Esqueletos de animais exóticos. Exemplares de taxidermia de antigos territórios ultramarinos. Minerais raros e fascinantes. Máscaras brasileiras e aficanas. A Universidade de Coimbra tem nas suas reservas, um pouco de tudo. Em Maio de 2022, o espírito coleccionista de século XVIII passou a ter um novo ponto focal.

No coração da alta de Coimbra, no edifício do antigo colégio de jesuítas, paredes-meias com a sé nova, acaba de nascer um novo e surpreendente espaço museológico: o gabinete de curiosidades do Museu da Ciência da Universidade de Coimbra.

Para lá chegar, percorrem-se as escadarias de pedra calcária, gastas por milhares de pés ao longo de séculos, seguidas por corredores forrados a madeira que chia com vida própria. Agora, porém, paira o cheiro da novidade, apesar de tudo ser velho. São os paradoxos do legado de uma instituição com mais de setecentos anos de história que retoma em pleno século XXI um conceito há muito abandonado: mostrar peças raras, exóticas, chocantes ou simplesmente bizarras, com critérios mais estéticos do que científicos, tal como se fazia na era pré-museológica, tirando partido de um espólio riquíssimo, variado e, para muitos, desconhecido. Calcula-se que as peças expostas representam menos de 1% do acervo do museu. São cerca de quatro mil objectos em exibição num gabinete de curiosidades como quase nunca existiu em Portugal, se exceptuarmos a pouco ortodoxa colecção que o duque de Palmela reuniu no século XIX.

Gabinete de Curiosidades do Museu da Ciência da Universidade de Coimbra

Grandes peças suspensas no tecto faziam parte da assinatura visual dos gabinetes de curiosidades clássicos. Na imagem, o esqueleto de uma vaca acaba de ser içado para o tecto da Sala Carlos Ribeiro, espaço que acolhe o novo núcleo do Museu da Ciência da Universidade de Coimbra. Terá por companhia uma orca, um manatim e um crocodilo.

Tudo começou há três anos, quando a Universidade de Coimbra, ao procurar repensar o seu Museu da Ciência, definiu como estratégia a criação de novas exposições. O objectivo primordial era uma reorganização gradual, ano a ano, diferenciando a oferta expositiva com conceitos inovadores. Constatando que não existe actualmente “pré-museologia de ciência” – o que houve foi destruído por incêndios e terramotos ao longo dos séculos, nomeadamente em Lisboa –, estava criada a oportunidade para a génese deste Gabinete.

Entretanto, Paulo Trincão assumiu a direção do Museu e o projecto ganhou novo fôlego. Foi então redefinido o projecto, não para reproduzir um gabinete de curiosidades clássico, mas para recriar o ambiente e o espírito do coleccionismo do século XVIII, proporcionando ao visitante a experiência do que era o mundo antes dos museus modernos. Se a museologia começou com o princípio de agregar colecções ligadas pelo mesmo tema, época ou geografia, o coleccionismo era precisamente o contrário: agrupava objectos diferentes em função do apelo estético e da moda de cada época. “Refazê-lo agora, num espaço tão pequeno, é um enorme desafio”, diz Paulo Trincão. “É preciso por isso informar de maneira objectiva e fomentar o processo de descoberta de que o visitante é actor principal.”

Animais. Muito antes dos jardins zoológicos, eram os museus que mostravam ao público, sedento de exotismo, as estranhas criaturas que habitavam nos confins mal conhecidos da terra.

O público-alvo é diversificado, começando pelos milhares de turistas que visitam anualmente a Universidade, complementando a oferta existente (nomeadamente a Biblioteca Joanina, muito sobrecarregada). Na mira, estão também os pré-universitários da “geração Harry Potter” para quem os museus podem ser enfadonhos e que terão aqui uma experiência diferenciadora. “O Gabinete não explica nada, simplesmente mostra”, diz Paulo Trincão. “Idealmente, o visitante sentirá curiosidade e inspiração para buscar informação mais tarde noutras fontes.”

Como sempre, o financiamento é um dos aspectos fundamentais em projectos culturais desta envergadura. Com a Fundação La Caixa como mecenas, contribuindo com 250 mil euros ao longo de três anos, a equipa reuniu condições para materializar o conceito. O processo começou pelo mais difícil: a inventariação do enorme espólio existente, não apenas do museu mas da Universidade, seguindo a divisão clássica à época, em dois grandes grupos: Naturalia (“criado pela Natureza”) e Artificialia (“criado pelo Homem”). A prioridade era mostrar objectos nunca antes expostos, inclusivamente alguns nem sequer preparados para museologia. Houve uma busca intensa de peças curiosas, para lá da museologia convencional, contando também com apoios externos vários.

Minerais. Desde a antiguidade que os naturalistas coleccionavam minerais, atribuindo-lhes por vezes propriedades medicinais. No renascimento, Georg Bauer estabeleceu os alicerces da mineralogia.

