Pode parecer estranho começar um texto sobre ciclismo com um dos mais infames casos de injustiça registados, mas a História é um bocado isto: eventos e fenómenos que se interligam sem sabermos muito como. Mas ligam.
O caso Dreyfus é incontornável para se entender a França do fim do século XIX e do início do século seguinte. Uma intriga que começou em 1894 e que envolveu um capitão do exército gaulês, Alfred Dreyfus, acusado de mentor de uma rede de espionagem que partilhava segredos militares franceses com a Alemanha.
Nesta altura, Alemanha e França envolveram-se em vários conflitos militares que desembocariam na 1ª Guerra Mundial. A acusação era gravíssima. Mas as evidências assentavam essencialmente num pequeno papel, onde uma mensagem codificada parecia ser trocada entre dois lados estabelecendo uma ligação obscura. Sem indícios que permitissem a identificação do espião, a lógica usada foi a do suspeito mais óbvio; e o brinde calhou ao citado Dreyfus.
A razão? Inicialmente, por ser alsaciano, de uma zona fronteiriça entre os territórios francês e germânico. Mas isso em si não era raro no exército francês, já que muitos oficiais até eram escolhidos devido às origens alsacianas pelo domínio fácil do idioma alemão. Dreyfus, no entanto, era judeu. E ainda por cima, o mais recente oficial judeu a ser promovido.
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"Le traître: Degradação de Alfred Dreyfus" (1895), da autoria de Henri Meyer. Primeira página do suplemento ilustrado do Petit Journal, de domingo, 13 de Janeiro de 1895.
O Estado Maior do Exércio Francês da altura fazia do anti-semitismo um orgulho, o que não fugia ao espírito da época. Mesmo com provas diminutas e especialistas forenses ignorantes em relação ao que analisavam, Dreyfus foi julgado e condenado sumariamente. A pena? Exílio e trabalhos forçados na Ilha do Diabo, um território junto à Guiana Francesa, na América do Sul, considerada a mais famigerada e temível colónia penal de todo o sistema gaulês.
À altura, toda esta situação foi considerada de uma injustiça atroz; mas quando, dois anos depois, uma investigação efectuada por George Picquardt, que dirigia a contra-espionagem francesa, descobriu que o culpado era Ferdinand Esterhazy, outro oficial que não Dreyfus, a cabala contra o oficial judeu tornou-se mais descarada. Esterhazy, ainda assim, foi ilibado num julgamento militar, apesar das variadas provas e testemunhas contra si. Numa cereja em cima deste sibilino bolo, o Estado-Maior francês ainda acrescentou algumas acusações extra à conta de Dreyfus. Estava claro que a ideia era a de não admitir erro e de castigar alguém simplesmente devido à sua origem étnica e crenças religiosas. Anos mais tarde, Dreyfus viria a ser solto e ilibado, regressando ao exército. Mas o mal estava feito.
SPRINT INTERMÉDIO: DOIS JORNAIS DISPUTAM LEITORES E NASCE O TOUR
A sociedade francesa rasgou-se a meio: os que defendiam Dreyfus e os que desejavam a sua condenação. Choveram artigos de um lado e de outro – o mais famoso dos quais será o “J’accuse”, de Émile Zola, no jornal L’ Aurore, defendendo Dreyfus – e também manifestações encarniçadas que levaram até a detenções pela polícia. Um desses detidos foi Jules-Albert Dion, um empresário rico que era contra Dreyfus. Enquanto estava na prisão, foi visitado por Pierre Giffard, o editor principal do Le Velo, um dos principais jornais desportivos da altura. Giffard defendia Dreyfus e uma visita de cortesia transformou-se numa discussão de tal forma tremenda que Dion retirou o seu apoio financeiro ao jornal. Levando a sua ira a uma nova escala, fundou um jornal desportivo concorrente, o L’ Auto, em 1900, e escolheu como editor Henri Desgranges.
