Na madrugada de 11 de Maio de 1922, perdidos no Atlântico Sul, a algumas milhas das rotas habituais de navegação, dois náufragos ponderam certamente o acerto das decisões que tomaram nas últimas semanas.

Estão ainda a seco, mas num engenho que não foi construído para sobreviver às vagas e que vai lentamente metendo água. De quando em vez, tubarões vêm espreitar os estranhos “peixes” à deriva nesta madrugada. Os dois homens têm comida, mas não a usam. Em contrapartida, o mais novo dos dois consome repetidamente os cigarros de um palmo de comprimento que o tornaram conhecido. Por ironia, entre livros e cartas de navegação, transportam uma edição de “Os Lusíadas” de 1670, destinada ao Gabinete Português de Leitura no Rio de Janeiro. O clássico da literatura portuguesa foi salvo por Camões de um naufrágio. Esta edição prepara-se para naufragar.

Os dois homens, Sacadura Cabral e Gago Coutinho, discutem brevemente as opções que lhes restam. Com sangue-frio, não usam desnecessariamente os very-lights que transportam, nem lamentam a ausência a bordo de um aparelho de TSF que lhes permitiria comunicar a posição, mas que fora deixado em Lisboa para libertar espaço para mais um depósito de combustível. Ao contrário da maioria dos náufragos, sabem onde estão com uma precisão cartográfica. É inescapável a ironia. Decidem, em acordo de cavalheiros, que se chegarem ao limite não serão uma refeição de tubarão – irão ao fundo no mesmo engenho que os transportou, esta cápsula com a cruz de Cristo pintada a vermelho, que parece agora uma ave abatida. E esperam, hora após hora.

Recuemos três anos. No dia 27 de Maio de 1919, chegou à doca marítima do Bom Sucesso, em Lisboa, o aviador Albert Cushing Read. Partira de Long Beach, nos Estados Unidos, no dia 8 e amarara seis vezes pelo caminho, completando a primeira travessia aérea do oceano Atlântico. No dia anterior, o aviador Artur Sacadura Cabral apresentara ao ministro da Marinha um ambicioso projecto para uma travessia aérea entre Lisboa e Rio de Janeiro. Apontava para um horizonte temporal de três anos, tempo que lhe permitiria adquirir um hidroavião, testá-lo e resolver alguns problemas de navegação. 1922 era também o ano da comemoração do centenário da independência do Brasil e constituía a oportunidade diplomática de o regime agradecer à República do Brasil o rápido reconhecimento da legitimidade da República Portuguesa em 1910.

“Esse é o primeiro mito que se foi erguendo a propósito da viagem aérea portuguesa”, comenta o capitão-de-fragata Hugo Baptista Cabral, autor de várias obras sobre os anos pioneiros da aviação civil portuguesa. “O projecto de Sacadura Cabral não replicou a viagem americana de 1919. Era anterior. Tinha sido amadurecido nos meses anteriores e foi apresentado à tutela antes de Read chegar sequer a Lisboa. Aliás, desde a Grande Guerra que Sacadura Cabral, destacado em França, reflectia sobre o papel da aviação em tempos de guerra e o papel futuro da aviação comercial.” A transição de década foi penosa em Portugal.

À crise económica resultante da participação na guerra, somava-se a crise política num regime em processo de consolidação. Às intentonas monárquicas sucederam-se tentativas de golpe militar e, em 19 de Outubro de 1921, a Noite Sangrenta manchou o país de sangue e cobriu a Marinha de vergonha. É neste contexto que deve ser entendida a quimera de Sacadura Cabral. O aviador propôs o projecto ao ministro Victor Macedo Pinto, que o aceitou, atribuindo 200 contos para a compra do aparelho. A compra do engenho na Casa Fairey já foi decidida na tutela do ministro Ricardo Pais Gomes. Quando partir de Lisboa, em 1922, o ministro já será Victor Hugo de Azevedo Coutinho (que aliás chegará atrasado à partida, já só vendo um ponto no horizonte). Entre Março de 1919 e Março de 1922, a pasta da Marinha mudará 16 vezes.