Um deles veio da equipa de conservação e restauro da Direcção Regional de Cultura do Centro habituada a trabalhar com espólio arqueológico e artístico e que se viu aqui confrontada com a velha reconstrução de um crocodilo e de uma jibóia, numa transversalidade científica pouco habitual nas questões de musealização.

Na grande Sala Carlos Ribeiro, a madeira é o material que impera. Embora o mobiliário seja relativamente recente (o que, na Universidade de Coimbra, quer dizer de finais do século XIX), transpira história e empresta o espírito desejado ao espaço. Por outro lado, deu-se uma inversão na concepção da exposição: foi esta a ser adaptada à configuração da sala e não o contrário, como habitualmente. O uso de tecnologia é limitado à iluminação e aos ecrãs, num processo sóbrio mas fundamental. Cento e cinquenta microfocos, programáveis individualmente, foram montados pela mesma empresa responsável pela iluminação do novo Museu do Cairo. A Sala conta ainda com quatro espelhos translúcidos, do chão ao tecto, com ecrãs dissimulados por trás, que mostram imagens animadas e minuciosas de muitos dos objectos expostos e até de alguns que ficaram nas reservas do museu. Quatro programas de iluminação personalizados adaptam-se à tipologia do visitante.

Cultura. O antiquarismo acompanhou a redescoberta renascentista da antiguidade clássica. O homem e os seus vestígios tornaram-se tema de interesse. As viagens de exploração aumentaram o interesse por culturas distantes.

Sem explicação da exposição, este é “guiado” pela luz. Há uma variação suave do ambiente proporcionado, mais sentida do que compreendida, com banda sonora ambiente a condizer. A divisão da amostra expositiva divide-se em cinco camadas de informação, que são apresentadas ao visitante através da sequência de iluminação: primeiro, do negrume da sala, surgem seis armários minimalistas, de seguida o caos característico dos gabinetes de curiosidades clássicos, depois a componente barroca. As luzes no tecto acendem-se então, iluminando grandes peças suspensas e finalmente o primeiro andar ganha vida, desvendando a última parte da sala.

Gabinete de Curiosidades do Museu da Ciência da Universidade de Coimbra

Numa primeira fase, foi necessário identificar e seleccionar as peças a incluir na exposição do Gabinete de Curiosidades, reunindo-as de forma aleatória.

Para apoiar a equipa do museu e conceber esta exposição, foram contratados Alberto Pena (apoio na selecção de peças), David Pérez, designer de exposições, responsável pelo conceito, e Ana Yedros, artista plástica que teve a seu cargo a componente visual do Gabinete e a distribuição dos objectos pelas múltiplas vitrinas. Expansivo com a sua farta cabeleira grisalha, David Pérez explica que “os objectos não foram protagonistas pelo seu valor científico, mas pelo valor estético e intrínseco e pela sua relação, não taxinómica, com outros objectos díspares”. Com a organização das peças, os museólogos tentaram colocar-nos na mente de um coleccionador obcecado pelos objetos que vai acumulando. “Convertemos o mezanino existente num grande armazém caótico semelhante a um sótão secreto e inacessível, no qual o nosso suposto protagonista acumularia peças, nos seus primórdios, como coleccionador. Depois, ocupámos os dois cantos dos armários no fundo da sala para colocar as peças de forma grosseira e inocente, numa primeira tentativa de expor aquelas de que o nosso protagonista começaria por se orgulhar.”

Museu da Ciência na Universidade de Coimbra

Já na sala, David Peréz (na imagem) e Ana Yedros (da equipa responsável pela concepção), produziram diversos esboços de organização até chegarem à configuração final.

Absorto na conceptualidade da exposição, David continua: “Nos restantes móveis, a parte inferior dos armários foi adaptada para abrigar uma série de 12 naturezas-mortas de inspiração barroca nas quais o suposto coleccionador teria dado rédea solta à sua paixão e necessidade de fascinar, de chamar a atenção através da arte e beleza, sucumbindo ao frenesi subtil do objecto curioso, mágico, monstruoso, delicado, único, raro, primoroso... criando relações impossíveis em que a peça se rende à composição.”

Vestida de negro e com o risco dos olhos a condizer, Ana Yedros desenvolve: “Dão lugar a uma realidade inatingível, a um espaço enigmático que coloca o visitante no centro de um paradoxo, entre o alcançável e o distante, o claro e o nebuloso. O vidro translúcido muda a transparência para um reflexo dourado, irreal e sagrado. E a nossa imagem reflectida, cruzando a fronteira entre os dois mundos, faz-nos sentir etéreos... imortais, mas presos, como Lewis Carroll colocou Alice em ‘Através do Espelho e o Que Ela Encontrou Lá’. Atrás do espelho, por trás do reflexo, aparecem e desaparecem imagens que flutuam entre dois mundos, e que não pertencem nem a um nem ao outro.”