Este era um indivíduo de variadíssimos talentos: advogado, jornalista e na sua juventude um talentoso ciclista que foi o primeiro a estabelecer o recorde da hora. Desgranges manteve sempre uma forte ligação à modalidade, dirigindo vários velódromos e escrevendo sobre o assunto. Era o homem certo para a função, mas estava a juntar-se a um grupo de empresários mais conservadores que haviam fundado um jornal sem qualquer ideia sobre como mantê-lo solvente. Só por vingança. Tentaram até adoptar o nome de L’ Auto-Velo, de maneira a colarem-se ao sucesso do inimigo, mas após uma longa batalha em tribunal, foram derrotados. Voltando ao seu título original, as vendas do L’ Auto eram escassas e Desgranges sabia que era necessário fazer algo de drástico e empolgante de maneira a atrair atenções e clientes.
Em 1902, convocou uma reunião com o staff de jornalistas e pediu ideias. Georges Lefevre, que cobria rugby e ciclismo, sugeriu a organização de uma prova de ciclismo que percorresse as grandes cidades francesas. Duraria seis dias, como acontecia com as provas de pista na altura, mas aconteceria na estrada.
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O ciclista e jornalista desportivo francês Henri Desgrange na sua secretária como chefe de redação do L' Auto em 1914.
Ideia roubada, ideia concretizada
Grandes cidades atraem muitos leitores. Ficou logo uma frase, lendária ou não, com que Desgranges respondeu à sugestão: "Se bem entendo, caro Géo [Lefevre], o que me está a propor é um Tour de France". E era mesmo. Desgranges demonstrou outro talento além dos mencionados, o de ladrão de créditos de ideias, já que hoje ainda muita gente acha que foi ele quem criou o Tour e, na verdade, foi o seu empregado Lefevre. Mas o editor-chefe apresentou a ideia à direcção financeira do jornal, que aprovou o risco e disponibilizou os fundos para organizar a prova.
A ideia de organizar uma corrida em bicicleta associada a um jornal, a bem dizer, não era novidade à altura. O ciclismo era muito popular no início do século XX, principalmente no Centro e Norte da Europa, que ainda hoje é considerada a sua verdadeira Terra Santa. A Liege-Bastgogne-Liege, desenrolada em França e Bélgica, existia desde 1892 sob o patrocínio do jornal L’ Express; e o Le Vélo tinha também a sua corrida, a Paris-Roubaix, corrida no Norte de França, em terrenos de empedrado inclemente. Ambas perduram na actualidade, provando a permanente popularidade deste desporto. Os franceses sempre admiraram o ciclismo, algo que é comum aos vizinhos belgas, italianos e espanhóis. Os leitores dos jornais também o sabiam. É uma modalidade que cruza os piores instintos da Humanidade com o romantismo das aspirações mais nobres. O desespero de ganhar a todo o custo e também a superação dos limites humanos na obtenção do impossível. Em França, particularmente, os ciclistas ressuscitavam memórias dos tempos medievais, cavaleiros que montavam bicicletas e não cavalos. O que Desgranges, via Lefevre, apresentou ao público era um desafio velocipédico diferente dos que já existiam, uma prova de resistência e endurance como não havia outra.
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Tour de France, 1903. A chegada a Bordéus do primeiro vencedor estrangeiro de uma etapa, o suíço Charles Laeser.
PRÉMIO DE MONTANHA: O TOUR COMEÇA A SUA ESCALADA RUMO AO SUCESSO MUNDIAL
A primeira edição da Volta a França decorreria entre 1 de Julho e 23 de Julho de 1903, fixando o período em que ainda hoje decorre, mais dia ou menos dia. Começaria num café que ainda hoje existe: o Au Reveil Matin. As etapas – seis – eram longuíssimas, a primeira delas entre Paris e Lyon. Havia 2.528 quilómetros para percorrer, 60 participantes, dos quais só 21 terminaram de facto. Uma semana antes de começar o Tour inicial, só 21 inscritos se tinham apresentado. Desgranges, furioso e em pânico, agiu com rapidez: prometeu que pagaria cinco francos por dia aos cinquenta primeiros classificados no final e aumentou a quantia monetária dos prémios até vinte mil francos. Resultou: no dia 1 de Julho, havia 60 concorrentes prontos a sair. A maior parte eram aventureiros ou desempregados que queriam o dinheiro da participação. As regras foram adaptadas à distinta variedade de condições físicas dos atletas. Um concorrente podia abandonar uma etapa e começar outra no dia seguinte, embora já não pudesse concorrer à Classificação Geral. Alguns dos amadores ciclistas simplesmente corriam a etapa que atravessava a sua cidade natal, de maneira a representá-la com dignidade e orgulho, ou dizer olá aos amigos e familiares que apoiavam à beira da estrada. Depois abandonavam. E um grande número nem deu o seu nome real na inscrição, optando por um pseudónimo. O belga Julien Lootens, por exemplo, só era conhecido por Sansão. Foi neste contexto que a corrida arrancou da capital francesa, atravessando a já referida Lyon, Marselha, Toulouse, Bordéus e Nantes, regressando ao início. A etapa mais longa foi de 471 quilómetros e a mais curta de 268. Cada etapa tinha entre si dois a quatro de dias de intervalo, dando tempo aos ciclistas para terminarem as etapas. Os que conseguiam, pelo menos.
