No Nordeste de Portugal, em 1991, enquanto arqueólogo encarregado do acompanhamento do projecto da barragem do Baixo Côa, Nelson Rebanda reconheceu a temática e o estilo paleolítico da gravura do cavalo de Mazouco que descobrira dez anos antes, numa rocha ao ar livre a centenas de metros do sítio onde deveria ser construído o paredão. Desde a publicação da gravura de Mazouco em 1981, tinham aparecido em Espanha e no Sudeste de França, imagens gravadas, do mesmo estilo que as encontradas em grutas e abrigos rochosos, atribuídas ao Paleolítico, mas desta vez sobre rochas exposta à luz solar. A descoberta de mais gravuras no vale do Côa, um afluente da margem esquerda do rio Douro, divulgada na imprensa nacional em Novembro de 1994, mudou a nossa concepção da arte paleolítica, considerada, até então, como uma arte das cavernas, e alterou o nosso conhecimento do povoamento paleolítico do Sudoeste Europeu. Mas conseguiria parar uma barragem de 100 metros de altura?
Temática e composição. Os artistas do Côa representaram os animais seus contemporâneos que viviam num clima mais frio do que o actual. As gravuras estão na superfície de afloramentos ao ar livre nas margens do rio. Os animais mais representados na arte do Côa são o cavalo e o auroque, o antepassado dos nossos bovinos domésticos seguidos da cabra-montês e de cervídeos como o veado e a cerva. As técnicas utilizadas são variáveis. Incluem desde a incisão fina, até ao traço fundo, obtido martelando a rocha com um utensílio de pedra, do tipo que foi encontrado num sítio ocupado há 30 mil anos. Com ele, criava-se um traço claro em contraste com a rocha escura. As escavações no sítio do Fariseu mostraram que as figuras sobrepostas, quando ocultadas por sedimentos datados de mais de 12 mil anos, apresentam o mesmo contraste, resultado de uma composição e não de uma acumulação de figuras ao longo do tempo.
As técnicas de animação. Além da sobreposição que pode ser considerada uma técnica para acrescentar uma terceira dimensão às diáclases (superfícies planas que constituem os suportes da arte da bacia do Douro no seu tramo português), a arte paleolítica do vale do Côa integra uma dimensão narrativa pela representação de animais com o corpo em atitude dinâmica, ou em movimento, usando a representação de duas posições da integralidade do corpo ou de duas ou mais cabeças sugerindo um movimento. Esta solução está presente desde a fase mais antiga até ao fim do Paleolítico Superior, como na representação de um bode com duas cabeças da rocha 3 da Quinta da Barca, com paralelos estilísticos na arte móvel do Norte de Espanha e Sul de França, em níveis datados de cerca de 15.000 anos.
Placas de arte móvel. Outra particularidade do sítio do Fariseu é a descoberta, na camada datada de cerca de 12.000 anos que ocultava metade da rocha gravada há mais de 23.000 anos, de 85 placas de xisto gravadas com motivos figurativos de um estilo baseado em formas geométricas e preenchimentos estriados do interior do corpo dos animais representados. Estas placas de xisto gravadas pela técnica da incisão foram encontradas junto dos restos de fauna e autorizaram a comparação entre os animais caçados ou pescados e essencialmente os cervídeos e capríneos que foram representados nas placas.
Debate inflamado
Os defensores da construção da barragem propunham deslocar algumas das rochas “mais significativas” e submergir as outras. Utilizaram dois argumentos principais para questionar a cronologia paleolítica das gravuras do Côa. De um lado, apontaram a ausência de sítios atribuíveis ao Paleolítico Superior (40.000-12.000 anos) no vale do Côa e, em geral, no interior da Península Ibérica e, por outro, alimentaram críticas semelhantes às que já tinham sido formuladas na década de 1990 após a publicação das datações de 36.000 anos obtidas para os carvões utilizados nas pinturas da gruta Chauvet. Essas datações contrariavam a classificação estilística de referência de Leroi-Gourhan, fundamentada na comparação da morfologia e de convenções estilísticas com pinturas datadas por radiocarbono (quando é utilizado carvão), placas de osso ou pedras gravadas encontradas em níveis datados.
