Manuseado com cuidado, o colherim libertava pouco a pouco uma fina camada de terra, colocando a descoberto uma figura geométrica desenhada sobre tesselas num painel de mosaico de grandes dimensões. Aquilo que se conhecia desde meados da década de 1980 estava agora prestes a emergir de um repouso milenar. Uma antiga intervenção num canal de rega na zona de Porto da Lama, no concelho de Alcácer do Sal, revelou inesperadamente uma luxuosa domus romana do século I d.C. Foram necessários mais de trinta anos para que a terra fosse de novo revolvida, desta vez por uma equipa de arqueólogos, para ser finalmente estudada.

Reconstituição da cidade de Alcácer do Sal e do rio Sado na época romana
Ilustração da Anyforms

Artéria vital. Reconstituição da cidade de Alcácer do Sal e do rio Sado na época romana. 

Além de motivos geométricos, o painel apresenta elementos nunca observados em território português. Cinco centauros numa cena de caça e golfinhos com tridente evocando o deus Oceano preenchem uma parte do pavimento da habitação de um abastado proprietário agrícola que por ali se fixou há mais de dois mil anos, aproveitando a riqueza de uma terra extremamente produtiva e de uma ligação fluvial para o transporte de mercadorias.

No entanto, o passado grandioso do território de Alcácer do Sal teve início quase um milénio antes com a viagem de um grupo de exploradores desconhecidos até então.

Pelos meandro do rio
Hugo Marques

Pelos meandro do rio. O peixe, sector vital na história do Sado, chegou a ser representado 
no anverso de moedas locais (à esquerda). A cidade moderna está dominada pela volumetria do castelo medieval, hoje convertido em pousada.

Mercadores distantes

A embarcação com pouco mais de oito metros aproveitava a brisa favorável para deslizar sobre um mar de um azul intenso. Na proa, um grupo de roazes-corvineiros acompanhava divertido, como que guiando o barco até ao seu destino. O resistente pinho da região de Alepo e o cedro das montanhas do Líbano conferiam ao casco arredondado a robustez para navegações atlânticas. No horizonte, um bando de gansos-patolas mergulhava freneticamente sobre um cardume de pequenos peixes, competindo avidamente com uma mancha de atuns esfomeados.

Uma extensão sem fim de um cordão dunar repleto de flores coloridas e uma praia com um areal a perder de vista completavam a perspectiva desfrutada por estes viajantes do Mediterrâneo Oriental. Os ventos favoráveis enfunando a vela quadrangular conduziram estes navegadores a um imenso estuário.

O Sado abriu-se a estes aventureiros há cerca de 2.800 anos, na alvorada da primeira Idade do Ferro. Os fenícios foram um povo de origem semita que habitou uma faixa de território entre a actual Síria, o Líbano e parte de Israel. Dominaram o comércio marítimo da Antiguidade durante vários séculos. Apesar de possuírem terras aráveis, estas eram pouco extensas, porque estavam cercadas por montanhas.

Investigadora Ana Arruda
Hugo Marques

Tesouro nacional. A investigadora Ana Arruda (em cima) estuda um dos vasos gregos encontrados em 1874 na necrópole do Olival do Senhor dos Mártires.

O mar foi portanto a saída lógica e a oportunidade de afirmação desta civilização. Tiro, Sídon e Biblos foram o centro do seu poder político e religioso organizado em cidades-estado. O desenvolvimento de um alfabeto simples ao alcance de todos foi determinante para o sucesso da sua frota mercante. Pela primeira vez na história, a afirmação da escrita ajudou a consolidar o domínio comercial. O alfabeto fenício foi a base para o grego e, em consequência, para o latino. Ao longo da sua existência, os fenícios fundaram cidades e colónias, como Cartago e Gadis (actual Cádis), até alcançarem a costa atlântica.

As populações indígenas que viviam entre o mar e as margens do Sado contactaram com estes homens de terras longínquas e absorveram rapidamente os seus usos e cultos. O comércio abriu as portas e depressa outros traços culturais se disseminaram. O rio Sado, que até tempos recentes foi navegável até Porto de Rei, abria vias até ao interior do Alentejo nas trocas comerciais e nas influências culturais remotas que os fenícios aproveitaram. Sabemos que existia um povoado indígena chamado Bevipo, que foi contemporâneo da chegada da missão exploratória fenícia. Esse lugar tranquilo, que até então servia de entrada para o pescado sadino, os bivalves estuarinos, os minérios, as lãs e os produtos das terras férteis envolventes, assistiu a partir de então à descarga de cerâmicas finas gregas, de jóias exóticas, de ornamentos, amuletos egípcios, armamento e tecidos luxuosos. Tudo isso ficou documentado em artefactos arqueológicos.