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Maurice Garin venceu a primeira Volta a França. Ganhou com uma margem de duas horas e 49 minutos.
AMARELA, COMO AS PÁGINAS DO JORNAL
Desgranges, ainda que tenha roubado a ideia, não estava totalmente confiante no sucesso da empreitada. Não compareceu sequer à partida, mantendo-se no escritório do jornal. Foi Lefevre, o verdadeiro ideólogo, a seguir a corrida durante toda a sua duração – relatando os factos, descrevendo os episódios, entrevistado os corredores. Às vezes de carro ou de comboio, ocasionalmente de bicicleta. É ele quem comparece em todas as cidades onde as etapas começam e terminam. E é ele quem assume as funções de direcção e organização da corrida. O Tour revela-se um enorme sucesso. Milhares de fãs vêm às ruas puxar pelos atletas e mais de vinte mil espectadores recebem os heróis no velódromo parisiense onde termina a última etapa. Receberam o vencedor inaugural, Maurice Garin, um talentoso ciclista que viria a vencer também a segunda edição… mas sendo desclassificado por ter apanhado boleia de um carro nalgumas etapas. Foi ele, no entanto, o primeiro a vestir um dos maiores símbolos de vitória do desporto: a camisola amarela, dessa cor devido ao tom das folhas do jornal L’ Auto, o patrocinador da prova.
CAMPOS ELÍSIOS: O CULMINAR DA BATALHA E O ROMANCE DO PEDAL
O golpe publicitário, no entanto, resultou. No espaço de um ano, o L’ Auto triplicou a sua tiragem e conseguiu reduzir o Le Velo à insignificância da bancarrota! A batalha dos jornais desportivos terminara. Desgranges convidou Pierre Girard, o seu rival, a trabalhar como jornalista de ciclismo no seu jornal. Este aceitou. OL ’Auto fechou em 1944, depois de ter cooperado com a ocupação nazi durante a 2ª Guerra Mundial. Do mítico jornal que lançou uma competição mítica derivou oL' Equipe, um desportivo que ainda hoje existe.
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Véspera da partida da Volta a França de 1937, 29 de Julho, na sede de L' Auto, 29 Faubourg Montmartre. Apresentação das equipas, check-in, regulamento, autógrafos para o público. Fonte: Bibliothèque Nationale de France
O Tour é uma das competições desportivas mais vistas da actualidade. Continua, cento e vinte anos depois, a manter um certo romantismo dos tempos iniciais, apesar dos vários escândalos que o têm atingido e de integrar uma corrente de mercantilismo, com equipas decorando as suas camisolas com símbolos e nomes de patrocinadores.
O ciclismo é uma daquelas raras modalidades nas quais os derrotados são tão admirados quanto os vencedores, heróis que enfrentam batalhas que sabem derrotadas à partida… mas avançam na mesma. No passado, homens como Raymond Poulidor ou Joaquim Rodriguez; na actualidade, Thibaut Pinot, fervorosamente amado pelos franceses como eterno perdedor, ou Mikel Landa, messias do Landismo, religião ciclista, dos que atacam condenados a cair do pedestal. Mas é também, claro, a via dos grandes campeões: Merckx, Hinault, Indurain, Coppi… E este ano, dos titãs Jonas Vingegaard e Tadej Pogacar.
E claro, é a competição que inspirou uma canção dos Kraftwerk. O que não se pode colocar de lado na ordem de importância das coisas.