Para aproveitarmos ao máximo a vida urbana, teremos de controlar a nossa paixão pelo automóvel.

O objectivo das cidades é reunir as pessoas. No século XX, afastámo-las. Certo dia, no ano passado, Peter Calthorpe levou-me a passear por alguns dos destroços dessa política. Queria mostrar-me os seus planos para transformar de novo as cidades num todo coeso. 

Em finais da década de 1970, este arquitecto participou no projecto de um dos primeiros edifícios de escritórios com eficiência energética que ainda hoje se encontra de pé, em Sacramento, na Califórnia (EUA). Pouco depois, porém, já ampliara os seus interesses. “Se quisermos mesmo obter melhores resultados ambientais e sociais, não basta dar forma a um único edifício”, diz. “Temos de dar forma a uma comunidade.” 

Actualmente, Peter chefia uma pequena mas influente empresa de design urbano, a Calthorpe Associates. No seu escritório de Berkeley, a carta de estatutos do Congresso para o Novo Urbanismo está emoldurada e pendurada na parede, condenando “a generalização do alastramento urbano desgovernado”. Peter Calthorpe contribuiu para a formação do grupo em 1993. A luta é demorada e ainda há muito caminho para percorrer. 

Esperámos pelo final da manhã, até que o trânsito acalmasse um pouco, e depois entrámos no Tesla azul-escuro do arquitecto, rumando para Silicon Valley, a sul de São Francisco, na ponta oposta da metrópole. 

“O problema dos ambientes urbanos orientados para o automóvel é que, não havendo escolha, a única forma de nos locomovermos é de automóvel e, de repente, já os utilizamos em excesso”, disse durante o trajecto.  

“Uso excessivo para o clima, excessivo para as finanças, excessivo para a comunidade em termos de trânsito, excessivo em termos de tempo consumido. Seja qual for o indicador, o seu valor é negativo. A recusa de caminhar é uma receita garantida para a obesidade. A qualidade do ar alimenta as doenças respiratórias.”

Na década de 1990, Peter Calthorpe ajudou a convencer a cidade de Portland a construir uma linha de metropolitano de superfície em vez de outra auto-estrada e a aglomerar as habitações, os escritórios e os espaços comerciais em redor. “Desenvolvimento orientado pelos transportes” foi o lema que selou a sua reputação como visionário urbano. Em Pequim, encontrei-me com um cientista ambiental que já guiou muitos dirigentes chineses em visitas a Portland. Não se tratou tanto de uma ideia nova, mas sim de apelo à “reinvenção dos velhos bairros suburbanos servidos por eléctricos, onde existiam fabulosas ruas de lojas: locais onde se podia caminhar e que estavam ligados pelos transportes”, explicou Peter Calthorpe.

Sobre a ponte, apesar de termos saído tarde, o trânsito residual ainda nos atrasou.

De acordo com a utopia de Peter Calthorpe, na China, as cidades parariam de crescer de modo voraz e encontrariam formas melhores de acolher a natureza dentro de si. Cresceriam em aglomerados densos e em quarteirões pequenos, onde os residentes pudessem deslocar-se a pé ou numa rede de transportes rápidos. Estas cidades do futuro deixariam de separar os locais de trabalho, de habitação e de compras, como sucede com o modelo actual que obriga ao uso do carro para as deslocações. 


 

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Deixariam de separar ricos e pobres, novos e velhos, brancos e negros, como acontece no modelo actual de desenvolvimento urbano, sobretudo nos EUA. Conduzindo menos, asfaltando menos, os habitantes da cidade aqueceriam menos a atmosfera e o planeta. O processo abrandaria as alterações climáticas que ameaçam tornar algumas cidades inabitáveis já neste século.

Segundo Peter Calthorpe, não são necessárias belezas arquitectónicas nem tecnologia futurista. Precisamos, acima de tudo, de corrigir os erros e os equívocos do passado recente.

A sul do aeroporto de São Francisco, Peter Calthorpe saiu da auto-estrada. Dirigíamo-nos a Palo Alto, onde ele cresceu na década de 1960, mas a nossa verdadeira intenção era percorrer El Camino Real, a estrada outrora percorrida pelos colonos e padres espanhóis. “Era o velho caminho da Missão”, disse ele. “E agora, atravessa o centro de Silicon Valley numa zona de péssima construção de baixa densidade.”