Local privilegiado
A rocha nº 1 da Quinta da Barca, chamada a rocha do esparguete, apesar de estar hoje fragmentada e conservada em três painéis, constitui a mais densa sobreposição de gravuras picotadas conhecida no vale do Côa. Nesta porção, são representadas 35 das 64 figuras da totalidade do painel, todas de grandes herbívoros da fase antiga da arte do Côa, à excepção da camurça que só existe na rocha 1 do Fariseu e de uma figura que foi interpretada como sendo um urso. A concentração de grafismos no mesmo espaço dificulta o reconhecimento de cada figura. A sua localização na margem oposta à Penascosa, junto do rio e na base de uma linha temporária de água, revela o seu papel fundamental na estruturação espacial e possível interpretação da arte ao ar livre. A comparação das convenções estilísticas das figuras deste painel e a descoberta das rochas 1 e 9 do Fariseu ocultadas por sedimentos, onde as linhas sobrepostas preservam o contraste do traço picotado fresco, sugerem que as sobreposições da fase antiga da arte do Côa resultam de uma composição definida desde a realização das primeiras figuras.
Em 1995, a EDP mandou datar pequenos fragmentos de matéria orgânica conservados na superfície de algumas rochas gravadas. Como era de prever, no dia 7 de Julho, um semanário publicou em primeira página o título “A fraude”, alegando que todos os resultados obtidos eram do Holocénico. A opinião pública vacilou, mas o arqueólogo João Zilhão demonstrou que se tinham datado matérias orgânicas depositadas posteriormente nas rochas que não indicavam o momento da gravação. Em Agosto de 1995, as prospecções arqueológicas realizadas sob sua responsabilidade detectaram a presença de pequenos fragmentos de pedra lascada na superfície de um terreno lavrado no sítio da Cardina–Salto do Boi, cerca de três quilómetros a montante das gravuras da Penascosa/Quinta da Barca. Estes “modestos” objectos testemunharam o primeiro de dezenas de acampamentos descobertos até à data, rebatendo decisivamente o primeiro argumento dos detractores.
Uma decisão única
No início de 1996, o governo português, convencido pelos argumentos dos arqueólogos, decidiu abandonar a construção da barragem, solicitou um relatório de cariz científico e foi criado um parque de cerca de 200 quilómetros quadrados para estudar, proteger e mostrar ao público o mais importante complexo de arte rupestre paleolítica ao ar livre conhecido no mundo. Em 1998, foi incluído na lista de Património Mundial pela UNESCO, concluindo o processo de aprovação mais rápido de sempre. Em 2010, o território classificado alargou-se ao sítio de Siega Verde, do outro lado da fronteira espanhola, nas margens do rio Águeda.
Paradoxalmente, a descoberta crucial para confirmar a atribuição estilística e antiguidade da arte ao ar livre ocorreu um ano depois.
Tal ocorreu no Fariseu, um meandro da margem esquerda do rio Côa. A existência de rochas gravadas era conhecida neste lugar deste 1995, mas algumas foram submersas em 1983 pela albufeira da barragem do Pocinho.
Arte na ponta dos dedos
Fernando Barbosa tem um papel pioneiro como ilustrador científico na arqueologia portuguesa. É responsável pela formação dos arqueológos que estudam hoje a arte rupestre em Portugal. Foi chamado por Nelson Rebanda em 1994, com Manuel Almeida e João Félix, que descobriram grande parte dos sítios de arte rupestre do vale do Côa. Hoje, é o melhor conhecedor da arte do Côa, aprimorando a compreensão da arte paleolítica através da realização e interpretação dos decalques directos da maioria das rochas gravadas que foram documentadas até à data. O desenhador (autor da maioria das reconstituições exibidas nestas páginas) baseia-se na experimentação das diferentes técnicas de gravura e num conhecimento dos sítios arqueológicos de sul a norte do país.
No fim de 1999, um abaixamento temporário do seu nível permitiu a escavação das camadas arqueológicas que ocultavam o painel n.º 1, evidenciando um grande painel intensamente ornamentado. Sob os sedimentos mais antigos, foi possível constatar a frescura dos traços, de cor clara, contrastando com a tonalidade cinzento-escura do fundo do painel e a profusão de figuras sobrepostas. As 84 figuras de animais sobrepostas e justapostas, obtidas por picotagem e abrasão são maioritariamente fêmeas de auroques, cavalos, seguidos por machos de cabra-montês, veados, cervas, auroques machos e camurças.
