Mais de 800 anos após a sua criação, a obra-prima do românico espanhol recupera o esplendor cromático.

Numa Europa assolada pelas guerras, pela bandidagem e pelas pestes, não era fácil convencer alguém a viajar.

Quando se saía de casa, isso acontecia provavelmente porque alguma destas fatalidades se aproximava da sua porta. No entanto, foi nesta mesma Europa, durante os séculos que seriam designados como Idade Média, que se iniciou e foi concluído, em todo o seu esplendor, um longo caminho até um recanto isolado de uma península em convulsão, a mais ocidental do continente.

Os audazes que empreendessem essa viagem até um dos confins da Terra, os finis terrae, obtinham uma recompensa tão extraordinária como a própria viagem: chegavam a Santiago de Compostela, lugar de repouso dos restos mortais de um dos mais dilectos apóstolos de Jesus Cristo. Por essa razão, o esforço de uma longa viagem para prestar homenagem era considerado uma garantia de intercessão junto de São Jaime (outra das variantes do seu nome) quando a alma do peregrino fosse submetida ao juízo divino.

Para o viajante esgotado que chegava a Santiago a partir do final do século XII, o destino da sua viagem encerrava um prenúncio muito tangível da glória que o aguardava no final do vale das lágrimas terreno. Na altura, tal como hoje, a catedral elevava-se sobre a cidade, permitindo admirar em toda a sua magnificência o Pórtico da Glória, formado por um conjunto escultórico que guardava uma das entradas do templo. Se o peregrino chegasse durante a tarde e a meteorologia galega o presenteasse com um dos seus raros dias de sol, veria à sua frente um brilho e uma cor que hoje nos poderiam parecer o equivalente medieval aos nossos filmes 3D. Num mundo onde as cores seguiam os ditames da natureza, um artista avançado para a sua época, Mestre Mateo, conseguiu criar uma policromia que só teria rival muitos anos após a sua conclusão, em 1188.

Como nos explica o historiador Manuel Castiñeiras, especialista em arte medieval relacionada com o Caminho e a Catedral de Santiago, a própria presença de um talento como o de Mateo nesta construção é demonstrativa de que a cidade “era à época um dos centros do mundo, sobretudo a nível cultural”.

Mais de oito séculos depois de Mestre Mateo e os seus ajudantes darem por concluído o seu trabalho, outra equipa voltou a dar vida a esta magnífica obra, recuperando as cores que emocionaram os peregrinos de há centenas de anos. Tanto este restauro, terminado no ano passado, como as obras seguintes desencadearam um entusiasmo redobrado pelo Caminho, embora a devoção religiosa moderna esteja longe de corresponder à dos nossos antepassados medievais.


 

Tal como o nome indica, a cidade de Santiago de Compostela deve tudo a um dos apóstolos preferidos de Jesus Cristo. Conhecido ora como Tiago, ora como Jacob ou Jaime, este discípulo do profeta nazareno tinha uma ligação especial à Península Ibérica. Na Espanha medieval, acreditava-se que, depois de ter recebido o dom das línguas do Espírito Santo, no acontecimento bíblico conhecido como Pentecostes, Jaime teria atravessado o mar Mediterrâneo para levar à Hispânia o seu trabalho apostólico (palavra derivada do grego apóstoloi, que significa mensageiro ou enviado), pregando a doutrina de Jesus. Também segundo esta tradição, a sua viagem de barco conduzira-o a um improvável desembarque na Galiza, depois de circum-navegar a Península.

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Oriundos de todo o mundo, milhares de peregrinos percorrem todos os anos o Caminho de Santiago. A maioria percorre-o a pé, mas também há quem o faça de bicicleta (como se vê na imagem junto de Sarria, a apenas 110 quilómetros de Santiago). Xurxo Lobato/Getty Images

Se esta odisseia é difícil de comprovar, não é menos complicado encontrar provas que corroborem a lenda que levou milhares de cristãos a caminhar desde então até à Galiza. A determinada altura, entre os anos 814 e 830, quando a cristandade se encontrava encurralada na periferia cantábrica há mais de um século devido à irrupção triunfante do islão, um eremita chamado Pelágio teve um encontro providencial. Certa noite, Pelágio, que vivia na Igreja de San Félix de Solovio, no actual centro da cidade de Santiago de Compostela, viu luzes no bosque em redor de sua casa. Depois de pedir conselhos através da oração, entrou no mato e descobriu o que aquelas estranhas luzes nocturnas lhe queriam mostrar: um túmulo.

