No Brasil, os escravos fugidos criaram milhares de sociedades escondidas, ou quilombos, no coração do país. Estas comunidades conquistaram direitos sobre as suas terras e ajudam a protegê-las.
Imagine-se sobrevoando a Terra no século XVII. Neste período de intensa movimentação humana, vagas de europeus viajaram para o Novo Mundo num esforço de domínio da imensidão selvagem. No continente americano, veria dezenas de milhões de nativos já residentes, aos quais se reuniu um afluxo extraordinário de escravos africanos. Até ao início do século XIX, um número de africanos quatro vezes superior ao dos europeus chegou ao continente americano. Observando o panorama do alto, ninguém imaginaria que os europeus, em número tão minúsculo, pudessem ser as estrelas do filme. Em vez disso, a atenção do leitor centrar-se-ia nas duas populações maioritárias: os africanos e os índios.
E teria muito para ver. Dezenas de milhares de escravos africanos fugiam às duras condições impostas nas plantações e operações mineiras e refugiavam-se no interior, em terras controladas pelos índios. Por todo o continente, os antigos escravos e os povos indígenas fundaram povoados mestiços conhecidos como comunidades marron, palavra derivada do espanhol cimarrón, ou fugitivo. Desenrolando-se em grande parte longe da vista dos europeus, esta complexa interacção é um drama oculto que os historiadores e os arqueólogos só recentemente começaram a deslindar. Este capítulo perdido é particularmente notório no Brasil, onde milhares de comunidades marron emergem actualmente da sombra, reafirmando a sua cultura mestiça e reivindicando os direitos jurídicos à terra que ocuparam desde o tempo da escravatura. Há grandes interesses em jogo: legislação recentemente aprovada confere às comunidades marron do Brasil, denominadas quilombos (palavra para “comunidade” em quimbundo, um idioma angolano), um papel decisivo na definição do futuro da grande floresta amazónica.
As araras guincham no céu em cima de nós, enquanto a pequena embarcação a motor vai subindo o rio, deixando jacintos-de-água a balouçar no seu rasto. O barco navega pela bacia hidrográfica do Baixo Amazonas, subindo desde a foz do rio por um afluente que nos leva ao povoado de Baixo Bujaru. Surpreendentemente, a aldeia, localizada no estado setentrional do Pará, pouco mudou desde o século XVIII, época da sua fundação por escravos fugidos. Com pouco mais do que uma escola e um edifício comunitário, rodeados de casas de madeira, a aldeia não possui energia eléctrica, água canalizada, nem cuidados médicos, e o acesso só existe por via fluvial. Numerosas mãos ajudam a puxar o barco, quando este se aproxima do cais principal. Aguardam-nos cerca de uma centena de pessoas, que ali vieram cumprimentar a equipa médica visitante: médico, dentista, enfermeiro, enfermeiro especializado… e dois esteticistas.
“É verdade que noutros países não se fazem tratamentos faciais nem se penteia o cabelo com rastas ao mesmo tempo que se faz um esfregaço de Papanicolau?” pergunta o piloto. “O Brasil é um país civilizado!”
Durante os séculos da escravatura, cerca de cinco milhões de cativos africanos foram trazidos para o Brasil. Muitos escapavam ao controlo dos seus proprietários, criando mundos de fugitivos no interior do país. Protegidos por um labirinto de rios e pela floresta impenetrável, estes povoados ilegais duraram décadas.
O Brasil aboliu a escravatura em 1888, tornando-se o último país do hemisfério ocidental a fazê-lo. Mas o fim da escravatura não significou o fim da discriminação. Refugiados em bolsas isoladas, os escravos fugitivos do Brasil, conhecidos como quilombolas, continuaram a esconder-se, mantendo-se tão distantes do controlo oficial que, em meados do século passado, a maioria dos decisores políticos julgava que já não existiam. Na década de 1960, o regime militar que então governava o Brasil decidiu abrir a bacia do Amazonas. Deram então entrada no território os especuladores imobiliários, alimentando uma clássica bolha imobiliária. Na esperança de realizarem lucro rápido, abateram a machado enormes extensões de floresta, plantaram pasto para fazendas ganadeiras e procuraram compradores. Os indivíduos encontrados dentro da propriedade eram considerados ocupantes, sendo expulsos muitas vezes sob ameaça de armas de fogo. Um número considerável de quilombos desapareceu. Mas muitos conseguiram sobreviver, entre os quais Baixo Bujaru.
