O correio, ansiosamente esperado, chega por fim a Alvapenha. “Há, de facto, poucas cenas tão animadas como a da chegada do correio e da distribuição das cartas numa terra pequena”, lembra o escritor Júlio Dinis, em A Morgadinha dos Canaviais (1868). A leitura dos sobrescritos é feita em voz alta à porta da pomposa Repartição dos Correios, onde um corte feito na porta destina-se à recepção das cartas. O carteiro, a custo, consegue romper entre a multidão até ao mostrador e pousa a mala. O director da repartição goza o seu momento, fazendo demorar propositadamente o anúncio de cada destinatário. Abre fleumaticamente o saco de cartas e despeja-o num cesto de vime. A população segue com os olhos cada movimento.
Inicia-se depois a leitura dos sobrescritos em voz lenta e fanhosa. “A cada nome proferido, erguia-se quase sempre uma voz, às vezes um grito. Estendia-se por cima das cabeças um braço e (…) alvorotava-se um coração. Outros, os não nomeados ainda, olhavam com ansiedade para o maço e cada vez mais se lhes assombrava o semblante.”
“– Aqui estou, será do meu António, senhor? – disse uma velha pobremente vestida.
– Será do seu António, será – respondeu o insensível funcionário. O que lhe posso dizer é que traz obreia preta.
A mulher, que já tremia ao receber a carta, deixou-a cair, ouvindo aquelas sinistras palavras.”
Museu das Comunicações
Na imagem, a mala-posta, primeiro serviço postal sobre rodas, embora ainda dependente de tracção animal, marcou o imaginário do século XVIII. Aguarela de Martins Barata.
Os correios e o seu papel no quotidiano desta quinta de Vila Nova de Gaia são centrais na acção desta obra literária, mas episódios como este reflectem um momento decisivo na história dos serviços postais portugueses. Estava então em aceleração o uso da ferrovia para distribuição postal, que daria um impulso significativo ao sistema e tornaria obsoletas as entregas a cavalo, em mão ou por mala-posta. Mas adiantamo-nos. Esta história começa, na verdade, muito antes.
Os correios e o seu papel assumem um papel central na acção de Morgadinha dos Canaviais, de Júlio Dinis.
O correio-mor
Desde que existe escrita (sobre suportes de madeira, argila, metal ou papel) existe correspondência e não é fácil datar a origem do correio na sociedade europeia. Algumas iluminuras medievais representam a transmissão de cartas, metáforas frequentes do segredo e da confidencialidade cortesã. No Reino de Portugal, seguramente que existiram mecanismos de fazer chegar as leis e determinações régias às comunidades urbanas. Cavaleiros com essa missão específica venciam as distâncias e entregavam a correspondência, vencendo os perigos e o mau estado dos caminhos.
Fernando Moura, um dos principais divulgadores da história do correio em Portugal, acredita mesmo que existiram, na Idade Média, pelo menos três processos correntes de transmissão de informação à distância – por escudeiros da confiança do rei, através de membros do clero nas suas deslocações entre paróquias e provavelmente entre os membros da Universidade de Coimbra e os seus correspondentes nas academias de Lisboa e Porto. Também os almocreves poderiam ser portadores de mensagens privadas nas suas deslocações, mas, até ao século XVI, não existiu um sistema regular, fiável e público de transmissão de mensagens.
Em Novembro de 1520, no auge da Expansão Marítima e com o reino já disperso por quatro continentes, Dom Manuel I promulgou a carta régia que fundou o serviço postal. Nomeou para tal Luís Homem, um cavaleiro da sua confiança, designado como correio-mor, um cargo bem remunerado e que, em contrapartida, requeria total disponibilidade.
Um sistema regular, fiável e público de transmissão de mensagens via postal é oficializado em 1520 pela mão de Dom Manuel I.
Luís Homem era um enviado da puridade do Rei que cumprira várias viagens pela Europa para entregar mensagens reais. Ali inteirara-se da criação do primeiro serviço postal público da Europa, na Baviera pelo barão Thurn und Taxis, em 1497. Este serviço seria copiado por quase todas as cortes do seu tempo, incluindo em Portugal em 1520.
O correio-mor tinha de garantir o envio de correspondência do rei, de instituições e de particulares mediante uma taxa calculada em função do percurso, do tempo despendido e da dificuldade. Muitos dos itinerários eram então reminiscências das estradas romanas e as distâncias venciam-se a cavalo.
Luís Homem é o primeiro correio-mor. Cavalgava armado e gozava de imunidade criminal face às autoridades dos locais por onde passava.
O correio-mor, fundado então, tinha de garantir montadas à sua disposição em qualquer momento e sob qualquer clima para satisfazer a entrega de mensagens. Rapidamente, Luís Homem – e os seus três sucessores – perceberam a dificuldade da empreitada. Era obrigatório definir pontos de escala (as estações de muda) onde cavalos e cavaleiro pudessem descansar e alimentar-se. Ao usarem as armas reais, os correios-mores beneficiavam de protecção e da possibilidade de cavalgarem armados, bem como de imunidade criminal face às autoridades locais. Num episódio documentado por Fernando Moura, Luís Homem foi detido em Valladolid, mas a detenção foi desencadeada pelo facto de estar a atravessar um território em guerra e, depois de esclarecida a situação, o correio-mor foi rapidamente solto.