Num mundo onde  as cores seguiam os ditames da natureza, um artista avançado para a sua época, Mestre Mateo, conseguiu criar uma policromia que só teria rival muitos anos após a sua conclusão, em 1188.

Evidentemente admirado, Pelágio avisou a autoridade religiosa suprema da região, o bispo de Iria Flavia, Teodomiro, que, por sua vez, informou a maior autoridade laica da região, o rei Afonso II das Astúrias. Deslocando-se ao local dos acontecimentos, Afonso revelou a mais excelente mistura de devoção e realpolitik e identificou os restos mortais como pertencentes ao apóstolo Santiago Maior (nome pelo qual é conhecido na tradição cristã Tiago, filho de Zebedeu, para distingui-lo de outro dos 12 eleitos de Jesus, Santiago Menor, ou Tiago, filho de Alfeu). Embora seja inegável a sinceridade da devoção do rei asturiano nesta identificação, parece igualmente óbvio que o rei considerou os restos mortais sagrados como uma solução para melhorar o mau estado do moral da cristandade ibérica e para atrair os devotos do resto do continente europeu. Isto permitiria que os reinos peninsulares ganhassem nova importância para a Europa e presumia também uma entrada de capital, tão necessária como a fé, para reforçar os reinos cristãos na sua luta contra o al-Andalus.

Afonso II confiou a guarda dos sagrados restos mortais a um grupo de monges: estes seriam encarregados de receber os peregrinos que seguramente acudiriam a visitar tão importante relíquia. A afluência de visitantes não tardou a ultrapassar a capacidade desta primeira solução. A crescente importância religiosa do lugar foi reconhecida com a mudança da sede episcopal da região de Iria Flavia para Santiago, onde a presença de um bispo levou a que a igreja actual, cuja construção começou em 1075, durante o reinado de Afonso VI, adquirisse o estatuto de catedral. Passar-se-iam quase 140 anos até outro Afonso, desta vez Afonso IX, ver as obras concluídas em 1212, com uma catedral românica capaz de acolher o número crescente de peregrinos.
E, como nos recorda Castiñeiras, o templo contava com um pórtico “digno de uma catedral que se ergue, orgulhosa por albergar as relíquias de um apóstolo e por ser um centro de peregrinação importantíssimo”, referindo-se à última etapa de construção, entre 1168 e 1188, quando Mestre Mateo realizou, a pedido do rei Fernando II de Leão, a cripta e o Pórtico da Glória.


 

No arco central do Pórtico, ainda é possível ler que “no ano da Encarnação do Senhor de 1188, no dia 1 de Abril, foram colocados pelo Mestre Mateo os lintéis da porta maior da igreja de Santiago, que dirigiu a obra dos ditos portais desde os alicerces”.

Este feito é, por si só, extraordinário: numa época em que escultores e pintores ainda não tinham sido elevados ao estatuto de artistas, o facto de um artesão poder deixar referência à sua autoria num lugar tão proeminente indica a alta estima em que o tinham. Esta alta estima seria igualmente confirmada num documento excepcional: o contrato assinado em 1168 por Fernando II, certificando que Mateo cobraria um estipêndio de 100 maravedis anuais durante o resto da sua vida como pagamento pelo seu trabalho na catedral. No documento, o rei indica que Mateo possui “a primazia e o magistério da obra do dito apóstolo”, razão pela qual parece que o escultor (e, possivelmente, arquitecto) recebia o dinheiro como supervisor ou coordenador de toda a equipa que trabalhava no templo.

No tímpano central do Pórtico da Glória, a figura do Cristo em Majestade, rodeada pelos quatro evangelistas e pelos bem-aventurados, preside a um complexo programa iconográfico, com a Jerusalém Celeste e a salvação humana como eixo temático principal. Num plano inferior e na arquivolta, anjos e anciãos com instrumentos musicais proclamam a glória do Senhor. As estátuas-colunas laterais são uma galeria de personagens (profetas do lado esquerdo, apóstolos do lado direito) que se prolonga até à contrafachada.

Para lá destes documentos, a biografia do Mestre é discutível. Ao contrário de outros peritos, Castiñeiras não acredita que Mateo fosse estrangeiro, embora defenda que a sua obra demonstra que “teve um período de formação que pressupõe ter visitado diferentes sítios da Europa, porque o Pórtico é um monumento que faz referência a várias obras de França e Itália”.

