administração municipal, força policial, tribunais, corpo de bombeiros, farmácia, serviço postal, loja de mercearias, jornal e equipa de críquete próprios. O seu departamento de imprensa, os Vaticanisti, regista os assuntos respeitantes ao Vaticano com o cinismo desconfiado de quaisquer repórteres habituados a vigiar negócios municipais. Os seus colaboradores, por tradição conservadores, não pagam impostos de transacção na Cidade do Vaticano. A sua burocracia diplomática, seguindo o que é normal nas burocracias, recompensa os bispos preferidos com postos bons e relega os menos favorecidos para regiões do mundo comparativamente menos atraentes. Durante muitos séculos, aguentou conquistas, epidemias, fomes, fascismo e escândalos. As muralhas mantiveram-se de pé.

E agora aparece Francisco, um homem com desprezo por muralhas e que uma vez disse a um amigo, ao caminharem passando pela Casa Rosada, residência do presidente da Argentina: “Como podem eles saber o que quer o cidadão comum quando constroem vedações à sua volta?” Francisco tem-se esforçado por ser aquilo a que Massimo Franco, autor de um livro sobre Francisco e o Vaticano, chama “um papa disponível, uma definição com termos contraditórios”. Este próprio conceito parece ter drenado o sangue do rosto opaco do Vaticano.

Os funcionários do Vaticano ainda estão a avaliar o homem. É tentador para eles considerar as reacções sinceras do papa como prova de que é uma criatura de puro instinto.

“Penso que ainda não assistimos às verdadeiras mudanças”, declara Ramiro de la Serna, um padre franciscano residente em Buenos Aires que conhece o papa há mais de trinta anos. “E acho também que ainda não assistimos à verdadeira resistência.”

Os funcionários do Vaticano ainda estão a avaliar o homem. É tentador para eles considerar as reacções sinceras do papa como prova de que é uma criatura de puro instinto. “Totalmente espontâneo”, diz Lombardi sobre os muito comentados gestos de Francisco durante a sua viagem ao Médio Oriente, como o abraço ao imã Omar Abboud e ao rabino Skorka, depois de rezar com eles no Muro das Lamentações. Como Skorka admite, “eu discuti o assunto com ele antes de partirmos para a Terra Santa e disse-lhe que o meu sonho era abraçá-lo e a Omar junto do Muro”.

O facto de Francisco ter concordado previamente em satisfazer o desejo do rabino não torna o gesto menos sincero: em vez disso, sugere a consciência de que cada acto e sílaba serão esquadrinhados em busca de significado simbólico. Tal prudência é inteiramente compatível com o Jorge Bergoglio conhecido pelos seus amigos argentinos, que se riem da ideia de que nele nada existe de matreiro. Descrevem-no como um “jogador de xadrez”, para quem cada dia é “organizado na perfeição”. O próprio Bergoglio contou aos jornalistas Francesca Ambrogetti e Sergio Rubin, há vários anos, que raramente cedia aos seus impulsos, uma vez que “a primeira resposta que me vem à cabeça está normalmente errada”.

Acompanhado de guarda-costas e assessores, o papa atravessa a pé a Praça de São Pedro.

Apesar das mudanças de estilo de vida aparentemente drásticas por si introduzidas, Francisco fez cedências de bom senso às realidades do Vaticano. Antes sugerira que os seus Guardas Suíços não precisavam de segui-lo para toda a parte, mas desde então conformou-se com a sua quase constante presença. Pede frequentemente aos guardas que lhe tirem fotografias com os visitantes — outra cedência, uma vez que Bergoglio há muito se afastou das objectivas. Embora tenha prescindido do papamóvel envolto em vidro à prova de bala, frequentemente utilizado desde a tentativa de assassínio contra João Paulo II em 1981, ele admite que já não pode andar de metropolitano e conviver nos bairros pobres, costume que lhe deu fama em Buenos Aires.

Talvez por isso o papa tenha lamentado, quatro meses depois da eleição: “Não imaginam quantas vezes tive vontade de sair para passear pelas ruas de Roma. Em Buenos Aires, gostava de caminhar pela cidade. Gostava mesmo de fazer isso. Nesse aspecto, sinto-me um bocadinho encurralado.”

Segundo os amigos, como líder do Vaticano e argentino, ele sentiu-se obrigado pelo dever a receber a presidente do seu país, Cristina Fernández de Kirchner, mesmo depois de se ter tornado lamentavelmente evidente que ela aproveitava estas visitas para seu próprio ganho político. “Quando Bergoglio recebeu a presidente de maneira amigável, fê-lo por pura graça”, afirma o pastor evangélico de Buenos Aires Juan Pablo Bongarrá. “Ela não merecia. Mas é assim que Deus nos ama, com graça pura.”

