Empresas e universidades portuguesas protagonizam um movimento sem precedentes de investigação e aplicação de soluções de condução autónoma.

A porta pesada fecha-se, lentamente, em quase silêncio, e de imediato a penumbra instala-se. Os olhos demoram a adaptar-se, mas os restantes sentidos despertam, em alerta e em busca de orientação num ambiente desconhecido. 

Na Sala de Realidade Virtual do CEiiA, onde tem vindo a ser desenvolvida tecnologia de condução autónoma (CA) há vários anos, um enorme ecrã ilumina-se com o toque de um operador equipado com óculos 3D. De imediato, surge um vídeo com um ensaio de design de um veículo futurista, desenhado pela equipa residente. É apenas uma parte do trabalho neste centro de desenvolvimento tecnológico, criado em Matosinhos em 1999 e que passa pela investigação aeronáutica, oceanográfica, aeroespacial e automóvel. 

Abraçando projectos de hardware e software, o CEiiA concentra muita da sua actividade na mobilidade, o que levou à criação de uma importante plataforma de gestão, a Mobi.Me, que gere serviços de mobilidade em 70 cidades, incluindo a rede de mobilidade eléctrica nacional (postos de abastecimento), como frotas de veículos partilhados (em serviços de mobilidade partilhada, como as scooter sharing) e a rede de bicicletas do concelho de Cascais. No centro de operações, com paredes recobertas de ecrãs, Frederico Custódio, responsável de investigação explorativa, reforça a ambição do projecto e busca de impactes ambientais positivos. Procurando integrar diferentes meios de transporte em grandes cidades, a plataforma promove eficiência energética (por exemplo, através de tarifas dinâmicas, em função do trânsito).

O Mobi.Me é um dos projectos mais importantes e com forte impacte na vida de milhares de portugueses, mas o CEiiA tem vertentes mais industriais. Foram investidas 450 mil horas na construção do avião Embraer KC-390 e dos submarinos e drones projectados para investigação científica. Em comum em toda esta actividade criativa, está a noção de autonomia, de os veículos poderem dispensar o elemento humano.

carros sem condutores

Vitor Santos, investigador da Universidade de Aveiro, dirige o Atlascar 2, um Mitsubishi i-MIEV eléctrico, equipado para desenvolvimento de tecnologia de condução autónoma.

De cabelo rebelde e olhar vivo, José Silva, director técnico e de design, explica que a estética funcional é uma das prioridades da sua equipa. Para ele, “o automóvel é um computador com rodas, uma extensão da vida”.
O conceito já transitou para as estradas com o Buddy, um veículo eléctrico compacto, popular na Noruega. “Todos cuidamos do que é nosso”, é assim que termina a apresentação das plataformas universais para carregamento de bicicletas eléctricas, cujos protótipos apresentam um design arrojado. É uma “rede de objectos comunitários” que comunicam e interagem com redes sociais e com pessoas. A electrificação da mobilidade, a condução autónoma e os serviços de partilha de transporte acompanham o incremento do uso de dispositivos conectados. É por isso que o desenvolvimento de infra-estruturas de comunicação, de que a rede móvel 5G é o exemplo mais recente, ainda que envolta em polémica, ganha nova dimensão. 


 

Matosinhos está na linha da frente desta experiência social: reunindo 17 entidades que gerem energia, mobilidade, edifícios e ambiente, a cidade ganhou o concurso Living Lab. Vinte mil dos cerca de 175 mil habitantes do concelho estão envolvidos nesta experiência que integra investigadores e cidadãos. Um dos exemplos concretos é a utilização de um sistema-piloto de iluminação inteligente em duas das suas principais avenidas. Se um dia for extensivo a todo o concelho, a poupança energética anual resultará numa redução de emissões de 800 toneladas de CO2!

Num momento em que as alterações climáticas  e os desafios por elas impostos estão na ordem do dia e nos discursos de muitos líderes mundiais, coincidindo também com o advento dos veículos eléctricos e o fim anunciado (mas sempre adiado) do petróleo, Portugal avança com diversos projectos relevantes de investigação e desenvolvimento. Há um que se destaca: em parceria com a Universidade do Minho, a multinacional Bosch tem investido fortemente na unidade de Braga e os resultados não demoraram a surgir. 