Pequenas aldeias desfilavam. Passámos por lojas de pneus, empresas de mudanças e motéis baratos. El Camino é uma das mais antigas vias comerciais do Oeste dos EUA e não é a mais feia. Para o arquitecto, o seu interesse não se deve ao facto de ser inestética, mas às oportunidades que oferece. Não vivem muitas pessoas ao longo da estrada porque, no essencial, a zona foi quase exclusivamente planeada para uso comercial. No entanto, Silicon Valley precisa desesperadamente de áreas residenciais. Dezenas de milhares de pessoas deslocam-se de automóvel pelo Norte da Califórnia. Em Mountain View, sede da Google, centenas de pessoas chegam a viver dentro do automóvel, em parques de estacionamento.

Ao longo dos 70 quilómetros de El Camino entre São Francisco e San José, há 3.750 lotes comerciais ocupados por uma amálgama diversa de edifícios, na sua maioria com um ou dois andares. Essa informação está disponível graças ao software desenvolvido pela equipa do arquitecto, o UrbanFootprint, que recorre a uma base de dados organizada por lotes a nível nacional e a modelos analíticos para imaginar visões futuristas das cidades. Se El Camino estivesse flanqueado por edifícios de apartamentos com três a cinco pisos, com lojas e escritórios no piso térreo, teria capacidade para alojar 250 mil novos fogos. Seria possível resolver a escassez de habitação e embelezar o local em simultâneo, reduzindo as emissões de carbono, o consumo de água e o desperdício de horas gastas pelas pessoas.

Nessa “faixa de urbanismo”, as crianças conseguiriam novamente ir a pé para a escola. Os pais poderiam caminhar até à mercearia e deslocar-se de bicicleta ou a pé até ao seu local de trabalho ou usar um transporte público. Os transportes públicos seriam o elemento decisivo: teria de ser omnipresente e rápido. Mas já não seria uma linha de metropolitano de superfície, diz Calthorpe: essa solução tornou-se demasiado cara e há tecnologia mais adequada a caminho.

Há um factor temido por muitos peritos: são os veículos autónomos sem condutor (ou VA). Na opinião de Peter Calthorpe, se a responsabilidade pelos VA ficar a cargo dos particulares ou de empresas como a Uber ou a Lyft, eles irão metastizar a expansão urbana. A tecnologia terá de ser controlada de modo a beneficiar as comunidades. No centro de El Camino, em estradas reservadas de três faixas, ele poria a circular um serviço de transporte com carrinhas autónomas. Chegariam ao seu destino com intervalos de poucos minutos, ultrapassando-se à vontade e fazendo paragens ocasionais porque uma aplicação informática agruparia os passageiros por destino. Nas faixas protegidas, segundo a visão de Peter Calthorpe, os pequenos robots não atropelariam as pessoas e a tecnologia não dominaria o nosso mundo com as suas consequências indesejadas.

Peter Calthorpe é um hippie solitário, mas nunca renegou a tecnologia. Em finais da década de 1960, leccionou numa escola secundária nas montanhas de Santa Cruz. O vale que corria lá em baixo ainda não recebera a alcunha de “silício”. Ainda se chamava Vale das Delícias do Coração, coberto de pomares. No sopé das montanhas, estava em construção uma auto-estrada interestadual para aliviar o trânsito em El Camino. “Naquele tempo, nem sequer conseguíamos ver o vale”, recorda. “Era apenas um mar de poluição atmosférica.
A atmosfera só estava límpida quando se passava algo errado. Hoje há menos poluição, mas a cidade continua com problemas e, nos dias bons, esses problemas ainda parecem solucionáveis. 

Quando o Congresso para o Novo Urbanismo organizou a sua assembleia geral anual em 2018 na cidade de Savannah, o orador principal foi Jan Gehl, um designer urbano de Copenhaga. Este octogenário visionário é venerado pelo seu conhecimento simples: defende que os arquitectos e os designers urbanos deveriam construir cidades para as pessoas e não para o automóvel. Deveriam prestar atenção à vida entre os edifícios porque esta é essencial para o nosso bem-estar. Jan passou décadas a observar o modo como as pessoas se comportam nos espaços públicos, recolhendo dados sobre que tipo de espaços incentivam a vida cívica e quais tendem a ser desinspiradores e vazios.