Cortesia do Museu das Comunicações
Carro de tracção animal destinado ao transporte do correio urbano em Lisboa.
Durante cerca de oito décadas, até 1606, o sistema funcionou, com as dificuldades próprias de um país com poucas infra-estruturas. Testaram-se soluções e rotas. Na carreira entre Lisboa e Porto, optava-se por dividir a distância, de forma a que um cavaleiro saísse da capital e outro do Porto e se encontrassem em Alvaiázere, trocando aí o respectivo correio para o regresso. As principais cidades continentais dispunham de correios, sempre dependentes do correio-mor e, como lembrou Godofredo Ferreira, principal historiador dos correios (em Casas do Correio no Sítio de Santa Marta em Lisboa), o serviço para Espanha, via Elvas, ganhou importância fundamental para a governação do reino.
Privatização e monopólio
No início do século XVII, a dinastia filipina revolucionou o sistema e privatizou-o. Assoberbado por dívidas e com a consciência de que o correio-mor acumulava prejuízos, Filipe II designou o coronel Gomes da Mata como correio-mor, atribuindo ao cargo uma valência hereditária de que nunca dispusera. Foi uma privatização avant la lettre, já que o novo correio-mor comprou o direito exclusivo de distribuição do correio e o rei aproveitou para saldar uma dívida antiga com o patriarca desta família.
Durante quase dois séculos, até 1797, a família Gomes da Mata beneficiou deste privilégio e sete correios-mores oriundos do seu seio serviram sucessivamente o reino, enriquecendo… apesar dos críticos.
Fernando Moura, em 500 Anos do Correio em Portugal, lembra que, entre as acusações de que foram alvo, estava também implícito que seriam hebreus, condição perigosa nos tempos da Inquisição. A família ergueu um palácio em Loures, ainda hoje sobrevivente, a partir de onde coordenava todo o serviço.
Sob a alçada filipina, sete correios-mor da mesma família desfrutaram de um monopólio na distribuição do correio no território português do reino.
Com os Matas, foi publicado o primeiro regulamento dos correios e, pelas disposições, percebe-se que o sistema era alvo de abuso – não só muitos destinatários recusavam receber a correspondência (paga até então no destino), como funcionários da administração abusavam do serviço, aumentando os custos da operação. Procurava-se também, nesse curioso documento de 1644, optimizar o serviço, evitando a partida de correios com pouca correspondência. O sistema foi igualmente ampliado à escala global, aproveitando as carreiras marítimas para distribuir mensagem – os correios marítimos nasceram em 1657.
O monopólio dos Matas seria questionado por Dona Maria I, que viria a devolver ao Estado o privilégio de distribuição do correio, em 1797. Foi então extinto o ofício de correio-mor e a coroa assumiu as funções, criando uma superintendência com poderes mais alargados para gerir correspondência e infra-estruturas. Datam do mandato do primeiro superintendente, José Diogo Mascarenhas Neto, duas importantes medidas: o início da construção da Estrada Nacional 1, passo decisivo para a transformação da rede viária do país; e a criação do serviço da mala-posta, ainda dependente de tracção animal, mas já assente sobre rodas e com possibilidade de transportar mais correio e passageiros.
Os tempos nobres da mala-posta
“A mala-posta, que seguia do Porto para Braga, passava às sete horas da manhã”, lembra o escritor Alberto Braga em Contos da Aldeia, obra publicada em 1880. “Como era subida, os cavalos iam a passo, de rédeas bambas, com as cabeças pendentes, sacudindo com as caudas os moscardos teimosos que lhes aferroavam nos ilhais.” Boa parte do imaginário colectivo sobre a mala-posta corresponde a descrições desta ordem, substanciando viagens aventurosas e difíceis, sujeitas a acidentes e a assaltos de bandoleiros.
Emílio Moitas / Colecção particular
Bandos de salteadores. Apesar de a lei o punir com severidade os assaltos às mala-postas eram frequentes e havia mesmo caminhos temidos pela frequência de ataques. Este ex-voto de Penafiel recorda um ataque do famigerado Zé do Telhado.
Embora o sistema demorasse a impor-se, muito por culpa das Invasões Francesas e da destruição de infra-estruturas daí resultantes, a mala-posta vingaria ao longo do século XIX. Modificou o conceito de viagem, facilitando o transporte – apesar de a deslocação entre Lisboa e Porto demorar cerca de 40 horas. Datam deste século as estações de muda e uma tentativa de uniformização arquitectónica destas construções em forma de U que se generalizaram ao longo das carreiras. Restam em Portugal duas em bom estado – uma em Olival Basto, onde funciona o Teatro da Malaposta, e outra em Anadia, onde está agora instalado um restaurante.