O Auroque do Fariseu
A conjugação no mesmo sítio arqueológico entre arte e vestígios das actividades quotidianas de caçadores-recolectores, encontrada pela primeira vez em 1999 no sítio do Fariseu, voltou a identificar-se em 2020, no mesmo meandro, mas uma centena de metros a montante. As escavações realizadas em frente da rocha 9, onde já tinha sido detectado um traço isolado nos anos 2000, revelaram, ocultada por sedimentos, a porção visível do traço picotado de cerca de 50cm pertencente a uma figura de auroque macho com mais de 3,5 metros. Em 2021, os trabalhos arqueológicos expuseram dez metros de um painel gravado, na maioria com auroques fêmeas, cavalos, um veado e uma cerva. A descoberta de mais um painel gravado de dezenas de figuras, das quais a maior gravura paleolítica conhecida, só comparável a alguns dos auroques pintados à entrada da gruta de Lascaux, confirma o potencial de preservação de rochas ocultadas por sedimentos nas margens do rio Côa e o carácter monumental de algumas das manifestações gráficas, em gruta como ao ar livre, desde o princípio do Paleolítico Superior.
Confirmação da antiguidade
As datas obtidas, entre 12.000 e 18.400 anos para as camadas que cobriam a rocha gravada e uma data de cerca de 23.000 anos obtida através de carbono 14, a partir de um carvão vegetal encontrado na escavação, bem como os vestígios descobertos nos níveis que ocultavam a superfície gravada do painel, constituíram, pela primeira vez em sítios de arte paleolítica ao ar livre, uma confirmação da atribuição estilística e, por comparação, das outras gravuras atribuídas ao início do ciclo artístico do Côa.
Um dos sítios classificados como Monumento Nacional em 1997 revelou-se crucial para o conhecimento da arte do Côa e da vida quotidiana dos seus autores.
Das escavações realizadas a partir de 2014 no sítio da Cardina-Salto do Boi, resultou a identificação de elementos que revelam o quotidiano dos caçadores. A identificação de fundos de grandes cabanas circulares sugere permanências prolongadas neste sítio. Além disso, foram detectados, pela primeira vez na região, vestígios que atestam ocupações anteriores ao Paleolítico Superior.
A arte de Siega Verde.
Siega Verde, jazida descoberta por Manuel Santonja em 1988, pertence ao primeiro grupo de sítios de arte paleolítica de ar livre descobertos entre 1981 e 1991. Esta concentração de 91 rochas gravadas, onde as figuras de cavalo são maioritárias, foi integrada na lista do Património Mundial da UNESCO, como uma extensão da arte do Côa em 2010. Novas prospecções desenvolvidas entre o Côa e Siega Verde por Mário Reis e Carlos Vázquez Marcos revelaram a existência de concentrações de gravuras num pequeno afluente do rio Águeda e, mais recentemente, prospecções à superfície dos terrenos, realizadas sob direcção de Miguel Almeida, entre o Baixo Côa e Siega Verde, revelaram uma concentração de vestígios de pedra lascada característicos do Paleolítico Superior, bem como fragmentos de arte móvel. O vazio que existia entre os dois sítios arqueológicos revela-se cada vez mais uma ilusão, só explicável pela falta de trabalhos de prospecção.
Numa sequência de cinco metros de espessura de sedimentos, encontramos vestígios de ocupações atribuíveis ao Homem de Neandertal, com datações entre 150.000 e 39.000 anos que indicam a sua persistência nesta região mais tardia do que noutras do Norte da Península Ibérica e, correlativamente, uma chegada diferida, há cerca de 34.000 anos, dos primeiros homens anatomicamente modernos à região.
Esta presença, em pequena proporção, mas sistemática, de rochas provenientes da região, e de outras a mais de 200 quilómetros de distância, implica a existência de contactos e de trocas recorrentes entre o grupo humano que vivia no Côa e sua região com grupos humanos de zonas geográficas distantes.
A integração numa rede social ainda mais vasta é identificável pela aplicação das mesmas convenções estilísticas utilizadas na arte paleolítica em grutas já conhecidas da região franco-cantábrica. As características do vale do Côa, numa área geográfica de transição, de grande biodiversidade, situada no epicentro de uma vasta rede de mobilidade revelada pelas rochas utilizadas, podem explicar o seu lugar central, no cruzamento dos caminhos que ligavam grupos paleolíticos, e talvez venham a fornecer uma explicação para a densidade e continuidade do seu ciclo de arte rupestre.