O nome de Theda Bara não deve soar familiar à maior parte dos leitores, a não ser que sejam cinéfilos hardcore. O seu nome, como o de muitas estrelas do cinema mudo, desapareceu na transição para o sonoro e não ficou registado na memória colectiva futura. No entanto, em 1915, entre actores e actrizes, era a terceira pessoa mais bem paga no cinema americano, atrás só de Mary Pickford e Charles Chaplin.

Bara é considerada ainda a primeira verdadeira sex symbol produzida pelo cinema dos EUA, o primeiro produto de marketing intencional da sétima arte e, muito provavelmente, a primeira gótica dos Estados Unidos. Isto porque popularizou uma figura simbólica na cultura do século XX que teve variadas encarnações: a “Vamp”. Bara não terá sido a primeira, mas foi sem dúvida a primeira a ser realmente popular.

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DOMÍNIO PÚBLICO

Cartaz de The She-Devil (1918), protagonizado por Theda Bara.

O que é uma “Vamp”?

No cinema, é uma personagem feminina exótica e misteriosa – ficcionada e filmada por homens – que usa os seus poderes ocultos de sedução para destruir homens incautos e afirmar a sua força e liberdade femininas. Curiosamente, Theda Bara não podia estar mais longe desta imagem: nasceu Theodosia Goodman em 1885, em Cincinatti, Ohio, e desde cedo se obcecou com o cinema e com as actrizes que via no ecrã. Em 1905, começou a sua carreira nalgumas produções teatrais, embora o que realmente lhe interessava era integrar a nascente indústria cinematográfica.

Depois de uma passagem por Nova Iorque, onde actuou algumas vezes na Broadway em papéis secundários, conseguiu por fim uma pequena participação no filme The stain, em 1914, e é aí que atrai a atenção do realizador Frank Powell. Bara mentiu sobre a sua idade (dizia ter 24, mas na verdade fizera 29 anos) e o estúdio Fox ofereceu-lhe um contrato de fidelidade onde Bara seria chamada caso houvesse necessidade, com um número exacto de filmes a serem rodados. Nesta altura ainda não havia sequer Hollywood: a maior parte do filmes americanos eram registados em Nova Iorque e Nova Jérsia.

O ESTADO DA INDÚSTRIA CINEMATOGRÁFICA

Era o costume na época. Actores e actrizes eram simplesmente pessoas de quem os estúdios precisavam de vez em quando. Na maior parte das vezes, nem sequer eram creditados. Só a partir de 1910, com Florence Lawrence e um processo em tribunal, é que a situação mudara. Nos primórdios do cinema, os filmes eram de má qualidade no geral e não havia necessidade de dar protagonismo aos intérpretes, mesmo que, como acontecia com Florence, estes entrassem em tantos filmes do mesmo estúdio que o público começava a identificá-los com o mesmo.

Lawrence, por exemplo, era conhecida como “Biograph girl” por este mesmo motivo. Os filmes eram tão esquecíveis que se tornavam literalmente recicláveis: as bobines em que se gravavam eram utilizadas posteriormente para a filmagem de outras obras. É por isso que do cinema mudo, sobram apenas as películas mais populares ou as que foram reconhecidas logo na altura como objectos de mérito artístico. Nos EUA, havia a noção de que o cinema, enquanto arte, era coisa dos europeus. Na terra dos livres, casa dos bravos, o negócio suplantava tudo.

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Theda Bara com Alan Roscoe em Camille (1917). 

Com o surgimento das primeiras estrelas, o marketing tornou-se uma ferramenta importante. Surgem as primeiras revistas dedicadas a mexericos e às estrelas. Logo, vender os intérpretes e o conceito da história tornou-se tão importante quanto o filme em si. E é neste espírito da época que Bara tem o seu golpe de sorte. Frank Powell estava a trabalhar num filme chamado A fool there was – a história de um rico advogado que, viajando para Inglaterra num navio, conhece uma misteriosa mulher… uma vampira (equivalente a femme fatale). 

Nesta altura, “vampiro” era uma palavra associada a duas coisas: à obra Dracula, de Bram Stoker… e à imagem de uma mulher que violava as convenções sociais e vivia uma vida dissoluta, destruindo famílias e castos machos. A fool there was era obviamente gratuito, novelesco e precisava de uma dose de electricidade. Powell achava que essa dose era Bara. Mas não a Theodosia Goodman, que mudara o seu nome. 

NASCE A MULHER VAMPIRA

O departamento criativo da Fox criou então um mistério em torno desta nova actriz. Não tinha nascido em Cincinatti, mas sim à sombra da Esfinge, no Egipto.

Filha de uma actriz francesa e de um sheikh árabe ou um escultor italiano – conforme as versões –, criada numa tenda, ensinada nas artes do oculto por feiticeiros do deserto, esta princesa mudara-se para Paris, com o sonho de ser actriz. Em 1914, a Primeira Guerra Mundial estalara na Europa e Frank Powell, qual herói militar, resgatara esta princesa do seu cativeiro nos horrores do conflito, e trouxera-a para a América com a ideia de torná-la na sua nova musa e estrela. O estúdio promoveu uma conferência de imprensa para anunciar esta… Theda Bara ao mundo.