Três mil e quinhentos trabalhadores produzem componentes para todo o mundo. É ali que está a ser desenvolvido um sistema para localização de veículos, com contributo de engenheiros portugueses. Nas palavras de Hernâni Correia, director do projecto em Portugal, “são centímetros que fazem a diferença”! Na visão da empresa, a condução autónoma é mais do que apenas sensores, unidades de controlo e capacidade de computação. Requer serviços inteligentes sem os quais nenhum veículo jamais será independente. Estes são no mínimo tão importantes para a condução autónoma como o hardware e o software

Na Sala de Design e Conceitos Avançados do CEiiA a componente estética de cada projecto é apurada. Aqui, desenvolvem-se diferentes tipos de veículos: aéreos, aquáticos (como em cima) e terrestres.

É por isso que, desde 2015, Portugal está envolvido na produção de um sensor de posicionamento e movimento de veículos, com uma equipa dedicada de 35 engenheiros dedicados ao projecto da Bosch. “Este grupo faz parte de uma grande equipa internacional que desenvolve um dispositivo que terá muito maior precisão do que os sistemas de navegação existentes”, resume Hernâni Correia. O novo dispositivo integra uma unidade receptora para os sinais Global Navigation Satellite System (GNSS), que os veículos autónomos usam para determinar a sua posição absoluta, integrando os sistemas GPS (EUA), Glonass (Rússia), BeiDou (China) e Galileo (Europa). Estes sinais são suficientemente fiáveis para os sistemas de navegação actuais, mas não para os veículos autónomos. 

Investigadores da Bosch Portugal testam, em tempo real, nas ruas de Braga, um BMW Série 5 com autorização especial para testes de condução autónoma na via pública. Este carro, a par de um i3 (eléctrico), foi escolhido por ser o modelo que mais componentes Bosch tem de origem, facilitando a monitorização de muitos parâmetros.

Com a informação proporcionada pela rede de estações terrestres, cujas posições precisas são conhecidas, consegue corrigir-se a informação de posicionamento do GNSS. A partir dos sensores de velocidade das rodas e do ângulo de direção, sabe-se para onde o veículo se dirige e a que velocidade. Esta informação é complementada por sensores inerciais integrados – comparáveis ao ouvido interno dos humanos – e processada por software inteligente. 

Se, ao entrar num túnel, perder a ligação por satélite, o sensor de posição e movimento continua a determinar a posição do veículo. Em última instância, tudo depende da tecnologia de telecomunicações. A rede 5G permitirá que grandes quantidades de informação sejam trocadas entre os diferentes componentes desta rede: veículos vão comunicar entre si e ligar-se-ão à infra-estrutura e aos sistemas de geolocalização. Diferentes sensores de vídeo e radar enviam para a nuvem um mapa virtual, detectando faixas de rodagem, rails de protecção e sinais de trânsito. Estes dispositivos podem detectar características da estrada mesmo quando a visibilidade é reduzida. Os veículos autónomos percepcionam as características das vias onde circulam e consultam o mapa para validar a informação que analisam em tempo real, permitindo determinar a sua posição com uma precisão de centímetros.

Quem é responsável num acidente: o construtor, o software, os sensores, a operadora de comunicações ou a infra-estrutura?

De regresso ao Grande Porto, a escala muda. Contígua ao Porto de Leixões, encontra-se uma peculiar loja e oficina. A Veloculture é um exemplo de comércio local com horizontes amplos. No belo mercado de Matosinhos, a bicicleta impera. Nesta visão, a velha invenção é entendida como um elemento de mobilidade urbana. Um dos fundadores, Miguel Barbot, cruza o visual hipster com um discurso activista. Para ele, a bicicleta é parte importante do pacote de mobilidade, devendo ser entendida em combinação com o recurso à rede de transportes públicos. E dá exemplos como a Holanda e a Dinamarca: em 2016, Copenhaga registou pela primeira vez mais bicicletas do que carros no centro da cidade, 265.700 contra 252.600. E embora este facto resulte de décadas de políticas de incentivo, muitas outras metrópoles buscam o mesmo caminho. 

Para Miguel Barbot, será mais fácil do que se pensa. Além das vantagens para a saúde pública, a bicicleta é o transporte mais rápido em trajectos urbanos curtos, de 4 a 5km. Quando utilizada em regime de partilha (como as Bicas em Cascais, as Bugas em Aveiro ou as Giras em Lisboa), a aceitação pelo público cresce, pela versatilidade que proporciona face à bicicleta própria. E nem sequer o perfil das maiores cidades portuguesas é assim tão adverso: tanto Lisboa como o Porto acabam por ser maioritariamente planas, excepto em trajectos específicos entre as zonas alta e a ribeirinha. 


