Percorro, resolutamente, a passo estugado, os corredores escuros do Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA), sob o olhar frio de centenas de ilustres personagens do passado que vigiam, sérias, cada um dos meus movimentos. De manual escolar em punho, qual guia fotográfico improvisado, busco, em concreto, Afonso de Albuquerque. Figura maior da história de Portugal, distingue-se pelas inconfundíveis barbas grisalhas, longuíssimas, com um nó na ponta, imagem de marca do génio militar que cimentou o poderio português no Oriente no século XVI. No entanto, a minha busca tem um propósito invulgar: venho apenas para confirmar que, afinal, as barbas são falsas. Postiças, poder-se-ia dizer!
Uma cópia do resultado do res
tauro realizado em 1955, patente no Museu da Marinha, onde o vice-rei é representado com barbas negras e curtas, antes de lhe serem repintadas as brancas, que hoje se vêem.
O facto, desconcertante, já fora parcialmente revelado em 1953, embora na altura tivesse ficado restrito a um pequeno círculo de personalidades conhecedoras da novidade. O imponente quadro do século XVI, hoje exposto no MNAA, chegou a Lisboa para restauro, originário de Goa, e o que aconteceu nos anos seguintes é digno da saga de Indiana Jones, tais as vicissitudes que a obra de arte sofreu, envolvendo guerras, agentes secretos e roubos, mesclados com diplomacia ao mais alto nível. Hoje, porém, com recurso a novas tecnologias e metodologias científicas inimagináveis à época, o mistério começa a desvendar-se!
O centro HÉRCULES utilizou técnicas e equipamentos de ponta para estudar o retrato de Afonso de Albuquerque. Com recurso a técnicas como a microscopia e microanálise por exemplo, foi possível descortinar o que se escondia debaixo dos repintes mais recentes.
Tudo começou quando a equipa do museu radiografou no seu Laboratório para o Exame das Obras de Arte em 1953 a pintura e constatou que a imagem sofrera um repinte total. Verificado que estava que as barbas brancas não eram originais, estas foram removidas, seguindo o protocolo habitual de conservação e restauro, o que deixou a personagem com uma barba negra, muito mais curta. Por sua vez, o rosto estava virado para a direita e não para a esquerda. Mas não era só isto: o brasão subjacente revelava inequivocamente que aquele não era Afonso de Albuquerque, mas sim Lopo Soares de Albergaria, o vice-rei que lhe sucedeu, em 1515.
Da esquerda para a direita, as fases do retrato de Afonso de Albuquerque: chegada de Goa (1953); restauro no Museu Nacional de Arte Antiga (1955); novo repinte (1960); reflectrografia de infravermelhos, fluorescência de ultravioleta e raios X (todas em 2013).
O facto levantou um problema em que a veracidade histórica chocou com a ideologia política da época: o então ministro da Educação deu ordens a João Couto, director do MNAA, para que fossem devolvidas as barbas brancas a Afonso de Albuquerque, juntamente com o seu escudo de armas. As motivações apenas podem ser imaginadas, mas a verdade é que o historiador, embora contrafeito (e tentando argumentar contrariamente através de um parecer escrito), não teve outro remédio senão seguir as directivas da tutela. E assim a obra regressou a Goa, em 1960.
Era apenas o princípio da epopeia. Um ano mais tarde, em Dezembro de 1961, o exército da União Indiana invadiu Goa, Damão e Diu, aprisionando quase quatro mil militares e civis e criando uma situação diplomática extremamente complicada para Salazar.
A invasão do Estado Português da Índia em Dezembro de 1961 foi antecedida por pressões diplomáticas da União Indiana, pequenas escaramuças e protestos pacíficos, como o que retrata esta fotografia de 1954 (à direita), em Goa. O exército indiano viria a tomar as posições portuguesas com grande rapidez antes do Natal de 1961. Fotografia de James Burke/The Life Picture Collection/Getty Images
Corria o ano de 1962 e Jorge Jardim, empresário ágil e várias vezes apodado de agente secreto, reuniu com Adriano Moreira, à época ministro do Ultramar, para gizar a missão de libertação dos soldados e civis aprisionados na Índia. Já à despedida, acordada que fora a visita de Jardim ao imenso país do Índico, terá tido lugar uma última troca de impressões entre o agente secreto e o ministro. Jardim perguntou a Adriano Moreira se queria, para lá da negociação com vista ao regresso dos prisioneiros portugueses, algum item de Goa. Em tom jocoso, o ministro sugeriu que Jorge Jardim trouxesse o quadro de Afonso de Albuquerque.