Pedaços de História. Cem anos depois, um conjunto de artefactos ajuda a tornar palpável a viagem aérea de 1922. Desde o início, Sacadura Cabral e Gago Coutinho tiveram de decidir judiciosamente a carga de bordo, pois cada grama contava. Todos os artefactos: cortesia da Marinha Portuguesa / Museu de Marinha

O segundo mito que encobre parte do lustre da viagem é a percepção errada de que o mais difícil já fora feito com os voos pioneiros do americano Read e dos ingleses Alcock e Brown que, em hidroavião ou em aviões com trem de aterragem, uniram as costas do Atlântico Norte. O relatório de 1919, arquivado na Cordoaria, é bastante explícito: Sacadura Cabral queria provar que “a navegação aérea [é] susceptível da mesma precisão que a navegação marítima”.

A questão não era técnica, pois expressava um desafio formidável. Os voos concretizados até 1922 tinham ligado grandes massas continentais, onde em rigor não faz muita diferença o ponto onde se aterra ou amara, uma vez que se chegará sempre a um destino. E o voo pioneiro de Read fora feito com um caminho das pedras traçado na água – uma frota de dezenas de navios posicionados ao longo do percurso para que o aviador saltasse de um ponto de referência para o outro sem se enganar no caminho. Mesmo o voo famoso de Charles Lindbergh, em 1927, entre Nassau (EUA) e Paris, será uma proeza mecânica e de resistência física numa grande distância, mas não de orientação. “É completamente diferente apontar um ponto preciso no mapa e dizer que se vai chegar ali”, diz Hugo Baptista Cabral em conversa animada no Clube Militar Naval. “E, para isso, era preciso solucionar o problema da navegação aérea.”

Encontramos António Costa Canas no Museu de Marinha, instituição de que foi director. Doutorado em História, é talvez o investigador que mais se dedicou às questões de orientação e navegação em alto-mar. A poucas dezenas de metros da sala onde conversamos, está estacionado o Santa Cruz, o terceiro hidroavião da viagem de 1922 e o único que chegou quase incólume aos nossos dias, se não contarmos as intempéries a que esteve sujeito durante uma exposição no Brasil. Os seus congéneres Lusitânia Pátria-Portugal (este um nome oficioso, nunca registado) repousam no fundo do mar, junto dos penedos de São Pedro e São Paulo e a 1º 09’ de latitude Sul e 31º10’ de longitude Oeste, respectivamente, talvez à espera do dia em que uma missão de arqueologia subaquática os possa identificar e trazer à superfície.

Igualmente nas vitrines do Museu de Marinha (a campanha de 1922 teve lugar sob a égide da Marinha, que coordenava a Aviação Naval, ao passo que o Exército respondia pela Aeronáutica Militar) estão dois instrumentos simples, mas que testemunham o génio inventivo do segundo membro da tripulação – Carlos Gago Coutinho. Terá sido entre o final de 1921 e o primeiro trimestre de 1922 que Sacadura Cabral tomou uma decisão difícil: em vez de levar a bordo um segundo piloto (que seria Ortins de Bettencourt), levaria um navegador. Isso implicava que todo o esforço de manobra do Fairey seria realizado por um único homem durante uma dezena de horas, mas libertava o segundo para as importantes tarefas de navegação.

Aviadores 1922

Em grande plano junto do pássaro de madeira e lona, está o corrector de abatimento. Trata-se de um instrumento desenhado por Gago Coutinho. “O vento afecta dramaticamente a navegação, sobretudo no caso de um engenho aéreo muito leve”, explica Costa Canas. “Esse efeito de abatimento tem de ser medido sob risco de os aviadores divergirem da rota pretendida e consumirem o combustível disponível.” Para tal, numa viagem prévia à Madeira, em 1921, fora testado um método: deixando cair no mar uma bóia com uma solução de soda ou potássio que, em contacto com a água, se inflamava produzindo chama e fumo, Gago Coutinho mediu o ângulo de abatimento com o seu corrector, usando para tal marcas pintadas na cauda do aparelho com um intervalo de 5 graus. “Alterando o rumo em 45º para uma segunda medição consecutiva, conseguia determinar de que forma o vento estava a acelerar ou a retardar a marcha, aferindo que correcção de rumo tinha de fazer.” O processo já era conhecido, mas Coutinho mecanizou-o, dispensando os incómodos cálculos literalmente feitos em cima do joelho, numa folha de papel, a bordo de uma máquina voadora trepidante.

