Quantos números já tentou fixar nos meses que se passaram desde que tudo isto começou? Quantas contagens de casos, percentagens de risco, taxas de infecção por milhão de habitantes, actualizações diárias do número de óbitos?


Uma pandemia é uma história contada com enxurradas de números. Na redacção do jornal “Detroit Metro Times”, onde trabalhava como redactora, Biba Adams foi interiorizando números atrás de números, à medida que o novo coronavírus se propagava, saindo da China, atravessando a Europa, entrando nos  Estados Unidos e por fim no “seu” Michigan. Na segunda semana de Março, as autoridades de saúde confirmaram os primeiros casos de COVID-19 em Detroit. Alguns dias mais tarde, a mãe de Biba queixou-se de tosse.

Wayne Lawrence conheceu Biba Adams em Junho, enquanto visitava três cidades dos EUA para fotografar as pessoas enlutadas pela pandemia: mulheres e homens contaram-lhe o que custara perder um ente querido devido à COVID-19 ou a complicações relacionadas com a doença. Naquela altura, o vírus já matara a mãe de Biba Adams. Matara também a tia e a avó. Programas de rádio e de televisão puseram Biba no ar e, sempre que falava, expressava dor e fúria. Se os líderes políticos se tivessem comportado de outra forma quando receberam os primeiros avisos, disse Biba repetidamente, talvez as suas parentes ainda estivessem vivas.

“Perder a mãe doeria sempre”, disse Biba Adams numa conversa telefónica no final de Julho, quando o número de mortes devido à pandemia nos EUA estava no limiar de 150.000. “Perdê-la no meio de 150.000 pessoas é ainda mais doloroso. Não quero que ela seja apenas um número. Ela tinha sonhos que queria concretizar. Era uma pessoa. E eu vou manter o seu nome vivo.”

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Matthew W. Chwastyk, Irene Berman-Vaporis e Taylor Maggiacomo; Kelsey Nowakowski. Fontes: Departamento da Saúde e de Serviços Humanos do Michigan; Gabinete de Saúde Pública do Louisiana; Saúde Pública de Nova Iorque; The New York Times; Oxford Covid-19 Government Response Tracker

Elaine Head. É esse o nome da mãe de Biba Adams. Todas as fotografias de Wayne Lawrence captaram pessoas enlutadas porque os rostos, tal como o nome dos mortos, são tão importantes como os números. O jovem, com os braços em redor da noiva, chama-se Derrick Chaney e é caldeireiro numa fábrica de produtos químicos. Conta que o irmão mais velho, Marsha Chaney, tinha 35 anos quando morreu de COVID-19 na unidade de cuidados intensivos de um hospital.


Contando com Marsha e Derrick, havia nove irmãos na casa da família, na pequena cidade de Greensburg. Marsha era camionista. Foi jogador de futebol americano no liceu e estudou engenharia na faculdade. “Não tínhamos amigos”, diz Derrick. “Tínhamo-nos uns aos outros. Era ele que nos mantinha todos juntos.”

As duas jovens com os braços da mãe à volta da sua cintura são as irmãs Segui: Morit e Chloe. O pai, Yves-Emmanuel Segui, emigrou para os EUA vindo da Costa do Marfim, onde se formou como farmacêutico. Lá, o quotidiano era em francês. Em Nova Jersey, onde criou a família, Yves chumbava constantemente no exame para obter a licença de farmacêutico, feito em língua inglesa. Sempre que chumbava, começava a estudar para repetir a prova. Foi por isso que “The New York Times” usou o título “O Indómito Farmacêutico do Bronx” no seu obituário, depois de a COVID-19 o matar aos 60 anos. Na sua oitava tentativa, Yves superou o exame e arranjou, finalmente, trabalho numa farmácia, para a qual se deslocava de autocarro e comboio vindo de Newark, gastando três horas de viagem em cada sentido.

A mulher de camisola branca e cabeça erguida enquanto chora, é Elaine Fields, cujo marido, Eddie, tinha 68 anos quando morreu num hospital de Detroit em Abril. Eddie era um operário fabril reformado da General Motors, excelente jogador de bowling e fanático por automóveis clássicos. As tragédias são comuns, diz o início de uma canção do falecido artista gospel Walter Hawkins. “Todos os tipos de doenças. As pessoas esfumam-se.” Quando Biba Adams foi recolher os objectos pessoais da mãe ao hospital, descobriu um papel com a letra dessa canção dobrado dentro da carteira de Elaine Head. Hawkins escreveu a canção há muitos anos. É sobre gratidão e não sobre doença. O coro, aliás, agradece a Jesus. Mas o lamento dos versos prenuncia um contágio moderno virulento, um sistema de saúde dilapidado e uma sociedade profundamente estratificada, juntando-se para atacar, com grande ferocidade, as minorias raciais e os pobres dos EUA (gráfico, à direita). “As pessoas não ganham o suficiente para pagarem. Nenhum lugar parece seguro”, prossegue a canção.

A letra não corresponde exactamente à verdade durante a pandemia de 2020. Algumas pessoas conseguem ganhar o suficiente. Alguns lugares são seguros ou, pelo menos, mais seguros do que outros. E algumas tragédias não são, de todo, comuns.

Biba Adams emoldurou a letra e pendurou-a na sala de jantar. Em Julho, organizou por fim o memorial da sua mãe no quintal, onde os convidados com máscaras escutaram a canção de Hawkins e recordaram-na. Encomendou uma caixa de borboletas vivas para libertar porque a mãe teria gostado do gesto. “Preciso de fazer esta cerimónia”, disse. “Preciso de fechar esta porta.”