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“Existe grande confusão sobre a maneira de apresentar a cidade do futuro”, disse-me, enquanto estávamos sentados na esplanada de uma praça, à sombra de carvalhos. De tempos a tempos, ouviam-se os cascos de um cavalo, puxando uma carruagem cheia de turistas. “Sempre que os arquitectos e os visionários tentam pintar um cenário, o resultado é frequentemente algo que ninguém gostaria de ver por perto.”

Ligou o seu computador portátil e mostrou-me um sítio da Ford Motor Company na Internet, chamado City of Tomorrow (Cidade do Futuro). A imagem mostrava uma paisagem composta por torres e avenidas verdes, com seres humanos dispersos e sem sinais de interacção. “Veja como é divertido passear ali”, ironizou. “Existem apenas alguns reféns no meio dos carros autónomos.”

“Torres no parque” é o nome que os Novos Urbanistas dão a este tipo de design: um legado da arquitectura modernista, cujo padrinho foi Le Corbusier. Em 1925, o arquitecto propôs que grande parte do centro de Paris a norte do Sena fosse arrasada e substituída por uma grelha de 18 torres de escritórios idênticas, de vidro, com 200 metros de altura e distando entre si 400 metros. Os peões poderiam caminhar em “grandes relvados”, admirando “os prismas translúcidos que parecem flutuar no ar”. Os automóveis deslocar-se-iam velozmente em vias rápidas elevadas. Na opinião de Le Corbusier, o automóvel tornara obsoletas as ruas de Paris, “este mar de luxúrias e de rostos”.

Tal como a maior parte das ideias de Le Corbusier, o Plan Voisin nunca foi construído. Mas teve uma influência global, visível em projectos de habitação famosos nos centros urbanos dos EUA e nos parques empresariais que marcam a paisagem suburbana. Perdura igualmente nas dezenas de cidades inteiramente novas actualmente em fase de planeamento e de construção em todo o mundo, sobretudo na Ásia. Muitas dessas cidades afirmam dar prioridade aos peões e aos transportes públicos, diz a geógrafa urbana Sarah Moser, mas na verdade não o fazem. Putrajaya, a nova capital administrativa federal da Malásia, é um bom exemplo: metade encontra-se reservada a espaços verdes. No entanto, como Sarah salienta, “demora muito tempo a andar a pé de um edifício para o outro”.

A influência de Le Corbusier sente-se especialmente nos novos centros urbanos construídos na China ao longo das últimas quatro décadas. Peter Calthorpe, orador na conferência de Savannah, argumentou que esses regimes com torres de apartamentos idênticas, alinhadas ao longo de “superquarteirões” com 400 metros de comprimento, partilham características comuns com os subúrbios americanos, apesar de parecerem diferentes.

“Existe um único problema: a expansão da área urbana.” A essência da expansão, explica, é “um ambiente desligado”. Os moradores nos arranha-céus de um parque podem encontrar-se tão desligados dos vizinhos e das ruas lá em baixo, impossíveis de percorrer a pé, como quem vive nos becos sem saída suburbanos. Nas novas cidades chinesas, as ruas estreitas e flanqueadas por lojas deram lugar a avenidas de dez faixas, cheias de automóveis. “O tecido social e económico está a ser destruído”, resumiu o arquitecto. 

Milhões de soldados regressavam a casa da Segunda Guerra Mundial e encontravam cidades sobrepovoadas e esgotadas. As novas famílias precisavam de um sítio onde viver. A condução até aos subúrbios parecia libertadora e moderna. Na China, a expansão da área urbana também aconteceu por boas razões. Na Praça do Povo, em Xangai, visito uma exposição sobre a história da cidade com Pan Haixiao, um investigador de transportes da Universidade de Tongji. 

Quando ele aqui chegou como aluno, em 1979, o trânsito já era horrível devido à “malha urbana muito fina”, a rede densa de ruas estreitas. Naquele tempo, Pan poderia demorar duas horas da baixa à universidade, a cerca de seis quilómetros.

“Não seria mais rápido ir a pé?”, perguntei.

“Nessa época, não comíamos o suficiente. Se fôssemos a pé, ficávamos cansados. Andávamos sempre com fome no meu tempo de estudante”, respondeu.