A segunda inovação foi o sextante adaptado, a que chamou astrolábio de precisão. “O sextante era usado em navios desde o século XVIII para medir a altura dos astros em referência ao nível do mar”, lembra Costa Canas. A inovação, neste caso, é a sua adaptação ao contexto aéreo.

“Em altitude, a linha do horizonte não fica bem definida. Aplicando uma bolha de nível ao instrumento e fazendo previamente os cálculos principais para dispensar operações de trigonometria a bordo, Coutinho descobriu como tirar a altitude mesmo num dia de nevoeiro, voando acima das nuvens.”

Sem as suas famosas tabelas, o processo poderia demorar largos minutos, retardando a correcção. Coutinho fazia-o em seis ou sete minutos e conseguiu por isso tirar 40 posições durante a viagem principal entre a Praia, em Cabo Verde, e os penedos de São Pedro e São Paulo, já no Brasil. O risco de o fazer mal teria sido fatal numa viagem que dependia de uma variável essencial: quantos quilómetros suportariam o motor e o combustível? O próprio Sacadura só começou a dominar a estimativa de consumo na segunda tirada entre as Canárias e Cabo Verde, durante a qual constatou com horror que o comportamento de catálogo do motor Rolls Royce do Fairey não tinha correspondência real: “O motor consumia bastante mais combustível do que estava explícito no contrato de compra”, lembra Hugo Baptista Cabral. Mas no alto-mar era difícil pedir responsabilidades ao fabricante pela publicidade enganosa.

Embora a partida de Lisboa tenha ocorrido no dia 30 de Março de 1922, após atrasos registados nas verificações técnicas e alguma prudência enquanto se aguardava pela melhor previsão meteorológica possível, recuemos o olhar para o dia anterior. Longe do rio Tejo, na Assembleia da República, o deputado Alberto Xavier, do Partido Reconstituinte, é uma nota dissonante nos discursos laudatórios da campanha. O país uniu-se em torno do desígnio da viagem aérea que os jornais vendem como uma saga digna da gesta dos Descobrimentos. Augusto de Castro, no “Diário de Notícias”, lidera a campanha, mantendo o assunto na primeira página.

Alberto Xavier louva o arrojo dos aviadores, mas contrapõe que o momento financeiro do país não é o mais oportuno para despesas e “pretendendo o governo realizar uma determinada política financeira, precisa de ser muito severo nas economias”. Ao longo da intervenção, o escrivão aponta vários “Não apoiado” proferidos das bancadas. O deputado, porém, mantém o rumo: “O governo precisa de ser muito severo nas economias a fim de ganhar autoridade para exigir do país tudo quanto possível.”

O discurso de austeridade (ontem como hoje) é contestado. O deputado Joaquim Ribeiro lembra-lhe que as palavras são parecidas com as que Dom Manuel I “disse a Vasco da Gama e ele foi à Índia”. Outro deputado, Agatão Lança, desfere o ataque final: “Por fatalidade e destino deste país, nas suas horas grandes, aparece sempre um velho do Restelo.” Será esse o papel de Alberto Xavier nesta saga: o de ave agoirenta, tentando suster o dique do progresso com um dedo inserido na fenda.

Sacadura Cabral e Gago Coutinho percurso

Alheios ao movimento que se gera à sua volta (a que Sacadura Cabral, em entrevistas futuras, chamará o “ruído que os senhores fizeram”, dirigindo-se aos jornalistas), os aviadores pesaram riscos. “Até ao último momento, ponderam a hipótese de recuar”, conta Hugo Baptista Cabral. O voo fora pensado para execução no máximo durante uma semana de Março, a altura mais propícia para aproveitar os ventos alísios, mas durará quase três meses.

A primeira ligação não teve história. Os aviadores conduziram o Lusitânia até às Canárias. Comprovaram ali os dois receios de Sacadura Cabral: a viagem deveria ter merecido um reconhecimento prévio dos locais a amarar, pois muitas baías não reuniam condições para a descolagem do engenho carregado de combustível. Por outro lado, o próprio hidroavião estava a ser testado em tempo real – uma temeridade que teve os seus custos.