Doze africanos chegaram ao Brasil por cada um desembarcado na América do Norte.
No meio da multidão que nos aguardava em Baixo Bujaru, encontrava-se Bettina dos Santos, a mãe do piloto, nascida há cerca de 70 anos na região. Nesse tempo, não havia escola. Também não havia protecção jurídica quando os generais fatiaram o território de Baixo Bujaru em fazendas ganadeiras e as venderam a investidores politicamente bem relacionados. Homens armados abateram as florestas dos quilombolas e criaram vacas no terreno desnudado. Com a ajuda da igreja local, conta Bettina dos Santos, ela organizou manifestações de protesto: “Mas não fomos capazes de travá-los. Eles tinham demasiadas armas.”
Na década de 1980, os geólogos descobriram recursos valiosos na bacia hidrográfica adjacente, igualmente ocupada por quilombolas: bauxite (minério de alumínio) e caulino (uma argila fina utilizada para revestir papel). Mais uma vez, o Estado distribuiu gratuitamente as suas terras, atribuindo concessões a empresas mineiras. “Mais uma vez demos-lhes a conhecer que já aqui vivíamos”, diz Bettina. Desta feita, foram bem-sucedidos. Em Março de 2008, Baixo Bujaru e os seus vizinhos conquistaram o título que lhes reconhecia o direito à sua terra.
Os escravos fugitivos eram punidos com tratamentos dolorosos, como as infames coleiras de ferro.
A sala da senhora Santos é escassamente mobilada: uma mesa com fotografias e uma estante. No entanto, a mulher que cresceu sem acesso a cuidados médicos é agora visitada, com intervalos de alguns meses, por um barco que transporta médicos e esteticistas. Bettina dos Santos não frequentou a escola e arriscou a vida para manifestar-se contra a desflorestação. Hoje, a sua filha frequenta um programa de doutoramento e o filho trabalha para uma associação de agricultores. Eles são testemunhos da maneira como os quilombolas evoluíram até à cidadania.
O tráfico de escravos no Atlântico foi um gigantesco empreendimento com tentáculos que se ramificavam por todos os lugares do continente. O seu centro situava-se, contudo, na colónia portuguesa do Brasil: por cada africano desembarcado na América do Norte britânica, chegavam 12 ao Brasil, na sua maioria encaminhados para minas de ouro e plantações de cana-de-açúcar, trabalhos brutais que eliminavam um terço a metade dos trabalhadores no prazo de cinco anos. Não admira, portanto, que os escravos rapidamente procurassem a fuga, criando o mais célebre de todos os quilombos: Palmares, o qual, no seu apogeu, em meados do século XVII, abrangia uma extensão territorial superior a 25 mil quilómetros quadrados nas montanhas costeiras setentrionais.
Consta que a fundadora desta comunidade de fugitivos foi Aqualtune, uma princesa e general angolana escravizada durante uma guerra ocorrida por volta de 1605. Pouco depois de chegar ao Brasil, grávida, Aqualtune escapou com alguns dos seus soldados e fugiu para a serra da Barriga, um conjunto de afloramentos basálticos escarpados que dominam a planície costeira. Numa crista elevada, existia uma lagoa, abrigada por árvores, em torno da qual vivia uma comunidade indígena. Segundo a lenda, foi aqui que Aqualtune construiu Palmares.
A terra reivindicada pelos quilombos é a mais valiosa do Amazonas.
Actualmente, Palmares é um parque nacional do estado de Alagoas, só acessível por uma estrada esburacada e lamacenta. Uma placa junto à lagoa no alto da crista recorda a história de Aqualtune, mas ninguém sabe quanto corresponde à verdade. Aquilo que os investigadores efectivamente sabem é que as 12 aldeias do quilombo se transformaram em refúgio para cerca de trinta mil africanos e índios. Na década de 1630, o filho de Aqualtune, Ganga Zumba, governava Palmares a partir de um palácio, com banquetes sumptuosos e cortesãos servis.
Na década de 1980, os geólogos descobriram recursos valiosos na bacia hidrográfica adjacente, igualmente ocupada por quilombolas: bauxite (minério de alumínio) e caulino (uma argila fina utilizada para revestir papel). Mais uma vez, o Estado distribuiu gratuitamente as suas terras, atribuindo concessões a empresas mineiras. “Mais uma vez demos-lhes a conhecer que já aqui vivíamos”, diz Bettina. Desta feita, foram bem-sucedidos. Em Março de 2008, Baixo Bujaru e os seus vizinhos conquistaram o título que lhes reconhecia o direito à sua terra.