Apesar da serenidade patenteada, Francisco assumiu as suas novas responsabilidades com gravidade, aligeirada pela sua característica capacidade de fazer troça de si mesmo.

Para Wals, seu antigo adido de imprensa, a entrada cuidadosa de Bergoglio no cargo papal não é absolutamente surpreendente. Aliás, estava anunciada na forma como ele preparou a saída do seu cargo anterior. Compreendendo que havia possibilidade de o conclave o eleger (ele fora candidato contra Ratzinger após a morte de João Paulo II, em 2005), o arcebispo partiu para Roma em Março de 2013, segundo Wals, “com toda a correspondência em dia, contas em ordem, tudo organizado na perfeição. E nessa noite, antes de partir, telefonou-me só para passar em revista comigo todos os pormenores do gabinete e também para me dar conselhos sobre o meu futuro, ciente de que talvez estivesse a partir para sempre”.

E partiu mesmo para sempre. Apesar da serenidade patenteada, Francisco assumiu as suas novas responsabilidades com gravidade, aligeirada pela sua característica capacidade de fazer troça de si mesmo. Como dizia no ano passado a um antigo aluno, o escritor argentino Jorge Milia, “por mais que procurasse um manual do utilizador na biblioteca de Bento, não consegui descobri-lo. Por isso, vou tratando das coisas o melhor que posso”.

Ele é, como os órgãos de comunicação social gostam de descrevê-lo, um reformador. Um radical. Um revolucionário. Mas também não é nenhuma destas coisas. Até agora, o seu impacte é impossível de ignorar, mas também de medir. Francisco acendeu uma centelha espiritual não só entre os católicos mas também entre outros cristãos, crentes de outras fés e, até, não-crentes. Como afirma Skorka, “está a alterar a religiosidade em todo o mundo”. O líder da Igreja Católica é geralmente visto como uma boa novidade para uma instituição que, durante muitos anos antes da sua chegada, só recebera más notícias. Para o padre jesuíta Thomas J. Reese, analista do “National Catholic Reporter”, “há dois anos, se perguntássemos a alguém na rua quais as causas às quais a Igreja Católica é favorável e contrária, responder-nos-iam que ela combate o casamento homossexual e o controlo da natalidade e todas essas coisas. Agora, se fizermos a mesma pergunta, elas respondem: ‘Oh, o papa, aquele tipo que é amigo dos pobres e não vive num palácio.’ Trata-se de um sucesso extraordinário para uma instituição tão antiga. Costumo dizer, a brincar, que a Harvard Business School poderia recorrer a ele para ensinar reposicionamento de marcas. E os políticos de Washington estariam dispostos a matar para merecerem a sua taxa de aprovação.”

A popularidade do papa também constitui uma ameaça, pois reforça o mandato outorgado pelos cardeais desejosos de um líder capaz de pôr de lado o distanciamento altaneiro da igreja e de expandir a sua abrangência espiritual.

Como é óbvio, o espectáculo de um culto da personalidade papal é indecoroso para uma instituição com tanta dignidade. Para alguns funcionários com quem falei, a popularidade do papa também constitui uma ameaça, pois reforça o mandato outorgado pelos cardeais desejosos de um líder capaz de pôr de lado o distanciamento altaneiro da igreja e de expandir a sua abrangência espiritual. Segundo o cardeal Peter Turkson, do Gana, “mesmo antes do conclave, quando todos os cardeais se reuniram, discutimos os nossos pontos de vista. Reinava um sentimento dominante de mudança. Esse sentimento era forte lá dentro. Ninguém disse: ‘Já chega de italianos ou já chega de europeus’, mas vivia-se um desejo de mudança”, conta.


 

Os peregrinos chegam cedo e esperam horas para ver o papa. As reacções à sua presença são emotivas: por vezes, homens e mulheres, choram abertamente abalados pela sua presença. 

“O cardeal Bergoglio era praticamente desconhecido de todos os presentes”, prossegue Turkson. “Mas a alocução dele foi uma espécie de manifesto. Aconselhou as pessoas ali reunidas, dizendo que precisávamos de pensar na igreja que vai ao encontro da periferia, não só periferia geográfica, mas a periferia da existência humana. Para ele, o Evangelho convida-nos a partilhar esse tipo de sensibilidade. Aquele foi o seu contributo. E trouxe consigo uma espécie de frescura ao exercício dos cuidados pastorais, uma experiência diferente nos cuidados a prestar ao povo de Deus.”