Dado que o edifício em que o Gabinete se integra está classificado como Património Mundial, houve cuidados redobrados. A suspensão de objectos de grande dimensão era uma imagem de marca dos gabinetes de curiosidades e, por isso, foi desenvolvida uma estrutura metálica apoiada nos armários pelo Departamento de Engenharia Civil da Universidade. O teste de carga não poderia ser mais prosaico: carros de mão cheios de areia foram pendurados e o suporte resistiu. Passou-se por isso para o desafio logístico seguinte: como pendurar os esqueletos de uma baleia e de uma vaca no tecto? E como fazê-los passar por portas que não foram pensadas para a passagem de cetáceos de grande porte? Cada peça da colecção tem história e algumas viveram peripécias militares ou diplomáticas, ao passo que outras protagonizaram episódios rocambolescos. As vidas de investigadores e curiosos acabam por também fazer parte deste gabinete.

Gabinete de Curiosidades do Museu da Ciência da Universidade de Coimbra

A Universidade de Coimbra tem, nas suas reservas, um pouco de tudo.

Domingos Vandeli é um nome sempre associado à Universidade de Coimbra. Nascido em Itália, chegou a Portugal como professor de Filosofia Natural. Trazia vários objectos pessoais, que usava como recurso pedagógico nas suas aulas. O marquês de Pombal adquiriu a colecção, que passou a integrar o património da instituição. Embora o presente espaço não seja uma recriação do gabinete de Vandeli, conta com algumas das suas peças. O centauro autómato é uma delas, uma geringonça funcional, que exemplifica uma experiência de Física.

Outra figura curiosa foi Gama Machado, fervoroso estudioso de Frenologia e a cuja colecção pertenciam dois jarros com desenhos de temática natural. Emigrante bem-sucedido em França, no século XIX, foi um entusiasta daquela pseudociência que procurava, através do estudo do crânio, associar características de carácter e comportamento a animais e humanos. Fez um conjunto de moldes de crânios e criou até um cemitério para cães. Apesar de não ser reconhecida validade científica à disciplina, trouxe um importante avanço científico porque ajudou a provar que diferentes partes do cérebro têm diferentes funções.

E como em qualquer enredo que se preze, até desgostos amorosos há nesta história: afligido pela tristeza, Luíz de Carvalho, um rico naturalista brasileiro primo de Carvalho Monteiro, o excêntrico criador da Quinta da Regaleira, em Sintra, terá vindo a certa altura da vida a Coimbra. E embora nunca cá tenha estudado, a viagem levou-o mais tarde a doar o seu espólio à Universidade.

Refira-se ainda Alexandre Rodrigues Ferreira e as suas viagens filosóficas. Foi um dos maiores naturalistas setecentistas. Empreendeu a mando da rainha Dona Maria I uma épica viagem de nove anos (entre 1783 e 1792), pelo interior da Amazónia. Numa expedição afligida desde logo por cortes orçamentais, teve apenas por companhia dois ilustradores e um jardineiro, descrevendo com infinito pormenor as vivências que testemunhava, tanto do ponto de vista do património natural como do cultural e antropológico. São dele algumas das peças mais vistosas expostas no Gabinete de Curiosidades, em particular várias máscaras.

Numa instituição tão antiga como a Universidade de Coimbra, os episódios insólitos de bastidores acumulam-se. Apesar de jovem, Cristina Rufino, técnica do museu, já assistiu a muitos. Com um olhar cúmplice por cima dos óculos de massa, partilha alguns: a grande cobra que, com olhar vagamente sinistro, fita o visitante desde o primeiro andar do Gabinete, “foi descoberta ao desmontar uma anterior exposição da Sala do Mar, escondida no fundo falso de um armário, juntamente com várias carapaças de tartaruga! Ninguém na actual equipa sabe há quanto tempo lá estavam”. Também o “Herbário de Peixes”, inicialmente atribuído a Rodrigues Ferreira mas que se descobriu entretanto ser de José Mariano da Conceição Veloso (1742-1811), que desenvolveu uma técnica de preservação de peixes que ficam parecidos com folhas, esteve perdido durante décadas e “apareceu” debaixo do anfiteatro de Zoologia. Ignora-se como, quando ou pela mão de quem lá foi parar.

Todo este património agora reunido no novo Gabinete de Curiosidades do Museu da Ciência da Universidade de Coimbra constrói um tratado invulgar da história e da modernidade. Ao entrar na sala, que deverá estar aberta ao público a partir de Maio, através de pesadas cortinas negras, o visitante penetra numa realidade alternativa, onde o fantástico impera e a imaginação pode divagar. Por uns minutos, perder-se-á, absorto, na presença de objectos insólitos e encantadores, num mundo em que caos e ordem convivem alegremente.