A sala da senhora Santos é escassamente mobilada: uma mesa com fotografias e uma estante. No entanto, a mulher que cresceu sem acesso a cuidados médicos é agora visitada, com intervalos de alguns meses, por um barco que transporta médicos e esteticistas. Bettina dos Santos não frequentou a escola e arriscou a vida para manifestar-se contra a desflorestação. Hoje, a sua filha frequenta um programa de doutoramento e o filho trabalha para uma associação de agricultores. Eles são testemunhos da maneira como os quilombolas evoluíram até à cidadania.
Os súbditos de Ganga Zumba utilizavam forjas de tipo africano para fabricar arados e gadanhas que usavam nas plantações mistas, ao estilo índio, de milho, arroz e mandioca, bem como em florestas de palmeira dendê e fruta-pão. Em torno dos povoados, existiam paliçadas e fossos crivados de estacas. Em caso de ataque por agressores a uma aldeia marginal, os seus habitantes refugiavam-se no alto dos afloramentos rochosos, onde, graças ao solo fértil e aos poços artesianos, conseguiam aguentar qualquer cerco.
Lisboa considerava Palmares um desafio directo ao estado colonial. As tropas das comunidades fugitivas não só faziam incursões contra os povoados portugueses como também impediam a expansão dos europeus para o interior. O reino lançou mais de vinte ataques contra Palmares, sempre sem sucesso. Mas os combates constantes desgastaram Ganga Zumba, o qual concordou, em 1678, não aceitar a entrada de mais fugitivos e mudar-se para longe das montanhas. Rejeitando aquilo que considerava uma traição, o sobrinho de Ganga Zumba, Zumbi, envenenou o tio e fez letra morta do tratado. Em retaliação, as forças coloniais passaram a desferir ataques contra a serra da Barriga todos os anos. Por fim, em 1694, após um cerco terrível, os portugueses conseguiram destruir Palmares. À primeira vista, os quilombos ainda existentes assemelham-se a qualquer outra aldeia brasileira pobre. No entanto, na sua maioria, preservam elementos culturais da terra-mãe africana dos seus habitantes, misturados com tradições europeias e nativas. No Brasil, há um leque variado de sistemas híbridos de espiritualidade no âmbito dos quais os afro-brasileiros dançam, tocam tambores e praticam a arte marcial coreografada da capoeira. No seu isolamento, os quilombos criaram procissões e festividades sobrepostas a estas tradições espirituais, unindo as comunidades. A luta pela liberdade é glosada de maneira crua na dança ritual dos Lambe-Sujos, durante a qual os “escravos-fujões”, muitos dos quais cobertos com óleo negro brilhante, chucham em chupetas de bebé, simbolizando as cruéis tampas circulares amarradas à boca dos escravos recalcitrantes. Numa união firme, demonstrativa do espírito de resistência, os quilombolas comemoram a sua história.
A expulsão dos moradores dos quilombos das suas terras só prejudicará a defesa da floresta.
A luta desencadeada para salvar a floresta tropical teve consequências imprevistas para os quilombos. O surto de desflorestação da bacia amazónica, ocorrido na década de 1970, causou indignação a nível mundial. O activista Chico Mendes lançou uma campanha destinada a reconhecer a importância da floresta amazónica e os direitos dos seus “povos tradicionais”, incluindo os habitantes dos quilombos. Entretanto, a ditadura militar desagregou-se, num estado de desordem provocado pela inflação e por escândalos. Em Outubro de 1988, o Brasil promulgou uma nova constituição democrática. Dois meses mais tarde, Chico Mendes foi assassinado. Mas era demasiado tarde para travar a sua causa: a nova constituição protegia os direitos dos povos tradicionais. Nela ficou igualmente declarado que os habitantes dos quilombos eram “os legítimos donos das terras que ocupavam, para as quais o Estado emitirá títulos de propriedade”.
