Enorme serpentina aquosa, o Sena confunde-se com um espelho gigante. O sol faz jogos de luz e sombras com a fila de leitores que, à porta da Biblioteca Nacional de França (BNF), vizinha do grande rio, aguardam pela abertura de portas.

No extremo oposto do edifício, outros vultos introduzem no edifício volumosos caixotes negros não identificados. É a equipa do Laboratório HERCULES, da Universidade de Évora, liderada pela investigadora Catarina Miguel que, na companhia de António Candeias, Teresa Caldeira, dois dos mais experientes cientistas do laboratório, e da jovem italiana Silvia Bottura-Scardina, estão em Paris com a missão de estudar uma das mais emblemáticas obras dos Descobrimentos portugueses: o Atlas Miller.

Este conjunto cartográfico datado de 1519, atribuído aos cartógrafos Lopo Homem, Pedro Reinel e Jorge Reinel , com iluminuras da autoria de António de Holanda, artista de origem flamenga e pai do conhecido Francisco de Holanda, tem enorme valor histórico e artístico, pela qualidade e quantidade de informação geográfica nele contido. Terá sido encomendado por Dom Manuel I e deve ter servido de presente matrimonial para a sua terceira mulher, Dona Leonor de Áustria, irmã do imperador Carlos V. Destacou-se, porém, por ter sido um objecto de propaganda política ao mais alto nível da diplomacia ibérica, pois chegou à corte castelhana na altura em que Fernão de Magalhães se preparava em Sevilha para a primeira circum-navegação do globo.

Atlas Miller

O mapa “Terra Brasilis” mostra a mais minuciosa cartografia da costa brasileira à época, escassos 19 anos após a descoberta do território por Pedro Álvares Cabral. Uma das grandes questões é saber se a toponímia é contemporânea da cartografia, e os investigadores pensam ter respostas em breve.

O mapa mostra o globo aparentemente “fechado” a ocidente, sem representação do oceano Pacífico, o que, à luz do conhecimento cartográfico dos portugueses à época, não terá sido inocente. O “erro” teria o intuito implícito de dissuadir a corte rival da empreitada de exploração, ao sugerir a impossibilidade de passagem por oeste.

O documento passou por várias mãos ao longo dos séculos. Em 1530, Dona Leonor voltou a casar-se, desta vez com o rei de França, Francisco I, e terá depois oferecido o Atlas a Catarina de Médici, esposa de Henrique II e sucessor do monarca francês, cujas armas se podem ver no fólio inicial. O documento chegou por fim ao coleccionador francês Bénigne Miller, que o vendeu à BNF em 1897.

As últimas horas de luz na Cidade-Sol convidavam a deambular sem rumo e o dia não poderia terminar mais auspiciosamente: na Place du Tertre, no coração de Montmartre, vários desenhadores exibem os seus dotes artísticos ao som de típica música parisiense. Numa das esplanadas contíguas, já com mexilhões cozidos e batatas fritas na mesa, Catarina conta como o seu interesse pessoal pelo Atlas Miller nasceu: “O primeiro contacto indirecto que tive com a obra – sem dúvida o mais marcante e o que deixou o “bichinho” de um dia querer ver com os meus olhos a obra original – foi nas aulas de História de 4.ª classe, onde, a acompanhar o tema da Descoberta do Brasil, surgia a imagem do Atlas, com os índios a transportarem o pau-brasil! Quem não se recorda desta imagem da sua infância?”