Seguiu-se uma segunda tirada para Cabo Verde, onde a apreciação das condições da ilha de São Vicente e um primeiro problema mecânico (a entrada de água nos flutuadores) reteve os aviadores por mais dias do que o esperado. “Ironicamente, a espera foi positiva”, diz Hugo Baptista Cabral. “Aumentou o entusiasmo e a expectativa. Falava-se da viagem todos os dias nos jornais.”

Sacadura Cabral e Gago Coutinho decidiram sair mais a sul, da Praia, na ilha de Santiago, para a tirada final. Poupavam assim quilómetros de distância porque compreenderam que cada metro contaria na saga – também por isso já tinham decidido que apontariam a chegada para os penedos de São Pedro e São Paulo, a leste da ilha de Fernando de Noronha. A conclusão, porém, não era animadora: “Julgo que eles compreenderam que provavelmente o combustível não chegaria para chegar aos penedos”, diz Hugo Baptista Cabral. “Costumo dizer, por brincadeira, que se Sacadura Cabral pertencesse à minha esquadrilha, amanhã já estaria fora porque a gestão de risco que ele fazia seria inaceitável nos dias de hoje: para Sacadura, bastava uma ínfima probabilidade de sucesso para aceitar a missão. Mas era assim nos anos 1920.”

O voo para os penedos foi a página de glória da missão. Por um lado, a chegada a um destino tão exíguo provou o mérito dos métodos de orientação. “Dir-se-ia que a natureza se divertiu a erguer ali uma redução dos Pirenéus para as vagas do Atlântico poderem brincar às guerras com soldadinhos de espuma”, escreveu Tomás Ribeiro Colaço, um dos dois jornalistas (o outro foi Norberto Lopes) que testemunhou a etapa final da viagem e por antonomásia foi o Pêro Vaz de Caminha da nova “descoberta” do Brasil. Por outro lado, o governo destacara navios para prestar assistência no ponto de partida e no ponto de chegada. Em mar aberto, porém, os aviadores estavam por sua conta. Chegaram com o depósito vazio (“lambido” na sua expressão) aos penedos para comoção dos tripulantes do vapor República. Em três minutos, a euforia transformou-se em horror: ao amarar, o Lusitânia perdeu um dos flutuadores, cortado por uma vaga como se fosse uma navalha de barbear. Pouco importava: salvos os aviadores e os seus instrumentos, o afundamento rápido do hidroavião transformou-se no epitáfio da saga.

Aviadores 1922

Os penedos de São Pedro e São Paulo, onde ficou sepultado o Lusitânia, continuam a ser tão inóspitos como no dia de 1832 em que Charles Darwin aqui desembarcou. Em 2022 como em 1922, são os alcatrazes-pardos que dominam as rochas.

Antes de sair, ainda no interior do avião, Gago Coutinho, curvado, como que em oração, fez a anotação final no seu livro de bordo, como “pontífice máximo de uma religião nova, [que] parecia paramentar-se dentro de um púlpito” – anotou Colaço.

A Europa Central e os EUA não aclamaram o voo com a exuberância que a proeza merecia. No Brasil, em contrapartida, gerou-se um entusiasmo lusófono contagiante. Face ao entusiasmo nos dois países, o governo português decidiu de imediato enviar um segundo hidroavião (comprado no mesmo frete que trouxera o Lusitânia) que completasse a etapa final da viagem – a ligação entre os penedos e o continente brasileiro. As empresas acordaram e a Casa Pinto & Sotto Mayor (agente em Lisboa da Lloyds Brasileira e cujos accionistas eram também proprietários do “Diário de Lisboa”) financiou o transporte do segundo avião, que seguiu a bordo do vapor Bagé. Desta vez, nenhum pormenor foi menosprezado: entraram a bordo cinco jornalistas, um fotógrafo e um operador de cinema.