Não é difícil imaginar a azáfama da zona portuária com o vaivém de navios e mercadores, fazendo a entrega de encomendas à elite local e embarcando matérias-primas como o ouro e prata de minas do interior do Alentejo.

Marisol Ferreira investiga há cerca de duas décadas as camadas de história que se sobrepõem na cidade de Alcácer do Sal e em todo o Baixo Sado
Hugo Marques

Pistas de um comércio vasto. Marisol Ferreira investiga há cerca de duas décadas as camadas de história que se sobrepõem na cidade de Alcácer do Sal e em todo o Baixo Sado. Estudando materiais cerâmicos e analisando os produtos transportados por cada recipiente, tem sido possível quantificar o tráfego comercial da Antiguidade e especificar de onde vinham alguns dos produtos que chegavam à costa atlântica. Em artigo recente, Eurico de Sepúlveda, Catarina Bolila e Marisol Ferreira concluíram: “Estas importações cerâmicas contribuíram como um valor acrescentado para a romanização, através de uma gramática decorativa (…), não esquecendo os feitos heróicos, lúdicos e puramente decorativos de tradição greco-latina, cimentando, assim, este processo que já percorria um longo trajecto de assimilação.”

Em finais do século XIX, ocorreu uma descoberta notável. Durante trabalhos agrícolas no Olival do Senhor dos Mártires, em Alcácer do Sal, emergiu um conjunto fantástico de vasos gregos. Estes vasos áticos, decorados com cenas mitológicas, chegaram à antiga Bevipo indígena como recipientes para oferendas e para servir vinho. Mais tarde, alguns foram reaproveitados como urnas cinerárias. A necrópole do Olival do Senhor dos Mártires funcionou de forma contínua desde o século VII a.C. até à romanização e foi objecto de investigação na década de 1920 pelo arqueólogo Vergílio Correia e na segunda metade do século XX por Cavaleiro Paixão.

A arquitectura funerária, os rituais fúnebres com incineração e o imenso espólio recolhido nas escavações arqueológicas comprova a matriz oriental e constitui um dos maiores espaços funerários estudados da Península Ibérica. Vasinhos rituais, escaravelhos egípcios, facas afalcatadas, lanças, anéis, brincos de ouro, lucernas, figuras antropomórficas animais e humanas, rodas de carros de combate evocam histórias esquecidas e memórias muito distantes do tempo em que o Oriente e o Ocidente se encontravam no rio Sado. Todo o contexto arqueológico traça uma linha do tempo de interacções entre culturas mediterrâneas. A sacralização deste território perdura muito para lá da Idade do Ferro e do período clássico. A descoberta em 2022 de um panteão de cavaleiros da Ordem de Santiago numa capela do século XIII no Santuário do Senhor dos Mártires, prova que o tempo não apagou recordações longínquas. A presença de talismãs egípcios como os escaravelhos na antiga Bevipo são mais um elemento que demonstra a penetração dos cultos orientais na população indígena e o contacto regular com uma civilização longínqua. Com condições naturais ímpares, o estuário do Sado ofereceu o estabelecimento em permanência de uma comunidade de origem fenícia. A feitoria de Abul é a única estrutura visível dessa presença edificada em meados do século VII a.C. A sua planta quadrangular com compartimentos em torno de um pátio central segue uma linha arquitectónica marcadamente oriental. Abul poderá ter servido de armazém numa primeira fase e posteriormente, ainda na vigência fenícia, pode ter sido um santuário.

Manteve-se em actividade no período de ocupação romana com uma função de produção e distribuição de ânforas até ao século III d.C. Ainda hoje, a paisagem envolvente de Abul em pleno coração do estuário do Sado permanece extraordinária e merece uma visita, mas é pena que o único lugar comprovadamente fenício em território português esteja votado ao abandono. 

Amostra das reservas do Museu Municipal Pedro Nunes
Hugo Marques

Nesta pequena amostra das reservas do Museu Municipal Pedro Nunes, fica bem expressa a diversidade de vivências documentada na cidade. Das lucernas, testemunhas da prática religiosa, às moedas, com evidente simbolismo comercial, a velha Salacia ganha vida através dos seus artefactos.