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Nos 40 anos decorridos desde que Deng Xiaoping decretou a “reforma e abertura” da China, ao mesmo tempo que a sua população disparava para 1.400 milhões, o país retirou da pobreza centenas de milhões de pessoas. E, no essencial, conseguiu-o deslocando-as das zonas rurais para postos de trabalho fabris nas cidades. A urbanização estonteante da China é ainda mais fabulosa por ter sido precedida da Revolução Cultural de Mao Tsé-Tung, que enviara milhões no sentido contrário – das cidades para o campo.

“Depois da Revolução Cultural, o primeiro passo consistiu em garantir que todos tivessem uma casa e alimento suficiente”, afirmou He Dongquan, investigador residente em Pequim.

Quando o ímpeto urbanizador começou, iniciou-se a corrida à construção de apartamentos.
A forma mais rápida de fazê-lo era criar rapidamente superquarteirões com torres iguais. Os incentivos financeiros eram enormes e não apenas para os construtores: as administrações municipais chinesas podem obter metade das receitas (ou mais) através da venda de direitos sobre a terra. Os aspectos agradáveis do design urbano foram ignorados – embora, seguindo as directrizes do feng shui, as torres estivessem por norma ordeiramente alinhadas e viradas a sul.

À semelhança dos subúrbios norte-americanos que ajudaram a concretizar os sonhos de milhões, os resultados foram fantásticos… até certo ponto. A família chinesa média tem agora cerca de 33 metros quadrados de espaço por pessoa, o quádruplo da média existente há duas décadas. No entanto, o espaço existente entre os edifícios não é convidativo e, por isso, as pessoas não desfrutam deles – resumiu o meu interlocutor.

“Toda a gente se sente só e nervosa”, disse He Dongquan. Temendo a criminalidade, os moradores exigem vedações, transformando os quarteirões em condomínios fechados. A cidade tornou-se ainda menos amigável e apetecível de percorrer a pé.

Entretanto, nos últimos 20 anos, o número de automóveis particulares na China passou para quase 190 milhões. Pequim tem agora sete estradas circulares concêntricas em redor da Cidade Proibida. Setenta por cento do investimento da infra-estrutura de transportes em cidades de rápido desenvolvimento destina-se ao automóvel, disse Wang Zhigao, director do programa de cidades com baixo carbono da Energy Foundation China, uma organização sem fins lucrativos com financiamento internacional.

Os transportes públicos são excelentes, mas nem assim os residentes desistem de andar de carro. Parte do problema, em Pequim e noutras cidades, é a forma da expansão urbana, o legado de todos os anos de construção apressada. “Se não cuidarmos bem da forma urbana, teremos de conviver com ela durante centenas de anos”, disse Wang. “Se continuarmos a criar um ambiente propício à condução, as pessoas continuarão a usar o automóvel e continuará a haver muito carbono, mesmo com veículos eléctricos.” A China continua a gerar a maior parte da sua electricidade a partir de carvão. 

Há uma década, Wang e He tomaram conhecimento de um novo projecto chamado Chenggong, na cidade de Kunming, no Sudoeste da China. Planeada para 1,5 milhões de habitantes, era uma nova cidade chinesa típica: a rua principal tinha cerca de oitenta metros de largura, de um passeio a outro, e os edifícios distavam 180 metros entre si. “Contactámos Peter e outros especialistas e eles mostraram-se chocados”, recorda Wang. “Argumentaram que esta rua não seria para seres humanos.” 

A Energy Foundation pediu a Peter Calthorpe e a um arquitecto do gabinete de Jan Gehl para conversarem com funcionários da administração municipal. “Nessa primeira palestra, eles começaram a aceitar as ideias”, disse Wang. Por fim, a Energy Foundation pagou a Peter Calthorpe para refazer o plano de Chenggong. “Já estava tudo planeado e eles tinham começado a construir as infraestruturas”, recorda o arquitecto. “Já tinham traçado os superquarteirões.” Nos sítios onde ainda era possível, ele dividiu cada um em nove quadrados, com ruas mais pequenas. Colocou os edifícios mais perto da rua, com lojas no piso térreo, por baixo de escritórios e apartamentos.