Em Portugal e no Brasil, enfatizava-se que a viagem já estava concluída e que restava a volta de aclamação, como fazem os campeões atléticos nos Jogos Olímpicos. Noutras latitudes, a viagem foi varrida para debaixo do tapete. Hugo Baptista Cabral tem opiniões fortes sobre o tema: “O princípio básico da aviação comercial é a segurança: ninguém entraria num avião com 50% de hipóteses de chegar ao destino. Os dois aviadores portugueses depararam-se com dois problemas: resolveram brilhantemente o primeiro – o da navegação aérea. O segundo era o da fiabilidade dos motores em tão grandes distâncias e esse problema só virá a ser solucionado quase uma década depois.” Colaço escreverá a este propósito: “Se um globe-trotter desse a volta ao mundo, mudando dez vezes de botas, não deixaria por isso de dar a volta ao mundo. E se conservasse sempre o mesmo calçado, metade da admiração iria para as botas…”

Ironicamente, foi na volta de aclamação que ocorreu o drama principal da viagem. Sacadura Cabral e Gago Coutinho tinham ligado Lisboa ao Brasil em saltos de gafanhoto e desejavam não deixar hiatos na sua rota. Mais de um mês depois de chegarem aos penedos, já com o segundo hidroavião, partiram de Fernando de Noronha para trás, retomando a viagem nos penedos e com intenção de regressar de novo à ilha. Foi nesse voo de retorno que o motor falhou, forçando os aviadores a uma amaragem de emergência. “O aparelho começou a descer como um pássaro ferido pelo chumbo do caçador”, contará Gago Coutinho.

Flutuaram nove horas no mar, a 170 milhas de Fernando de Noronha, enquanto vários navios internacionais os procuravam. Temeu-se o pior. Norberto Lopes, do “Diário de Lisboa”, chegou a telegrafar para o jornal a informação de que os aviadores se perderam, mas a mensagem chegou a Lisboa depois de se saber que um navio carvoeiro inglês, o Paris-City, os encontrara e salvara. Na apreciação do comandante Albert Tamlyn, teriam talvez resistência para mais duas horas no mar.

De Lisboa, saiu um terceiro hidroavião, o Santa Cruz, que completará os voos festivos na costa brasileira até “ao fecho teatral da viagem no Rio de Janeiro”, como escreveu Tomás Ribeiro Colaço. Num país empobrecido, este apoio constante da Armada e do governo teve também o seu significado: a Marinha limpou a imagem da Noite Sangrenta de 1921 e da participação de vários marinheiros nas atrocidades do Arsenal. O governo, por seu lado, encontrou na viagem heróica um poderoso símbolo de união nacional. Não foi certamente por acaso que o governo de António Maria da Silva foi o mais duradouro desses loucos anos vinte.

O que falta ainda descobrir sobre a viagem aérea ao Brasil cem anos depois? Ainda há certamente peças dispersas do puzzle. Em 2007, Gwen Tamlyn, nora do comandante Albert, entrou em contacto com o Museu do Ar, em Alverca, para doar o espólio do sogro. Guardara objectos, alguns dos quais autografados pelos aviadores, recortes de jornal, fotografias e o diário de bordo do Paris-City. Entre o espólio, encontravam-se dois pedaços de história: um deles é uma fotografia inédita do momento dramático em que o segundo hidroavião se afundava, já com os aviadores sãos e salvos a bordo do República, que entretanto também chegara ao local.

O segundo é o conjunto de cartas que Gago Coutinho escreveu a Albert Tamlyn. Percebe-se pelo espólio a gratidão do almirante face ao seu salvador. Escrevia-lhe sempre no dia 11 de Maio, o dia em que o Paris-City o “pescara” das águas. E continuou a escrever-lhe em 1946, mesmo depois de o seu salvador já ter falecido.

Por ironia, a verdadeira dimensão da proeza só se tornará dolorosamente clara dois anos mais tarde, quando Artur Sacadura Cabral desaparecer, num voo sobre o mar do Norte enquanto trazia para Lisboa um dos novos hidroaviões comprados pelo governo. Arriscara uma vez mais numa viagem de difícil prognóstico e, desta vez, a sorte voltou-lhe as costas. Desapareceu nas águas o promotor da viagem de 1922, “a alma do raid”, o “Cícero do avião”, dirá Gago Coutinho a Norberto Lopes. Ficou o legado da sua aventura.