Entusiasmada, a investigadora continua: “Em 2019, juntei forças com Pedro Flor, docente da Universidade Aberta e investigador do Instituto de História da Arte da Universidade Nova de Lisboa, para estudarmos a obra de António de Holanda, talvez o mais extraordinário e desconhecido iluminador do período renascentista activo em Portugal.” As autorizações de acesso aos oito manuscritos iluminados, de 1515 a 1554, documentados ou atribuídos ao artista, dispersos pela Europa, rapidamente chegaram. Foi então montada uma equipa multidisciplinar, que incluiu técnicos de História da Arte, Cartografia, Química, Bioquímica, Quimiometria e Redes Neurais, e em 2021 chegava a boa notícia: o ROADMAP (Research On Antonio De Holanda Miniatures Artistic Production) fora aprovado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia. Esta é a primeira caracterização cronológica sistemática da obra de arte de um iluminador do período renascentista, tanto do ponto de vista da história da arte como da caracterização das suas técnicas de pintura. O projecto explorará ainda o papel da arte de iluminura na sociedade renascentista portuguesa, estudando as condições para a produção de livros iluminados e indagando o papel das mulheres como iluminadoras (António de Holanda teve uma filha que poderá ter ajudado o pai).

Atlas Miller

Um pormenor de um dos seis mapas remanescentes do Atlas Miller, (perdeu-se um, de África), mostrando aspectos da fauna, flora e indígenas.

Das estreitas ruelas eborenses onde o projecto ganhou forma para os corredores do edifício-sede da BNF em Paris foi um salto! No laboratório de conservação e restauro que foi quartel-general da equipa nacional durante uma semana, grandes mesas de trabalho rapidamente são ocupadas com os conteúdos das misteriosas caixas pretas penosamente carregadas por escadarias e elevadores: são 250 mil euros de equipamento científico portátil para análises in situ, permitindo uma rapidez e flexibilidade de análises até há poucos anos impossível.

Rodeada de parafernália científica, Catarina explica: “Estas técnicas analíticas são não-invasivas e procuram gerar dados analíticos que permitam estudar os mapas analisados, sob três vertentes: cronologia da produção da iluminura, observação directa minuciosa e observação recorrendo a um microscópio digital de alta resolução; estudo da presença/ausência de materiais reflectivos no infravermelho que possam ter sido utilizados no desenho subjacente, através da reflectografia de infravermelhos e finalmente a caracterização material das tintas utilizadas para produzir os mapas iluminados, pela análise elementar de ponto e de área, análise molecular e hiperespectral”, diz.

Atlas Miller

Teresa Caldeira (primeiro plano) e Catarina Miguel analisam em tempo real os resultados do mapeamento elementar com fluorescência de raios X, um exame lento (5 horas para analisar uma pequena área) mas que proporciona informação relevante sobre as características das tintas e pigmentos utilizados pelos artistas.

Meses depois, num antigo palácio à sombra da Sé, começam a surgir resultados. De olhar no microscópio digital de alta resolução, Teresa Caldeira confirma: “É possível verificar que existem várias fases na produção dos mapas, nomeadamente no que diz respeito às linhas cartográficas nele presentes. Se a maioria das linhas se sobrepõe às ilustrações nos mapas, casos existem em que houve uma sobreposição de tinta em alguns dos motivos.” O mapa Terra Brasilis é um bom exemplo, pois primeiro deverá ter sido delimitada a linha costeira, após o que foram desenhadas as linhas cartográficas e só depois foi aplicada a tinta verde ao longo da costa. Importante para os cientistas é perceber até que ponto a identificação dos povoados ao longo da costa do Brasil foi feita na altura da produção dos mapas ou se terá sido posterior. A sua importância no contexto histórico justifica-se por este trabalho de iluminação ter sido efectuado escassos 19 anos após a viagem de Pedro Álvares Cabral, tornando-se o primeiro registo visual conhecido do Brasil.

Nos dias que correm, é difícil conceber que uma pequena folha de pergaminho tivesse o poder de mudar o curso da história... Ainda assim, um documento que poderosos monarcas e navegadores do século XVI tocaram e observaram também é disso testemunho. A indagação dos processos que aconteceram durante a sua criação, 500 anos depois, é uma aventura científica. Obra maior da cartografia portuguesa dos Descobrimentos, o Atlas Miller é uma verdadeira viagem no tempo. E continuará, nos próximos meses, a revelar os seus segredos.