 

“Com a bicicleta eléctrica, o futuro será luminoso: as pessoas movem-se mais depressa”, projecta Miguel Barbot. Embora o uso de bicicletas possa parecer marginal quando se fala de condução autónoma, o futuro aponta para soluções integradas de mobilidade e não para veículos independentes. Num cenário de partilha, que inclua automóveis autónomos e bicicletas, a utilização do espaço público é mais racional, com a diminuição da necessidade de policiamento e menores custos pelo decréscimo de acidentes rodoviários, que a nível global levam a vida a 1,25 milhões de pessoas por ano: o ónus tem sido suportado sobretudo por peões, ciclistas e motociclistas.

Jorge Carneiro da equipa de design dirigida por José Silva, apura as linhas de um concept car de argila. Um dos desafios da condução autónoma será a convivência de viaturas automatizadas com veículos conduzidos por humanos.

Pioneira no uso da bicicleta em Portugal, a cidade de Aveiro é um dos pólos de investigação científica em condução autónoma. Ali, o investigador Vítor Santos convida-nos para uma viagem no Atlascar 2, um veículo eléctrico adaptado que serve de base ao desenvolvimento de algoritmos de condução autónoma na Universidade de Aveiro. Está equipado com câmaras e vários tipos de sensores à base de medição com laser (LIDAR).

Por enquanto, o custo de alguns sensores é de dezenas de milhares de euros, o que dificulta a sua aquisição por instituições académicas como a aveirense. Ao contrário de outros sectores do conhecimento, em que a ligação entre a indústria e a universidade é muito próxima, Vítor Santos reconhece que os fabricantes automóveis mantêm forte sigilo industrial e nem sempre facilitam o (des)envolvimento académico da tecnologia. Alerta também para outro pormenor conceptual: estará a sociedade preparada para veículos autónomos? Poderá um carro telecomandado ou autoconduzido ser usado como arma ou num assalto? Quem é responsável num acidente: o construtor, o software, os sensores, a operadora de comunicações ou a infra-estrutura? Como e quem segura um veículo desta natureza? 

Um estudo do Instituto Tecnológico de Massachusetts (MIT) evidenciou que os dilemas morais subjacentes são complexos: numa situação de acidente iminente, o algoritmo informático do carro terá de decidir como se comporta, escolhendo entre uma colisão entre veículos ou, por exemplo, um atropelamento. E, neste caso, como tomará uma decisão de pendor moral, se tiver de equilibrar a vida de um grupo de idosos ou de uma criança?

Em alguns estados norte-americanos já foram atribuídas licenças para testes com veículos autónomos em estradas públicas, mas também foi ali que, em 2018, na noite de 18 de Março, aconteceu um acidente que refreou os principais agentes deste campo: ao atravessar a pé uma estrada mal iluminada, Elaine Herzberg foi atropelada por um veículo da Uber que circulava autonomamente em testes (com um condutor de back-up). Viria a falecer. O caso foi comparado pelos meios de comunicação ao de Bridget Driscoll, a primeira pessoa atropelada mortalmente por um automóvel, em 1896, no Reino Unido. 

Num sector de gigantes, a criação de um novo construtor automóvel é um empreendimento difícil. Com o advento dos veículos eléctricos e da condução autónoma, o jogo parece estar a mudar. Encontramos na Suécia, um dos países europeus com maior tradição automóvel, a Einride. Esta startup nórdica foi fundada em 2016 por um antigo engenheiro da Volvo, Robert Falck, e eleva a fasquia deste sector com uma proposta arrojada: o T-Pod. 

Num dia de Inverno, encontramos este camião de transporte de mercadorias na pista de testes AstaZero.
A sua arquitectura elimina a cabina do condutor, poupando espaço e peso. O veículo foi concebido de raiz com um motor eléctrico e a condução será autónoma, com opção para um controlo remoto, numa estação-base onde o operador humano fará a gestão e eventual condução manual à distância. Não é um mundo ficcional: já existem T-Pod activos, numa parceria da Einride com a empresa de logística DB Schenker e a rede de supermercados Lidl Suécia. A empresa tem mais cinco contratos com empresas do Fortune Global 500 e está a negociar com firmas portuguesas também. De momento, o camião trabalha em circuito fechado, mas já foi autorizado a circular em estradas da Suécia, ainda que sob supervisão humana.

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A pista de testes AstaZero, nas proximidades de Gotemburgo, na Suécia, onde o camião eléctrico e sem condutor T-Pod, do constructor Einride, é conduzido remotamente a partir de Barcelona, durante a feira Mobile World Congress.