Para trazer transparência às finanças do Vaticano, o papa chamou um antigo e duro jogador de râguebi, o cardeal George Pell, de Sydney, e nomeou-o prefeito para o Secretariado da Economia, nomeação que eleva Pell ao mesmo nível do secretário de Estado

Para aqueles que, como Turkson, desejavam a mudança, Francisco não tem sido uma desilusão. Em dois anos, nomeou 39 cardeais, 24 dos quais provenientes de fora da Europa. Antes de proferir um discurso arrasador no passado mês de Dezembro, durante o qual identificou as “doenças” que grassam na cúria (entre outras, a “vanglória,” a “coscuvilhice” e os “proveitos mundanos”), o papa encarregou nove cardeais — todos, excepto dois, estranhos à cúria — de reformarem a instituição. Classificando os abusos sexuais dentro da igreja como “culto sacrílego”, criou a Comissão Pontifical para a Protecção de Menores, chefiada por Sean Patrick O’Malley, arcebispo de Boston. Para trazer transparência às finanças do Vaticano, o papa chamou um antigo e duro jogador de râguebi, o cardeal George Pell, de Sydney, e nomeou-o prefeito para o Secretariado da Economia, nomeação que eleva Pell ao mesmo nível do secretário de Estado. Entre estas nomeações, o papa teve um admirável gesto de deferência para com a velha guarda: manteve no cargo o cardeal Gerhard Müller, um homem da linha dura nomeado por Bento XVI como responsável pela Congregação para a Doutrina da Fé, à qual cabe assegurar a aplicação das crenças da igreja.

Estas iniciativas são significativas, mas dificilmente alguém poderá prever os seus resultados. As primeiras indicações têm deixado estupefactos os reformistas e os católicos mais tradicionais, mas o sínodo preliminar sobre a família, convocado por Francisco em Outubro, não gerou mudanças doutrinais importantes e acalmou os católicos conservadores, receosos de que isso sucedesse.

Quanto ao levantamento da proibição da comunhão aos católicos divorciados cujos casamentos não tenham sido anulados, Scannone, o amigo e antigo professor do papa, refere: “Ele disse-me: ‘Quero ouvir toda a gente.’"

O sínodo propriamente dito, que decorrerá em Outubro, poderá originar resultados diferentes. Quanto ao levantamento da proibição da comunhão aos católicos divorciados cujos casamentos não tenham sido anulados, Scannone, o amigo e antigo professor do papa, refere: “Ele disse-me: ‘Quero ouvir toda a gente.’ Ele vai esperar pelo segundo sínodo e vai ouvir toda a gente, mas está definitivamente aberto a uma mudança.” Do mesmo modo, o pastor pentecostal Saracco discutiu com o papa a eliminação do celibato como exigência feita aos sacerdotes. “Se ele conseguir sobreviver às pressões da igreja hoje e aos resultados do sínodo sobre a família em Outubro, acho que depois estará em condições para falar sobre o celibato”, afirma. “Quando lhe pergunto se o papa lhe disse isso ou se é apenas a sua intuição, Saracco faz um sorriso maroto e diz: “É mais do que intuição.”

Vendo bem as coisas, as palavras e gestos do papa transformaram-se numa mancha de teste de Rorschach que o seu auditório pode interpretar como quiser. Para um homem de palavras e hábitos tão simples, isto parece irónico.

Em 2010, Yayo Grassi, profissional de restauração sediado em Washington, enviou uma mensagem de correio electrónico ao seu antigo professor, o arcebispo de Buenos Aires. Grassi, que é homossexual, lera que o seu estimado mentor condenara a aprovação de legislação destinada a legalizar o casamento entre pessoas do mesmo sexo. “Tem sido o meu guia, alargando os meus horizontes. Tem moldado os aspectos mais progressistas da minha mundivisão”, escreveu Grassi. “E ouvir isto dito por si é uma desilusão tão grande…”

O arcebispo respondeu por e-mail, embora sem dúvida fornecendo um rascunho escrito na sua caligrafia minúscula ao seu secretário, uma vez que o papa Francisco nunca navegou na Internet, nunca usou um computador nem possuiu um telemóvel.

O Vaticano prepara as suas mensagens transmitidas através das nove contas @Pontifex no Twitter, com 20 milhões de seguidores, e envia-as após aprovação do papa. Ele começou por dizer que levara as palavras de Grassi a peito. A posição da Igreja Católica naquela matéria era o que era. Ainda assim, Bergoglio sentia-se penalizado por saber que magoara o seu aluno. O antigo maestrillo de Grassi assegurou-lhe que os órgãos de comunicação social tinham interpretado mal a sua posição. Acima de tudo, disse o futuro papa na sua resposta, na sua obra pastoral não havia espaço para a homofobia.