Havia, porém, um percalço: alguém se enganara, e a pintura representava João de Castro.
Algum tempo depois, chegou a Lisboa uma encomenda. No interior, vinha acomodado um enorme painel de um vice-rei da Índia. Havia, porém, um percalço: alguém se enganara, e a pintura representava João de Castro (1545-1548) e não Afonso de Albuquerque. Mais tarde, após a revolução de 1974, o quadro foi devolvido à Índia por Mário Soares, num gesto de aproximação entre os dois países.
Fiel à sua palavra, e recorrendo não se sabe bem a que artimanhas, Jorge Jardim conseguiu posteriormente o quadro certo, atestado por uma insólita inscrição no verso da pintura, formalizando uma entrega tão “oficial” quanto improvável da mesma, atendendo a que os dois países se encontravam em conflito diplomático e sob grande tensão política.
Integrada na colecção do MNAA, a obra aí ficou por várias décadas, durante as quais a imagem de Afonso de Albuquerque, com as suas barbas brancas, ilustrou inúmeros manuais de História de Portugal.
Pormenor dos repintes da cabeça na obra que retrata Afonso de Albuquerque, durante a fase de restauro (em 1955). Nas reservas do Museu Nacional de Arte Antiga.
Em 2012, três investigadores juntaram esforços para lançar luz sobre esta obra e, ao mesmo tempo, demonstrar as possibilidades de investigação abertas por novas tecnologias disponíveis. Miguel Mateus é conservador-restaurador e trabalha há muito com Goa. Teresa Reis também é conservadora-restauradora e desenvolve uma tese de mestrado sobre a Galeria dos Vice-Reis e Governadores da Índia. O último elemento do trio é António Candeias, químico e director do Laboratório HERCULES da Universidade de Évora, além de coordenador científico do Laboratório de Conservação e Restauro José de Figueiredo. Com a tecnologia de ponta disponível nestas unidades, tornou-se possível realizar um estudo aturado da pintura desta figura da história de Portugal.
O facto levantou um problema em que a veracidade histórica chocou com a ideologia política da época.
Os investigadores coordenaram as primeiras análises à colecção do MNAA, que inclui Francisco de Almeida (1505-1509), Afonso de Albuquerque (1509-1515) e Francisco de Mascarenhas (1581-1584, este nas reservas do museu). Desde logo, percebeu-se que o retrato de Afonso de Albuquerque levantaria sérias questões, nomeadamente o que fazer com a informação recolhida: deveria manter-se a pintura como está, perpetuando uma iconografia falsa, ou repor a veracidade histórica, o que obrigaria a reescrever uma parte da história de arte portuguesa?
Os conservadores-restauradores Teresa Reis e Miguel Mateus, analisam minuciosamente e comparam os resultados dos testes efectuados no quadro de Afonso de Albuquerque.
O objectivo final do projecto é mais abrangente do que o debate em torno da idoneidade da representação de Afonso de Albuquerque. Utilizando este quadro como caso de estudo, Mateus, Reis e Candeias pretendem mais tarde analisar toda a galeria, que se encontra sob a tutela do Archaeological Survey of India, recorrendo a equipamento móvel para exames in situ, uma vez que não é de todo viável transportar esse vasto acervo para um laboratório.
Actualmente, o desenvolvimento de novas tecnologias e equipamentos permite aos investigadores estudar de forma exaustiva as peças in situ.