O projecto, ainda em construção, tornou-se o primeiro de muitos desenvolvidos na China por Peter Calthorpe e um jovem colega seu, Zhuojian (Nelson) Peng, e captou a atenção do Ministério Chinês da Habitação. Reforçou a mudança de atitude que já estava a ganhar forma na mente dos planeadores urbanos chineses e que foi ratificada de um modo surpreendente. Em 2016, o Comité Central do Partido Comunista e o Conselho de Estado, os mais altos órgãos do Estado, emitiram um decreto: doravante, as cidades chinesas deveriam preservar a terra agrícola e o seu património, criar quarteirões mais pequenos, estreitos e sem vedações, mais amigos dos peões. Teriam também de se desenvolver com base em transportes públicos. Em 2017, estas directrizes foram incorporadas num manual para os planeadores chineses, chamado Cidades-Esmeralda. A maior parte do manual foi redigida pela Calthorpe Associates.

“Ficámos admirados”, admitiu Zou Tao, director do Instituto de Planeamento e Design Urbano Tsinghua Tongheng, em Pequim. “Há mais de dez anos que argumentamos que esse é o caminho. Ainda estamos a habituar-nos e a perceber como concretizá-lo no mundo real.”


 

A urbanização chinesa é um ponto de viragem. O governo pretende deslocar para as cidades um número suplementar de quase trezentos milhões de habitantes até 2030. A China enfrenta, simultaneamente, uma escassez de habitação a preços acessíveis e uma bolha imobiliária, pois muitas pessoas investem em apartamentos e mantêm--nos fora do mercado, disse o perito em planeamento Wang Hao, que trabalhou 20 anos na Academia Chinesa de Planeamento e Design Urbano. “Metade das pessoas mudaram-se para a cidade e a outra metade não tem dinheiro para fazê-lo”, comentou. O governo chinês está a tentar projectar as cidades de forma mais humana e sustentável e a deflacionar a bolha do imobiliário sem prejudicar a economia. Ninguém sabe como fazê-lo.

O teste decisivo poderá ocorrer em Xiongan, uma extensão de zonas húmidas com 1.770 quilómetros quadrados, que inclui um lago poluído, cerca de cem quilómetros a sudoeste de Pequim. Em Abril de 2017, o presidente Xi Jinping anunciou que tencionava construir ali uma nova cidade. Os objectivos são alojar cinco milhões de pessoas e aliviar o trânsito e a poluição em Pequim. No Verão passado, quando visitei o local com He e vários peritos em planeamento urbano, a construção limitava-se ainda a um edifício provisório para a câmara municipal. Turistas chineses passeavam pelas ruas arborizadas. Um autocarro autónomo circulava, vazio, para fins experimentais.

Xi declarou que Xiongan é um projecto para o milénio. Um vídeo no centro de visitantes documenta uma cidade extremamente verde, com quarteirões pequenos de edifícios baixos. O prazo de conclusão é 2035 (uma eternidade, para os padrões chineses) mas o plano aprovado em Dezembro sugere que seguirá as directrizes do livro das Cidades-Esmeralda. Peter Calthorpe espera vir a projectar parte desta nova cidade. 

“Tentamos resolver todos os problemas urbanos chineses”, disse uma arquitecta paisagística que conheci, mas que prefere não ser identificada. “Não sabemos ao certo como consegui-lo. Este local vai ser uma experiência.”

Na manhã seguinte, He levou-me a visitar uma experiência mais espontânea: um bairro artístico chamado 798, na região nordeste de Pequim. Esperámos até meio da manhã, aguardando pela acalmia das multidões que se deslocam de metropolitano. A estação mais próxima do 798 ficava a cerca de um quilómetro e meio. Felizmente, as bicicletas partilhadas de aluguer tinham invadido recentemente a capital. Alugámos duas e pedalámos.

Era um final de tarde de Verão quente, com um “céu azul encomendado”. Havia chefes de Estado africanos na cidade e por isso o governo chinês mandara encerrar todas as fábricas poluentes dos arredores de Pequim, contou He. O distrito 798 ergue-se no local de antigas fábricas que costumavam localizar-se fora da cidade, antes de serem engolidas por ela. Quando o governo encerrou o complexo na década de 1990, os artistas começaram a ocupar os edifícios baixos de tijolo. Gradualmente, formou-se um bairro de galerias, bares e lojas. Os quarteirões são pequenos porque tinham sido planeados para um complexo fabril.