No imaginário colectivo e em obras literárias, a mala-posta ficou associada a risco – viagens aventurosas e difíceis, sujeitas a acidentes e a assaltos de bandoleiros.
Com Fontes Pereira de Melo, o serviço postal diversificou-se e o governo do reino iniciou a macadamização dos principais caminhos, que facilitaria as jornadas. A mala-posta manteve actividade, prosseguindo as suas carreiras, mas a expansão da ferrovia iniciou um movimento imparável de culto da velocidade de transmissão.
Perto do final do século XIX, nos anos finais da monarquia, a mala-posta era já uma memória e o transporte em veículos mecanizados marcaria o novo século. Os serviços postais mudavam também o seu ponto de recepção. Nasceram a partir de então (e com notável aceleração no Estado Novo) as estações de correio em cada localidade, pontos centralizados de recepção e distribuição do correio e, em breve, de prestação de outros serviços associados às comunicações.
Museu das Comunicações
Este raro exemplar da mala-posta do Alentejo ilustra bem a importância da figura do postilhão, a personagem encarregada de guardar o correio ao longo de toda a viagem.
Muito contribuiu para tal uma medida tomada também por Mascarenhas Neto no final do século XVIII – o impulso conferido à toponímia local, validando nomes de arruamentos e atribuindo números de polícia a cada domicílio, de forma a facilitar a entrega de correspondência porta a porta. O correio do século XX tornou-se personalizado e a figura do carteiro ganhou importância social.
Igualmente importante foi a implementação em Portugal de uma velha invenção inglesa – o selo postal adesivo. Na essência, funciona como recibo de um serviço pago antes da entrega, mas o selo constituirá, desde 1853, uma imagem de marca do serviço e animará o coleccionismo e as obsessões filatélicas. Os primeiros selos, impressos na Casa da Moeda, com uma máquina tipográfica inglesa, apresentavam a efígie de Dona Maria II e foram aprovados (e desenhados) pesssoalmente por Dom Fernando. Ainda não denteados, requeriam corte de tesoura para serem individualizados.
O marco do correio representou um momento importante na centralização do depósito do correio, permitindo ao carteiro um ponto de recolha previamente definido.
A criação de novas tecnologias de transmissão de informação à distância tinha o poder de extinguir a necessidade de envio de correspondência, mas, na verdade, à segunda metade do século XX correspondeu o período de maior fulgor dos correios, com remessas diárias de toneladas de cartas. A criação do marco postal republicano (que ainda existem), como ponto exterior de recepção de cartas para acelerar a tarefa do carteiro, foi um momento decisivo.
Na segunda metade do século XX deu-se o período de maior fulgor dos correios, com remessas diárias de toneladas de cartas.
O correio postal resistiu ao telégrafo (nas suas várias encarnações, incluindo os cabogramas do século XX), ao telefone e à rádio como processos inquestionavelmente mais rápidos de comunicação. Em 1978, a criação do código postal de quatro dígitos (terminando em zero para as capitais de distrito e em cinco para as que não o eram) agilizou a mecanização do serviço, ao passo que a utilização do avião postal rompeu as fronteiras dos continentes e permitiu o que seria impensável para a população de Alvapenha um século antes – o envio e recepção de uma mensagem escrita entre dois continentes com pouco mais de um dia de intervalo.
Cortesia do Museu das Comunicações
O fonopostal e a inovação do som. Em 2 de Julho de 1940 foi criado o serviço fonopostal, uma revolução na relação dos portugueses com o correio. O novo serviço permitia ao utilizador gravar uma mensagem áudio num disco de goma-laca, que permitia depois ao destinatário escutá-lo. Havia apenas duas estações onde o serviço era oferecido – nos Restauradores, em Lisboa, e em São Bento, no Porto –, mas a popularidade do serviço disparou. Na década de 1960, com o início da guerra colonial e a consequente deslocação para África de milhares de soldados, o serviço ganhou uma nova dimensão. Muitos soldados partiam com a mulher já grávida, mas não estavam em Portugal à data do nascimento do bebé. Tornou-se frequente assim o envio dos primeiros sons do recém-nascido para o pai babado, a muitos milhares de quilómetros de distância. Com a melhoria da rede telefónica, o serviço foi caindo em desuso, tornando-se um resquício memorialístico da época em que o som entrou na corrida das comunicações.
O papel dos correios – nas suas várias encarnações, públicas e hoje de novo privatizadas – mantém vitalidade, apesar de o correio electrónico, pela primeira vez na história, ter provocado um decréscimo acelerado na tonelagem diária de correspondência distribuída pelos serviços postais portugueses. Haverá sempre necessidade de transmissão fiável de correspondência escrita, mas os tempos românticos em que a Morgadinha de Júlio Dinis parava tudo o que estava a fazer à chegada do correio parecem irremediavelmente passados.