Robert Falck tem uma visão holística da empresa e do papel que a mobilidade desempenhou na história. A sua motivação é “provocar uma mudança para um transporte sustentável”, diz. Segundo ele, o petróleo só prevalece devido ao lobby que o rodeia e não por falta de tecnologia alternativa. A Einride, cujo nome provém de Thor, o deus da trovoada na mitologia escandinava, quer alterar o paradigma, com recurso a veículos eléctricos e autónomos. “A humanidade foi moldada pela tecnologia dos transportes, que produziu mudanças sociais profundas: guerras foram travadas e impérios erguidos, primeiro a pé, depois a cavalo, e a seguir de navio. No século XIX, o advento do comboio e dos veículos de combustão mudou tudo. Está novamente na hora de mudar! A evolução molda as cidades e a distribuição de riqueza. No futuro próximo o transporte autónomo tornará as sociedades mais democráticas, porque é mais barato, sustentável e seguro.” 

Segundo Robert Falck, é possível reduzir em 90% o CO2 emitido em aplicações industriais associadas à movimentação de mercadorias através do uso de veículos eléctricos e de veículos de condução autónoma. Com uma autonomia actual de 200km, um T-Pod compensa o tempo necessário para o carregamento das baterias com a ausência de paragens que um camião normal exige por necessidades do motorista de descanso, alimentação e pausas sanitárias.

Como em qualquer nova tecnologia, é urgente definir padrões. A SAE International estabeleceu diferentes níveis de autonomia para carros, de 1 a 5. Para Gabriel Campos, da Zenuity, outra empresa sueca especializada em software de assistência avançada ao condutor (ADAS) e CA, “só há dois níveis importantes: CA supervisionada, onde é o motorista o responsável pela conducão, ou CA não-supervisionada, onde o carro é o responsável. Qualquer classificação intermédia é ambígua e pode ter consequências graves.”. 

Perto de 90% dos acidentes de viação devem-se a erros humanos. Os sistemas de ADAS e CA podem mitigar a maioria destas casualidades e reduzir o número de acidentes tanto quanto a tecnologia o permitir. A discussão sobre segurança é aliás um dos temas quentes do momento. Como se poderá provar que a tecnologia é segura? Um dos desafios é garantir, por concepção, simulação e validação, que os actuais sistemas são seguros sem ter de conduzir milhões de quilómetros por cada actualização de software. É essa confiança que a Zenuity procura conquistar. 

Nascida em 2017, conta com 600 funcionários em quatro países. Obteve uma licença para circulação com carros autónomos em determinadas rodovias suecas. Os testes serão feitos com motoristas treinados, que poderão conduzir sem mãos no volante, a uma velocidade máxima de 80km/h. A Volvo, accionista e cliente, tem como objetivo entregar um carro sem motorista, para determinados ambientes, nos próximos anos e a Zenuity está comprometida em facilitar este objectivo.

Deixando as geladas paisagens escandinavas, avista-se do avião a superfície espelhada do estuário do Tejo ao aterrarmos em Lisboa. Na margem sul, destaca-se a silhueta da maior fábrica automóvel do país: a Volkswagen Autoeuropa. O colosso industrial tem em Portugal um pólo cujo pico de produção ronda mil unidades diárias. Apesar de nesta unidade não serem montados sistemas de condução autónoma, ali circulam os Autonomous Guided Vehicles (AGV). De aspecto discreto, que passaria despercebido ao olhar destreinado, a multitude de funcionalidades que este tipo de dispositivo apresenta torna-os imprescindíveis. António Norberto, responsável da Logística Interna na Área da Logística, circula com olhar vigilante pela linha de montagem, onde os veículos ganham vida, reforçando a importância que os AGV têm na logística das modernas unidades fabris, para o transporte automatizado de componentes, desde enormes estruturas com dezenas de portas de carro a delicadas cablagens eléctricas. 

Seguindo percursos predefinidos pela fábrica, interagem com peões, bicicletas e veículos conduzidos por humanos, evitando colisões. A investigação que levou à criação destes AGV está, em boa parte, na génese dos avançados sistemas de condução autónoma que hoje migram, desenvolvidos, para produtos de consumo. 

“O futuro é excitante. Está pronto?”, pergunta na televisão uma conhecida campanha publicitária. Poderá não ser já amanhã que os nossos carros conduzirão sozinhos, mas todos os dias são dados passos de gigante nessa direcção. Enquanto sociedade, devemos preparar-nos para o dia em que se tornará comum ver um carro na estrada sem um  condutor a bordo.