Antes de revelá-la, a descrição era sugestiva: uma figura serpentina, olhos negros do calor do deserto. Um objecto exótico vindo de uma realidade praticamente desconhecida. E eis que, no palco, uma cortina caiu e um cenário todo negro revela uma mulher de pele branca, vestida de veludo escuro, deitada numa chaise longue revestida a tigresa. A misteriosa princesa, apresentada como real, debitou aos jornalistas aforismos e máximas de mulher perigosa. Afirmou que nunca se poderia submeter a um homem ou perderia os seus poderes mágicos; asseverava que às primeiras rugas, suicidar-se-ia por não se conseguir ver na decadência… mas matar-se-ia com veneno, para não ficar desfigurada.

Theda Bara fez logo sensação. Os jornalistas dividiram-se entre aqueles que acreditaram piamente na história e os que sabia, à partida, que esta era uma engenhosa manobra publicitária, mas decidiram alinhar na mesma pela piada. The fool there was foi um tremendo sucesso e lançou-a numa série de filmes onde interpretava variações daquela tentadora criatura das trevas.

Mesmo em papéis históricos como, apropriadamente, Cleópatra e Salomé, o centro estava no oculto, no desejo, na liberdade que existia na selva do cinema americano antes da entrada do código de censura Hayes na década de 1930. Mesmo a a versão de Romeu e Julieta que protagoniza transforma a filha única dos Capuletos num fantasma. Ou seja, atira-a para o final da peça.

As histórias escabrosas acumulam-se: Theda Bara era tão hipnotizante que trabalhou como um pitão real, que submeteu ao seu encanto! Um frenologista – analista de formas de crânios, uma figura central de uma pseudociência respeitada no início de século, mas hoje completamente descartada – deu entrevistas comparando a cabeça de Bara à de uma anaconda

THEDA
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Anúncio de Destruction, 24 de Dezembro de 1915

A QUEDA DE THEODOSIA

Porém, Theodosia Goodman era muito diferente de Theda Bara. Numa indústria de cinema descrita muitas vezes como um antro de ninfomaníacos viciados em cocaína, Theodosia era uma mulher caseira, que passava as noites num apartamento em Nova Iorque com a família a ler livros. De facto, para manter a ilusão da exótica princesa, a Fox alugou em permanência um quarto num hotel, decorado à maneira árabe, onde Theodosia dava entrevistas como Theda Bara.

O tédio começou também a invadi-la, farta que estava de interpretar sempre a mesma personagem, não entendendo que para o público não existia a actriz: só a figura simbólica. Foi aí que alguns colegas de profissão começaram a chamá-la de “Vamp”, diminutivo de vampira. A palavra existia no dicionário de inglês com dois significados: sinónimo de improvisar ou designação do topo de um sapato. Agora, ganhava informalmente uma terceira. Numa ironia tendo em conta acontecimentos futuros, o grande choque e segredo de Theda Bara não eram os seus escândalos, escapadinhas e deboches, mas sim o facto de ser… vulgar, banal.

A sua carreira teve cinco anos de auge, entre 1914 e 1919. A sua tentativa de se desligar da sua imagem pública não foi bem-sucedida. O público não estava interessado em vê-la como actriz, e a ruptura deu-se com Kathleen Mavourneen, uma história simples onde interpretava uma jovem e alegre irlandesa, com uma atitude positiva perante a vida. O oposto da “Vamp”. A comunidade irlandesa ficou furiosa com a percepção de que o filme os ridicularizava e, pior ainda, pelo facto de uma mulher judia interpretar a céltica personagem principal. Seguiram-se protestos, boicotes, até atentados e violência. A Fox não lhe renovara o contrato, por exigência salariais, e este flop foi uma grave machadada na sua carreira.

A transição para os anos 1920 trouxe também uma mudança de modas. O exotismo está out, as flappers estão in. Ninguém quer saber do mistério e da complexidade, mas sim de mulheres acessíveis, libertinas, senhoras de si, capazes de enturmar com os homens. Theda Bara tenta reavivar a sua carreira na Broadway, mas é ridicularizada pela sua aparente falta de talento (ou adaptação, uma vez que era alguém habituada ao estilo histriónico e exagerado exigido pelo cinema mudo). Em 1921 retira-se então da indústria e, com excepção de uma tentativa de regresso em 1925, nunca mais actuou. Morre em 1955, vítima de cancro, uma morte prosaica… e banal.

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Theda Bara em Cleópatra (1917) 

O SEU LEGADO

Sobram-nos apenas seis filmes completos de Theda Bara. O que sobrevive acima de tudo é a sua imagem e o seu simbolismo paradoxal: a mulher agressiva e sedutora que não pertence à moral victoriana do início do século XX, estrita, uma fantasia de liberdade feminina, de decidir o seu próprio rumo, não subjugada aos desejos do homem.

No entanto, o seu retrato como criatura das trevas e da destruição, invariavelmente vilanesca, revela a sua imagem de “Vamp” como um aviso a todas as mulheres sobre o que acontece quando não se submetem à vida conjugal e ao respeito do seu marido.

Que legado deixou Bara?  A imagem perniciosa da Mulher como fonte do Mal, repercutida em muitos filmes futuros. Dois exemplos: Mulher Fatal, de Brain de Palma, ou Estrada Perdida, de David Lynch.