Esta troca de palavras dá um vislumbre do que devemos, ou não devemos, esperar deste mandato papal. No final, Bergoglio não desmentiu a sua posição face ao casamento homossexual, visto por si, numa dessas cartas, como ameaça à “identidade e sobrevivência da família: pai, mãe e filhos”. Nenhuma pessoa, entre as dezenas de amigos por mim entrevistados, declarou acreditar que Francisco venha a reavaliar a posição da Igreja nesta matéria.

Foi isso que lhe pôs os olhos marejados de lágrimas quando, ao visitar um bairro de lata de Buenos Aires, um homem declarou saber que o arcebispo era um dos seus, por tê-lo visto viajar na parte de trás do autocarro.

O factor que renovou a veneração de Grassi pelo seu antigo professor é precisamente a mesma coisa que atrai multidões à Praça de São Pedro e certamente o fará durante a sua visita aos Estados Unidos da América em Setembro: a brancura ofuscante das vestes papais, reinterpretada como simplicidade acessível. É a afinidade do porteño com as ruas, combinada com a fé do jesuíta no compromisso vigoroso com a comunidade: el encuentro, que implica procurar e escutar, tarefa decididamente mais árdua do que a publicação impessoal de éditos, pois exige a coragem da humildade. Foi isso que encorajou Bergoglio a deixar-se cair de joelhos e a pedir as orações de milhares de cristãos evangélicos. Foi isso que lhe pôs os olhos marejados de lágrimas quando, ao visitar um bairro de lata de Buenos Aires, um homem declarou saber que o arcebispo era um dos seus, por tê-lo visto viajar na parte de trás do autocarro. Foi isso que o impeliu a recusar o beija-mão de um padre albanês que fora torturado pelo seu governo e a tentar, em vez disso, beijar ele a mão ao homem, chorando depois abertamente nos seus braços. E foi isso que, há dois anos, deixou milhões de pessoas atónitas, quando o papa Francisco, num emblemático momento de retórica, pronunciou estas simples e assombrosas palavras, sob a forma de uma delicada interrogação em resposta a uma pergunta acerca dos sacerdotes homossexuais: “Quem sou eu para julgar?”

Parecia ser esta a missão do papa: desencadear uma revolução no interior do Vaticano e fora das suas paredes, sem questionar um vasto acervo de preceitos há muito enraizados. “Ele não alterará a doutrina”, insiste De la Serna, o seu amigo argentino. “Irá, isso sim, reconduzir a igreja à sua verdadeira doutrina, aquela que ficou esquecida, aquela que repõe o homem no centro. Durante tempo de mais, a igreja pôs o pecado no centro. Ao devolver a posição central ao homem que sofre, bem como à sua relação com Deus, estas atitudes de aspereza face à homossexualidade, ao divórcio e a outros temas começarão a mudar.”

O papa resignou-se às fotografias e à moda das selfies. A mais antiga, foi obtida e Agosto de 2013 por adolescentes e tornou-se viral nas redes sociais.

Por outro lado, o homem que disse aos amigos que precisava “de começar a fazer mudanças agora mesmo” não tem o tempo do seu lado. O seu comentário na Primavera passada de que o seu papado poderia durar apenas “quatro ou cinco anos” não surpreendeu os seus amigos argentinos, sabedores de que ele gostaria de viver os últimos dias no seu país. Mas estas palavras representaram com certeza um sossego para a linha dura do Vaticano que desenvolverá os seus melhores esforços para abrandar o ritmo das iniciativas de Francisco orientadas para a reforma da igreja e esperar que o seu sucessor seja um adversário menos temível.

“Ele não alterará a doutrina”, insiste De la Serna, o seu amigo argentino. “Irá, isso sim, reconduzir a igreja à sua verdadeira doutrina, aquela que ficou esquecida, aquela que repõe o homem no centro."

Ainda assim, esta revolução, seja ou não bem sucedida, em nada se assemelha a outras acontecidas, quanto mais não seja pela alegria contagiante com que está a ser posta em marcha. Quando o novo arcebispo de Buenos Aires, o cardeal Mario Poli, observou a Francisco, no decurso de uma visita à Cidade do Vaticano, que era admirável ver o seu amigo, outrora sempre de ar carregado, com um sorriso omnipresente no rosto, o papa reflectiu cuidadosamente sobre as palavras escutadas, como costuma fazer.

Francisco, sem dúvida sorrindo, replicou: "É muito divertido ser papa."

 

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