“Na época, ninguém compreendeu as implicações”, afirma Alberto Lourenço Pereira, subsecretário do desenvolvimento sustentável do Ministério do Planeamento, responsável pelas políticas públicas relativas à terra. Os arquitectos da constituição imaginaram “um punhado de quilombos remanescentes algures no meio da floresta”, cujos anciãos seriam recompensados com os seus campos. Actualmente, crê-se existirem talvez cinco mil, ou mais, quilombos no Brasil, muitos dos quais na bacia amazónica, ocupando pelo menos 30 milhões de hectares – uma área com a dimensão de Itália. Os conflitos eram inevitáveis: “Muitas outras pessoas também querem essa terra”, conclui Alberto Pereira. Em fúria, fazendeiros de gado, mineiros, agricultores, especuladores imobiliários e donos de plantações acusaram muitos territórios de quilombo de serem apropriações de terra contemporâneas em busca de fortuna rápida. “Deu-se uma explosão de ressentimento”, diz Manuel Almeida, chefe das Terras Quilombos de Jambuaçu, uma associação de 15 comunidades do Baixo Amazonas. “Houve gente no senado estadual que questionou a nossa legitimidade e tentou ajudar os agricultores de palmeira dendê e as empresas mineiras” que queriam a terra dos quilombos, afirma. Entre 1988 e 2003, só foram concedidos 51 títulos de propriedade a quilombolas. Jambuaçu obteve os seus títulos no Outono de 2008, mas apenas após uma longa e amarga disputa com fazendeiros de gado e mineiros.
O Brasil teve dificuldades em determinar com exactidão o que é um quilombo. De início, a definição (comunidade de descendentes de escravos fugitivos) parecia não levantar problemas. Mas como deveria a lei considerar lugares como Frechal, na floresta oriental do Brasil, onde os escravos que ajudavam os seus donos a remir dívidas receberam terra como recompensa, mas continuaram a ser perseguidos por agricultores na era pós-colonial? Ou as terras em Tocantins que, na década de 1860, foram concedidas pelo governo a milícias de escravos pelo serviço militar prestado durante a guerra contra o Paraguai? Em rigor, nenhum destes povoados foi fundado por escravos fugitivos. No entanto, todos eles eram comunidades autónomas fundadas por africanos, juntamente com índios, com culturas híbridas, longos historiais de maus tratos e sem qualquer título jurídico reconhecível às suas terras.
Para dar solução a estas disputas, em Novembro de 2003 o então presidente Lula da Silva definiu quilombo como qualquer comunidade que se identificasse como quilombo e que possuísse “antepassados africanos relacionados com um historial de resistência a opressão histórica”. Após o decreto de Lula, os quilombos emergiram em número tão elevado que assoberbou os organismos responsáveis pela avaliação das suas reivindicações. Cerca de 1.700 quilombos foram oficialmente reconhecidos e o seu número vai crescendo.
Enquanto a lista dos requerentes aumentava, os interesses empresariais e os ambientalistas aperceberam-se, com alarme, de que estes pequenos povoados afro-indianos estavam em condições de adquirir enormes extensões do Amazonas. Muitos quilombos tinham-se implantado em solo fértil com acesso ao rio e, por isso, ocupavam as terras mais valiosas da bacia amazónica.
Para o visitante que vem de fora, a fazenda pertencente a Maria do Rosário Costa Cabral e à sua família no estado de Amapá tem a aparência de paisagem tropical virgem: árvores altas, trepadeiras luxuriantes, solo lamacento coberto de vegetação em decomposição. No entanto, quase todas as espécies ali existentes foram seleccionadas e cultivadas por Maria do Rosário e pelos seus irmãos. Ao longo dos anos, plantaram limas, cocos, cupuaçu (um parente do cacau) e açaí (um fruto de palmeira muito popular devido ao seu alegadamente elevado teor em antioxidantes). Junto à margem do rio, eles promoveram o crescimento de arbustos e plantaram árvores de fruto para atrair os peixes até à floresta durante a enchente. E contudo toda a paisagem parece silvestre, pelo menos para os forasteiros.
A quinta localiza-se perto de Mazagão Velho, cidade fundada em 1770 por colonos portugueses oriundos de Marrocos, a quem a Coroa portuguesa ordenara que fossem realojados no Amapá, onde a sua presença supostamente dissuadiria incursões potenciais de colonos provenientes da Guiana Francesa, a norte. Para facilitar a transição, os colonos receberam várias centenas de escravos. A nova urbe foi projectada como uma cidade ao estilo europeu, com praças elegantes e arruamentos em quadrícula. Mas os colonos rapidamente fizeram a triste constatação de que Mazagão Velho era terrivelmente húmido. No prazo de uma década, os colonos pediram à Coroa que os transferisse para outro local. Por fim, quase todos acabaram por partir e os seus escravos deram consigo sozinhos.