A fase da Salacia

Em Alcácer do Sal, os achados continuaram a surpreender. A recuperação do antigo Convento de Aracoeli na zona do castelo para a construção da pousada na década de 1990 colocou a descoberto um antigo espaço sagrado. Também ali pequenas estatuetas votivas, simbolizando guerreiros, orantes e ofertantes, emergiram da sua morada. Uma vez mais, as cerâmicas gregas decoradas com figuras vermelhas destacaram-se ao lado dos amuletos egípcios. O pequeno olho de Hórus lá se encontrava, bem escondido e protegendo o seu proprietário de alguma suposta maldição. Na Rua do Rato, próxima das margens do rio onde outrora foi o porto, outro lugar de oração foi posto a descoberto com o mesmo tipo de oferendas. Não será arriscado imaginar as tripulações acabadas de chegar de navegações difíceis fazendo as suas ofertas aos deuses. A fixação de populações orientais na fachada atlântica do nosso território foi o início de novas ocupações. As campanhas lideradas por Décimo Júnio Bruto na conquista da Hispânia no século II a. C. trouxeram as legiões romanas e uma comunidade da península Itálica até ao extremo sudoeste da Europa. Uma passagem de Geografia, obra do geógrafo romano Estrabão, descreve esta chegada: “Os fenícios, como digo, foram os informadores; e, de facto, ocuparam a melhor parte da Ibéria e da Líbia antes da época de Homero e continuaram a ser senhores destes lugares até os romanos terem destruído o seu domínio.” Uma nova força militar e cultural emergia, preparada para exercer o seu domínio no continente europeu e em toda a bacia mediterrânea durante cinco séculos. Os novos senhores de Bevipo chegaram e instalaram-se. Roma não foi mais do que a continuidade de uma relação antiga com o Mediterrâneo.

O antigo povoado deu lugar à renovada Salacia Urbs Imperatoria à época do imperador Augusto, fundador da província da Lusitânia. Sabemo-lo de novo pelas moedas, testemunhos imprevistos das grandes mudanças toponímicas. O prestígio alcançado pela cidade distinguiu-a com a atribuição do estatuto de Oppida, cidade de direito latino antigo. Foi neste período que Salacia atingiu o seu esplendor com um urbanismo à imagem da capital do império e tornando-se um dos maiores entrepostos comerciais do seu tempo. A acrópole onde estava instalado o fórum situava-se na parte alta da cidade, na zona do castelo sobranceira ao rio e na sua encosta poente a área residencial. A zona portuária estava delimitada por armazéns.

Cripta do Castelo de Alcácer do Sal
Hugo Marques

Cápsula do tempo. A cripta do Castelo de Alcácer do Sal constitui uma das maiores viagens do tempo em território português. Descoberta na década de 1990 durante as obras para acolhimento da Pousada Dom Afonso II, permite recuar até à Idade do Ferro e ao século VII a.C., avançando depois, no elevador da história, até aos períodos romanos e medievais.

A integração do actual território português no Império Romano foi decisiva para o desenvolvimento de cidades como Salacia, com uma posição estratégica para a exportação por via flúvio-marítima de minérios, azeite, lãs e produtos marinhos. Uma rede de abastados comerciantes importava cerâmicas finas itálicas, hispânicas, gaulesas, norte-africanas e adornos como jóias e tecidos de luxo. Há muito conhecidas, as rotas de navegação do Mediterrâneo ao Atlântico tornaram-se uma auto-estrada para as frotas romanas. A saúde económica de Roma dependia de trocas comerciais intensas entre as províncias, e o mar e os rios eram o caminho mais rápido e seguro para o transporte de mercadorias, apesar da excelente rede viária desenvolvida pelos romanos. As condições naturais que o Sado oferecia para a navegação, assim como uma riqueza piscícola ímpar, criaram também as condições para a instalação de unidades industriais de grande dimensão de molhos e preparados de peixe. Tróia é disso exemplo na proximidade da foz do rio Sado, com a produção do famoso garum e peixe salgado exportados para todo o Império. 

Esta unidade funcionou em contínuo entre  século I e o século V d.C. com o impulso de uma figura de enorme prestígio de Salacia, Lucius Cornelius Bocchus. A família Bocchus sintetiza o modelo que Roma implementou em todo o Império e que foi a base para o seu sucesso durante séculos.