Há também quem afirme que Mateo estava avançado em relação ao seu tempo noutro aspecto, pois retratou-se a si próprio como a figura popularmente conhecida como o Santo das Cabeçadas. A alcunha deveu-se ao hábito de peregrinos e universitários compostelanos encostarem as suas cabeças às da figura, na esperança de que este gesto lhes transmitisse magicamente parte da genialidade e sabedoria do mestre. Infelizmente, a tradição tão apreciada – embora dificilmente eficaz –  suscita algumas dúvidas e outros estudiosos do portal propuseram que a figura representa apenas um peregrino.

Seja como for, Mateo deixou sobretudo retratada a sua genialidade. O Pórtico exprime a visão medieval de como seria o fim dos tempos, o Apocalipse. Era a recordação perfeita do motivo que levara o peregrino a fazer o Caminho de Santiago. Aqui poderia ver-se o destino que aguardava as almas que, em vida, sucumbiram aos diferentes pecados, como a gula, o orgulho ou a luxúria. Pecados que, a partir de agora, seriam deduzidos da contabilidade moral do caminhante, graças à intervenção do apóstolo. O horror quase expressionista deste inferno contrasta com a placidez emanada do arco central, onde um Cristo redentor irradia serenidade e majestade, acompanhado pelos quatro evangelistas (e respectivos animais simbólicos) e pelo coro dos 24 anciãos do Apocalipse, com um catálogo fascinante dos instrumentos musicais da época.

No Pórtico, exprime-se  a visão medieval de como seria o fim dos tempos, o lembrete perfeito da razão que levara o peregrino a fazer o Caminho. Aqui poderia ver-se o destino que aguardava as almas que, em vida, sucumbiram aos pecados.

No entanto, outro factor capta a atenção no conjunto: o nível de pormenor, o rigor com que Mateo esculpiu cada figura e a interacção que estabeleceu entre elas. Apesar de a sua temática ser própria do imaginário medieval e da sua obsessão pelo Juízo Final e pelo pecado, as personagens deste retábulo estão muito longe do hieratismo que encontramos em representações desse mesmo Apocalipse noutras obras de arte medieval, anteriores e posteriores à grande obra de Mateo. Os grifos, demónios e monstros que espreitam a humanidade a partir da parte inferior do conjunto e que infundiriam medo e apreensão no coração do crente da época, entram no cânone da imagética habitual, mas os anjos, os santos e o próprio Jesus Cristo mostram nas suas feições uma compaixão e uma humanidade que esse crente não teria encontrado antes.


 

Com efeito, sublinha Castiñeiras, a obra é “muito teatral”. E essa circunstância não é acidental porque o Pórtico “segue um drama litúrgico muito popular no século XII que se encontrava representado em muitas catedrais da Europa. Na véspera de Natal, uma série de personagens saía, anunciando a chegada do Messias”. Como concluiu, no seu tempo, o historiador de arte Serafín Moralejo, este drama medieval, conhecido como Ordo Prophetarum (Procissão dos Profetas), é ele próprio fundamental para explicar a presença das personagens pagãs que vemos diante do arco principal e nos parecem discrepantes numa representação tão cristã: Virgílio e a Sibila. O poeta romano do século I, que reconhecemos pelo vestuário e enorme pluma, foi “salvo” pelo cristianismo porque os estudiosos interpretaram que, na sua obra, ele se referia ao advento de Jesus Cristo. Virgílio e Sibila, personagem da mitologia greco-romana capaz de ver o futuro e que também prognosticou o nascimento do Messias, foram incorporados como profetas nesta representação teatral. Castiñeiras recorda-nos que “toda a obra de arte tem vários níveis de leitura” e que esta alusão mais erudita provavelmente não seria captada pelos observadores mais humildes do Pórtico.

É provável que os peregrinos e visitantes que actualmente entram pelo Pórtico precisem de ainda mais explicações do que os seus antepassados medievais. No entanto, isso acontece menos hoje, em 2019, do que nas décadas anteriores. Embora Mestre Mateo concluísse uma obra intemporal em 1188, a passagem do tempo foi minimizando o impacte da sua mestria. Teoricamente, é verdade que o seu Pórtico ficou protegido pela fachada que hoje vemos na Praça do Obradoiro, construída a partir do século XVIII e projectada segundo o estilo barroco predominante nas construções religiosas da época, mas as condições climáticas da Galiza foram sabotando um dos elementos mais significativos das esculturas de Mateo: a cor.