O HERCULES dispõe dessa capacidade, incluindo equipamentos de radiografia digital e reflectografia de infravermelhos e equipamentos de análise como espectroscopia de infravermelhos e espectrometria de fluorescência de raios X, para além da recolha de amostras para análise posterior em Évora, com microdifracção de raios X e outras técnicas de microscopia e microanálise.
Estas metodologias permitem “ver” o que existe debaixo dos actuais repintes e compreender a técnica pictórica, de uma forma impossível até há pouco. Se se concretizar, o projecto bilateral Portugal-Índia poderá incluir formação de técnicos indianos em Goa, uma vez que, a longo prazo, tanto estas como as outras obras necessitarão de restauros regulares, dado o clima húmido e quente do subcontinente e a enorme quantidade de retratos que existem na Galeria dos Vice-Reis.
É perfeitamente possível que a figura do vice-rei ainda esteja integrada na galeria de Goa, oculto sob outro retrato.
Já de malas feitas para Goa, onde envidará esforços para fazer avançar o protocolo com as entidades indianas, Miguel Mateus, barba grisalha a condizer com a do quadro, que perscruta a escassos centímetros, com os olhos semicerrados, explica: “Este projecto entre os dois países tem enorme importância histórica e científica. A sua conclusão pode talvez permitir responder a uma dúvida que entretanto se levantou: se ‘o Afonso’ do Museu Nacional de Arte Antiga não é o verdadeiro Afonso de Albuquerque, onde se encontrará o quadro original? Afinal, a iconografia da época representou-o de armadura completa e, sobretudo, de dedo em riste, e não com a mão segurando um bastão.” É perfeitamente possível que a figura do vice-rei ainda esteja integrada na galeria de Goa, oculto sob outro retrato.
As novas metodologias aplicadas ao projecto permitem desvendar o que se encontra nas camadas de pintura subjacentes e dessa foma compreender a técnica pictórica inicial.
Este é, aliás, o ponto de partida para procurar uma personagem que corresponda, ainda que vagamente, aos dois pressupostos, entre os vários retratos da galeria, todos eles repintados em vários momentos ao longo de quatro séculos. Segundo Teresa Reis, jovem investigadora de olhar luminoso, cuja tese procura deslindar esta história, muitas alterações foram feitas pela mão de Manuel Gomes da Costa.
Este aguarelista entusiasta, que passou fugazmente pela Presidência da República em 1926, dedicou-se, no fim do século XIX, em missão militar em Goa, a restaurar, com grandes liberdades criativas, os retratos dos vice-reis, adensando a dúvida e a confusão que reina sobre as identidades das várias dezenas de personagens nelas presentes. Dos 75 painéis expostos em Goa, 42 apresentam a célebre legenda a vermelho “Restaurado por Gomes da Costa em 1894”.
Miguel Mateus observa o retrato de Francisco de Mascarenhas, também ele originário da Galeria dos Vice-Reis em Goa. A pintura, que ficou em Lisboa, não está patente ao público, mas é um dos três retratos de vice-reis portugueses guardados em Portugal.
Numa narrativa com vários nós e becos sem saída, que liga umbilicalmente a arte, a história e a tecnologia, algumas questões podem encontrar resposta, quase 53 anos depois da tomada do enclave pelas tropas da União Indiana. Pese embora Lisboa distar meio mundo de Goa, os laços comuns mantêm-se.
Afinal, onde está o retrato de Afonso de Albuquerque?
De frente ao Tejo, no Museu, o dia termina com urgência. O sol vai tingindo de ouro as águas nesse mar da Palha de onde, há cinco séculos, as caravelas portuguesas partiram à descoberta de uma terra incógnita. Nas salas do Museu Nacional de Arte Antiga, os focos apagam-se, deixando reis, santos e cavaleiros na escuridão. Em surdina, chega-me ao ouvido o sussurro quase insidioso de uma pergunta, agora que um segredo com vários séculos foi revelado e novo mistério nasceu: afinal, onde está Afonso?
O conservador-restaurador Miguel Mateus, retratado várias vezes na reportagem, faleceu em 2015. Esta reportagem foi publicada originalmente na edição de Junho de 2014 (nº 159).