“Isto é parecido com Portland”, disse He. “Olhamos sempre para Portland como um bom exemplo.” Não será fácil anular os efeitos de 30 anos de construção de superquarteirões. “Tendo em conta a escala e os desafios económicos, vai demorar 20 a 30 anos. Vemos pontos, pequenas peças aqui e além. Esperemos que, ao longo do tempo, toda a paisagem urbana vá mudando.”

Também na paisagem dos EUA há ilhas de esperança a emergir no oceano da malha urbana expandida. Ellen Dunham-Jones, arquitecta e projectista urbana em Atlanta, uma das maiores cidades do mundo, mantém uma base de dados com informação sobre estas cidades. Em 2009, quando ela e June Williamson escreveram o livro “Retrofitting Suburbia” [sem tradução portuguesa], analisaram cerca de oitenta exemplos de espaços suburbanos em processo de reconversão, na maioria dos casos ao modelo urbano – ou seja, mais denso e amigo dos peões. Actualmente, o número de projectos desta base de dados cresceu para 1.500. 

À medida que as compras na Internet eliminam centenas de centros comerciais, cerca de noventa estão prestes a “transformarem-se na baixa que os seus subúrbios nunca tiveram”, comenta.

As forças do mercado impulsionam a transição. Agora, os jovens procuram um estilo de vida urbano e, por isso, muitos dos progenitores ficam para trás, nos subúrbios. Nas vilas em redor de Atlanta, como noutros locais dos EUA, “as ruas comerciais foram praticamente eliminadas na década de 1970. Agora que os centros comerciais estão a morrer, essas ruas regressam”, disse Ellen.

Em Duluth, 40 quilómetros a nordeste de Atlanta, visitei uma. Esta era uma área rural até o crescimento urbano a atingir como um maremoto, contou Chris McGahee, director do desenvolvimento económico de Duluth. Entre 1970 e 2008, a população do condado aumentou drasticamente de 72 mil para 770 mil pessoas. Duluth cresceu de 1.800 para 25 mil. “Saímos de casa dos pais para a universidade e, quando voltamos, não encontramos nada daquilo que conhecíamos”, resumiu Chris. “Só na baixa de Duluth é que há uma fileira de oito edifícios com mais de cem anos. Por qualquer razão, sobreviveram.”

Chris McGahee começou a trabalhar em Outubro de 2008, no auge da crise financeira. A adversidade gerou oportunidades. “A recessão proporcionou-nos terrenos a preços acessíveis”, comentou. Nos anos seguintes, a vila conseguiu adquirir 14 hectares em redor daqueles oito edifícios, junto da linha férrea. Os edifícios não se distinguiam. Eram meras relíquias de tijolo do final do século XIX, mas tinham charme e carga emocional.

São hoje o núcleo central de um bairro de restaurantes, com uma sala para concertos. Em redor dessa rua comercial, a vila está a trabalhar na construção de 2.500 unidades de habitação com uma distância máxima de dez minutos a pé entre si. As moradias em banda estão a vender-se antes da sua conclusão, disse Chris. 

O mais ambicioso projecto de revitalização da região de Atlanta é o da ferrovia BeltLine: trata-se de um esforço para dar novo fôlego a um circuito de ferrovias abandonadas com 35 quilómetros, em redor do centro da cidade. Cinco troços ferroviários são agora um caminho asfaltado para caminhar e correr, andar de bicicleta e de skate.

“Em termos económicos, a história é de enorme sucesso”, disse Ryan Gravel, a primeira pessoa a imaginar o BeltLine em 1999 para o seu mestrado em planeamento urbano. A cidade investiu cerca de quatrocentos milhões de euros no projecto e estimulou 3,5 mil milhões em promoção imobiliária, sobretudo na zona oriental da cidade. No local onde o Eastside Trail atravessa a Avenida Ponce de León, por exemplo, um antigo armazém da Sears-Roebuck transformou-se no Mercado Municipal de Ponce, com zona de restauração, centro comercial e complexo de escritórios. Uma fábrica da Ford que em tempos fabricou o Modelo T foi reconvertida em lofts

A ideia de Ryan Gravel era a BeltLine ligar de forma mais coesa a cidade fragmentada: deveria também tornar-se uma linha de eléctrico, capaz de estimular o desenvolvimento económico e a habitação acessível nos locais onde estes são mais necessários – os bairros de minorias nas zonas sul e oeste da cidade. A autoridade de transportes de Atlanta, denominada MARTA, construiu uma pequena linha de eléctrico, mas o seu plano de expansão não prevê a construção do circuito inteiro de 35 quilómetros. Ryan teme que “a promessa nunca venha a tornar-se realidade”.