Para a arqueóloga Ana Laborde, conservadora-restauradora do Instituto do Património Cultural de Espanha e coordenadora técnica das obras de restauro do Pórtico da Glória, este “encontrava-se numa situação terminal, de extrema fragilidade. Não se conseguia apreciar a qualidade dos relevos, embora se adivinhasse que ainda havia bastante cor e a obra continuava a impressionar pela sua qualidade”. Além disso, as figuras tinham sido repintadas em três ocasiões (nos séculos XVI, XVII e XIX), sendo objecto de vários retoques, alguns dos quais bastante infelizes e agressivos.
A arqueóloga e a sua equipa estavam plenamente conscientes de que, por um lado, iriam trabalhar numa obra única pelo seu vanguardismo e, por outro, tinham uma oportunidade igualmente única de devolver, a Mateo e à sua obra, os matizes roubados pelo tempo.

Mateo necessitou de mais de vinte anos e de uma equipa provavelmente numerosa para completar esta obra-prima da arte românica, mas o processo de restauro não lhe ficou atrás. O projecto e a sua execução, de enorme complexidade, foram possíveis graças ao mecenato exclusivo da Fundação Barrié, uma instituição privada profundamente envolvida na preservação do património histórico-artístico galego. O seu presidente, José María Arias Mosquera, afirma que “a derradeira razão para este apoio ao património é o reconhecimento do seu valor estratégico para a comunidade, um valor que gera riqueza e emprego, não só como veículo de cultura. Um valor que deve ser preservado em benefício das gerações futuras”.

Promovido por esta entidade e pela Fundação Catedral, o projecto contou ainda com a colaboração de organismos públicos como o Conselho de Cultura e Turismo da Junta da Galiza e o Instituto do Património Cultural de Espanha, do Ministério da Cultura e do Desporto. Para executá-lo foram necessários dez anos, uma tecnologia laser de ponta que incorporou sofisticados sistemas nanotecnológicos e estudos analíticos em laboratório, e mais de noventa profissionais empenhados num trabalho lento e minucioso que passou por estabilizar as condições ambientais, reparar a cobertura, eliminar as fontes de humidade, retirar a sujidade e fixar os pigmentos ainda existentes nas figuras.

“A existência de quatro fases distintas de policromia gerou dilemas, como definir o que deveria ser conservado”, explica Ana Laborde. “Em última instância, conservou-se tudo, pois todas são intervenções históricas valiosas. Aquilo que o visitante vê hoje em dia, após o restauro, são restos dessas três intervenções e de outros retoques posteriores, uma mistura de épocas (com prevalência da policromia do século XVII) que conservam unidade e harmonia. Em paralelo, conseguimos completar uma reconstrução virtual pormenorizada de cada fase.” (Ver páginas 17-18).

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Dois peregrinos percorrem um troço frondoso do Caminho de Santiago.Em 2018, a Oficina de Peregrinaciones registou 327.378 peregrinos: 164.836 eram mulheres (50,35% do total) e 162.542 homens (49,65%). Nurphoto / Getty Images

Graças a este esforço, a nova configuração do Pórtico revela o que seria normal na Idade Média e anteriormente: a cor aplicada a esculturas e relevos. Também conseguimos admirar um aspecto excepcional: a qualidade das tintas utilizadas, com materiais preciosos, como ouro puro, ou pigmentos muito caros, como o lápis--lazúli vindo do Médio Oriente, e sobretudo, a maneira como Mateo e os artesãos da sua oficina souberam aproveitá-los. Agora, podemos apreciar o ligeiro tom rosado de Santiago ao dar-
-nos as boas-vindas a sua casa, o sorriso sem malícia do profeta Daniel, ou o sangue abundante que jorra das feridas de Jesus Cristo.

Como comenta a coordenadora técnica do projecto, o trabalho de restauro da obra-prima de Mestre Mateo terminou, mas a sua manutenção deverá forçosamente continuar para evitar que volte a deteriorar-se e necessitará de outro tratamento à base de gel, lasers e desumidificadores. A recuperação deste pórtico glorioso serviu, acima de tudo, para gerar a energia necessária para corrigir outros problemas que afectam a catedral.

Estas obras permitirão que a cidade receba, com a sua jóia reluzente, os peregrinos que ali se deslocarem para celebrar o Ano Jacobeu, festividade que ocorre quando o dia de Santiago, 25 de Julho, calha num domingo. Uma coincidência que acontecerá doze vezes neste século (a próxima será em 2021) e que ajudará os visitantes que completam o Caminho a saírem de Compostela com a consciência tão limpa como o Pórtico da Glória. Ou quase.