A distinção de indivíduos de tribos locais com a cidadania romana e o exercício de altos cargos no exército e em funções públicas criou elites com elevado poder político e económico que contribuíam activamente para a renovação e manutenção das cidades. Muitos tornaram-se grandes empreendedores, como esta família, que detinha propriedades extensas, investia em oficinas de cerâmica, indústrias do peixe, distribuição de alimentos e controlava os circuitos comerciais. As inscrições epigráficas que nos chegaram testemunham essa diversificação de negócios. As oficinas para o fabrico de ânforas no estuário do Sado conheceram neste período enorme dinamismo com o aumento da capacidade exportadora de unidades industriais como Tróia. As ânforas foram os contentores do passado – acondicionavam peixe em salmoura, molhos como o garum, vinho, azeite e cereais. A descoberta de grandes depósitos destes recipientes é sempre indício de intensa actividade exportadora.

Fornos no pinhal

Talvez pelos locais isolados onde foram construídos, alguns fornos de cerâmica conseguiram sobreviver na paisagem até aos nossos dias. Os fornos da Herdade do Pinheiro marcam uma viagem ao passado pelo local onde estão implantados. Numa enorme área de montado, com uma floresta de pinhal manso debruçada sobre braços de um estuário a perder de vista, bandos de flamingos e outras aves limícolas ainda se exibem em voos acrobáticos como sinais de esperança num território que o homem soube conservar. Não é difícil imaginar os oleiros de há dois mil anos a trabalharem com afinco para responderem à encomenda de um lote de centenas de ânforas. Outras províncias do império aguardavam ansiosas pela chegada das afamadas iguarias troianas. A marca do artesão que as moldou ficou escondida atrás da asa de um destes contentores e tem correspondência com outras que emergiram em sítios arqueológicos de Espanha e Itália.

Os fornos da Herdade do Pinheiro.
Hugo Marques

Os fornos da Herdade do Pinheiro. Durante os levantamentos para execução da Carta Geológica no final da década de 1960, encontraram-se três fornos romanos.  
As escavações revelariam mais dois. Funcionaram do século I ao século IV d.C.

Início do declínio

Como todas as histórias têm um epílogo, os impérios também não duram para sempre.  Assim foi com Roma, que ligou um vasto espaço geográfico durante séculos, mas colapsou. As pressões exercidas nas fronteiras orientais por outros povos e a perda do acesso às principais minas do ouro e prata determinantes para a economia de base monetária foram algumas das causas para a corrosão da unidade política romana. O comércio e os seus circuitos vacilaram, as cidades perdiam recursos para a sua manutenção. A classe dirigente trocava as cidades pelas villae do campo. Pouco a pouco, o espaço urbano entrou em decadência. Tróia deixou gradualmente de ter encomendas, os fornos extinguiram-se e as cetárias, que já não se enchiam de peixe, foram atulhadas e algumas transformadas em espaço funerário. Os deuses desapareceram e um novo culto emergiu, preenchendo o espaço que, entretanto, ficara vazio. A Roma dos imperadores deu lugar à capital do papado, unificando as novas identidades políticas europeias em torno da imagem de um Cristo pregado na cruz. Em Salacia, que em breve se transformaria em Alcácer, o fórum deu lugar à igreja, o novo centro urbano. O governador foi trocado pelo bispo. Assim foi em todas as cidades e vilas por essa Europa fora. Só o rio Sado continuou a correr como sempre pelo mesmo leito.

O MOSAICO DE PORTO DA LAMA

Em Abril de 2022, na sequência de uma obra para construção de um canal de rega, emergiu, a dois quilómetros da aldeia de Santa Catarina de Sítimos no concelho de Alcácer do Sal, um extraordinário mosaico, indício da presença vizinha da domus de um proprietário rural. A escavação esteve a cargo da empresa Archeo’Estudos e foi coordenada pela arqueóloga Margarida Figueiredo. A datação provisória estabelece uma ocupação imperial, mas prolongada até talvez ao século V e o painel principal deverá ter sido o pavimento de um átrio ou de uma sala de recepção de convidados. A figuração, única na Península Ibérica, parece representar centauros, figuras mitológicas de inspiração grega mas apropriadas pelo imaginário romano. Uma centauromaquia ornamentava também o pavimento da villa Adriana, perto de Tivoli (Itália).

Bucentauro Porto da Lama
Hugo Marques

Bucentauro. Com corpo de touro e cabeça humana, era o inverso do minotauro. A figuração sugere que era esse o mito aqui representado. 

Identificado na Primavera de 2022, na sequência da construção de um canal de rega, o grande painel sofreu alguns danos com a passagem das máquinas. Além do painel principal, foi descoberto o início de outro, com motivos geométricos e provável figuração hoje irrecuperável.

Artigo publicado originalmente na revista National Geographic História  (nº12).