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Ryan Gravel cresceu em Chamblee, um subúrbio a nordeste, permanentemente condicionado pelo trânsito na I-285. “Era acrescentada uma faixa nova praticamente todos os anos”, lembra. Quando frequentava a faculdade, passou um ano em Paris, onde descobriu um metropolitano que funcionava e a alegria de deambular pelas ruas sem destino. “Aprendi a andar a pé em Paris”, disse. Regressou a Atlanta decidido a fazer parte da sua mudança.

Partindo do Mercado Municipal de Ponce, caminhámos para sul até uma antiga fábrica de telefones, onde Ryan planeia abrir um café e um fórum onde as pessoas se possam reunir para conversarem sobre a Atlanta que gostariam de ter. Corredores, ciclistas e peões passavam por nós no trilho. A linha de comboio sempre fora uma barreira física a separar bairros e agora é um sítio que liga as pessoas. 

“Isso é bonito”, resumiu Ryan.

Há um século, quando a fábrica da Ford na Avenida Ponce de León começava a produzir o Modelo T, Atlanta estava a expandir-se ao longo das linhas de eléctrico. Muitas das principais cidades dos EUA faziam o mesmo, estendendo tentáculos de ferrovias até às zonas rurais e construindo aldeias em redor das estações. Após a Segunda Guerra Mundial, Los Angeles tinha a maior rede ferroviária do mundo, com mais de 1.600 quilómetros.

“É isso que cria a forma urbana”, disse Joe DiStefano, colega de longa data de Peter Calthorpe que gere a empresa UrbanFootprint. “Berkeley é um local onde se pode caminhar porque a forma urbana foi gerada pelo investimento num sistema de eléctricos.” Mesmo em Los Angeles, a maioria dos sítios ficava a uma curta caminhada da paragem de um transporte público, até a cidade e o país mudarem e “até o automóvel nos possibilitar viagens mais longas – o automóvel e o investimento nas infra-estruturas que permitiam a sua circulação”, comentou Joe.

Los Angeles transformou-se no paradigma da cultura automóvel. Actualmente, porém, é difícil sair dessa armadilha e regressar ao futuro. Desde 2008, os eleitores do condado de Los Angeles aprovaram duas vezes pequenos aumentos no imposto sobre as vendas para subsidiar uma expansão dos transportes públicos – em parte porque esperavam que ele retirasse veículos das
auto-estradas. “Temos um trânsito mortífero”, disse Therese McMillan, directora de planeamento da Metro, a autoridade dos transportes. A linha de metropolitano de superfície Expo para Santa Monica foi concluída em 2016, a linha de metropolitano Purple está a ser ampliada para 14,5 quilómetros, desde a baixa da cidade até perto da UCLA, e está a ser planeada outra linha para sudeste.

Os transportes públicos não vão, por si, resolver o problema de Los Angeles: no ano passado, o número de utentes até diminuiu. “A condução rodoviária é demasiado barata e as casas são demasiado caras”, disse Michael Manville, perito em planeamento urbano da UCLA. As pessoas têm de pagar para usar os transportes públicos, mas não para conduzir na auto-estrada nem para estacionar na maioria dos sítios. Entretanto, uma crise no preço da habitação causada pela gentrificação e pela resistência civil à habitação multifamiliar empurra as comunidades com baixos rendimentos para as franjas da metrópole, onde os transportes públicos são escassos.

Está em curso uma mudança: em Santa Mónica, conheci o arquitecto Johannes van Tilburg, projectista de dez mil unidades de habitação junto de linhas de transportes públicos nos últimos 15 anos. Poderá a malha urbana de uma cidade em expansão mudar?

“Acho que a resposta é um sim categórico”, diz Joe DiStefano. Demorámos apenas 50 anos a arruinar uma forma urbana pedonável que durara milénios, comentou. Podemos desfazê-lo noutros 50 anos. Joe DiStefano trabalhou com Peter Calthorpe no plano para El Camino. “Esse corredor é replicável”, afirmou. Existe essa oportunidade pelo país fora, a mesma oportunidade para criar cidades pedonáveis e interligadas para alojar uma população crescente, sem cortar mais uma árvore ou asfaltar um único quilómetro adicional.

Antes disso, porém, haverá que contar com a próxima nova tecnologia explosiva. Em última análise, os veículos autónomos deveriam ser mais seguros do que os conduzidos por seres humanos. Deslocando-se em caravanas a 100 quilómetros por hora, quase em contacto com os pára-choques uns dos outros, podem aumentar a capacidade das vias rodoviárias e reduzir o espaço necessário para estacionamento. No entanto, segundo a mesma lógica, também podem aumentar dramaticamente o número de quilómetros percorridos por veículo: Uber e Lyft robóticos vagueiam vazios pela metrópole 24 horas por dia, à espera de um cliente e os proprietários de veículos autónomos particulares deixam-nos a circular enquanto vão às compras. Por fim, deveremos ter em conta o novo ímpeto que os motoristas robóticos poderiam injectar na expansão urbana. Se o seu automóvel se transformar num escritório, ou num quarto, que se conduz sozinho, qual a distância que estaria disposto a percorrer nele?

E se o seu carro fosse um avião? Num hangar a sul de San José, tive um vislumbre de um futuro que talvez não esteja muito distante. O hangar pertence a uma empresa chamada Kitty Hawk e continha quatro pequenas avionetas com alegres fuselagens amarelas. Cada asa tinha seis propulsores eléctricos apontados para cima. A avioneta chama-se Cora e levanta voo como um helicóptero, deslocando-se graças a baterias. Tem dois lugares, nenhum dos quais para um piloto. O Cora pilota-se sozinho. Um piloto em terra controla a viagem, assumindo remotamente os comandos caso se torne necessário.

Fred Reid, antigo director-geral da Virgin America, que supervisionou o Cora até ao início deste ano, explicou a lógica subjacente aos aviões autónomos. Começou por me mostrar um vídeo do trânsito de Los Angeles. “Não há dúvida de que isto não só vai acontecer como tem de acontecer”, afirmou. A Kitty Hawk tem numerosos concorrentes.

O mercado inicial do Cora seria como táxi aéreo, disse. Uma pessoa chegaria ao aeroporto e um Cora erguê-la-ia 300 metros acima do trânsito, voando numa rota predeterminada. Relativamente barato, disse, teria um custo mais aproximado ao de um Uber Black do que ao de um helicóptero. Eléctrico, seria silencioso e relativamente ecológico. Além disso, acrescentou Reid, “tentamos fazer aviões bonitos”. Ele imagina milhares deles nos céus da cidade.

Creio que eu não hesitaria em recorrer a esta solução, mas como seria ter milhares destes veículos a zunir pelo céu? Estamos a inventar uma nova tecnologia com um potencial tão revolucionário como os automóveis. Que tipo de mundo criará?

“Vamos descobrir a maneira de o fazer”, respondeu Fred Reid.

Talvez sim. Mas talvez seja sensato pensar nisso primeiro. Não precisávamos de ter enlouquecido com os carros, permitindo que fossem eles a mandar na vida da cidade. Não precisávamos de ter arrancado todas as linhas dos eléctricos. Não precisávamos de nos esquecer que as cidades são construídas para as pessoas e não precisamos de fazê-lo novamente.

Quando Jan Gehl iniciou a sua carreira em 1960, Copenhaga também estava repleta de automóveis. Jan começou a trabalhar como arquitecto de tradição modernista, desenhando o tipo de edifícios que agora despreza, chamando-lhes “frascos de perfume” – composições esculturais, em vez de humanistas. No entanto, ele mudou de rumo e a sua cidade também. Copenhaga empenhou-se em tornar-se a melhor cidade do mundo para peões e ciclistas e está a consegui-lo. Dois terços de todas as viagens diárias fazem-se agora de bicicleta.

Isto não significa que as bicicletas sejam a solução. Significa que devemos pensar na forma das nossas cidades. “Acordar todas as manhãs e saber que a cidade está um pouco melhor do que ontem. Isso é bom quando temos filhos”, disse Jan. “Pense nisso… Os seus filhos terão um sítio melhor onde viver e os seus netos terão um sítio melhor onde crescer do que você teve quando era pequeno. Acho que deveria ser esse o objectivo.”