Mantiveram-se livres desde que fingissem que não o eram. Os portugueses queriam poder informar o rei que havia um povoado a guardar o flanco setentrional do Brasil. À medida que os anos passavam, os descendentes dos africanos da colónia foram-se disseminando pelo território. Habitando as margens dos rios, os escravos sobreviveram da mesma maneira que os seus vizinhos índios: o rio fornecia-lhes peixe e camarão, as hortas davam-lhes mandioca e as árvores tudo o mais. Dois séculos de plantio, lavoura e safra constantes estruturaram a floresta. Utilizando de forma combinada técnicas nativas e africanas, criaram paisagens luxuriantes.
Maria do Rosário Costa Cabral é uma mulher forte de 62 anos, nascida num quilombo pobre chamado Ipanema. O pai passou a vida deambulando pela floresta em busca de árvores-da-borracha, extraindo-lhes sob a casca o látex semelhante a seiva. Incapaz de obter títulos legais para a sua terra, Maria do Rosário e a família viveram com dificuldades, vendendo camarão, frutos de palmeiras e óleos extraídos de árvores. Fundaram explorações agrícolas e foram sendo expulsos delas. Por isso, em 1991, ela e os irmãos adquiriram dez hectares nas margens do Igarapé Espinhel. Para não-amazónicos, a propriedade parecia banal. Situada no labirinto de pequenos afluentes que correm para o estuário do Amazonas, é inundada por cheias duas vezes por dia.
Maria do Rosário e a sua família lançaram-se ao trabalho. Plantaram árvores de madeira de crescimento rápido para as serrações a montante. Para o mercado, plantaram árvores de fruto.
Florestas cultivadas como a de Maria do Rosário Costa Cabral podem encontrar-se em toda a bacia do Amazonas. No entanto, os cuidados ambientais praticados nem sempre jogaram a favor dos quilombolas. É frequente as organizações ambientalistas partirem do princípio de que todas as actividades humanas contribuem para a degradação da floresta. Cerca de trezentos quilómetros a oeste de Mazagão Velho, os quilombos junto ao rio Trombetas geriram de maneira tão extraordinária as florestas que, em 1979, o Brasil criou uma reserva biológica com quase quatro mil quilómetros quadrados de extensão na margem oriental do rio. A legislação que instituiu a reserva proibia “qualquer alteração ao ambiente, incluindo caça e pesca na região”, enfurecendo as pessoas cujas famílias ali haviam vivido durante um século e meio. Dez anos mais tarde, meia dúzia de quilombos foram engolidos por uma nova floresta nacional de dimensão quase igual na margem ocidental do rio. A floresta permitiu a instalação de uma mina de bauxite, ao mesmo tempo que proibia o abate de árvores aos habitantes de longa data. “Estas pessoas são a razão pela qual a floresta ainda existe”, diz a antropóloga Leslye Ursini, do INCRA, organismo brasileiro responsável pelo ordenamento do território. “Agora estão a ser atacadas quer pelos ambientalistas quer pelos mineiros de bauxite.” Expulsá-los do seu território só prejudicará a floresta, explica ela.
Um ano depois de adquirir a sua propriedade, Maria do Rosário Costa Cabral teve uma surpresa desagradável: o seu título, à semelhança de muitos outros na Amazónia, estava numa confusão total. “Fomos ao escritório do INCRA saber se o título tinha sido processado”, conta. A família descobriu que “a propriedade pertencia oficialmente a outra entidade e que o título estava agravado com uma dívida fiscal em atraso”. Ela teria de pagar os impostos em atraso para ser dona dele. Durante mais de uma década, continuou a vender açaí, camarão e plantas medicinais em Macapá, capital do Amapá, acumulando dinheiro para liquidar a dívida fiscal. Obteve os títulos de propriedade em 2002. Um dia, tropeçou numa equipa de agrimensores que fazia o levantamento da sua exploração, espetando estacas e colocando fitas em redor das árvores. “Diziam: ‘Mas que excelente sítio de açaí, vamos dividi-lo em lotes e vendê-lo’”, recorda. De seguida, os compradores utilizariam os tribunais para expulsar os ocupantes ali presentes.
“Tive um ataque”, afirma. Mostrou os seus documentos a um inspector do INCRA. “Olharam para eles e disseram aos agrimensores: ‘Atenção a isto: vocês não podem roubar esta terra.’”
Em 2009, Lula assinou a Lei Provisória n.º 458, uma tentativa de resolver os problemas de posse da terra na Amazónia, causa de violência e destruição ecológica nos últimos 40 anos. A lei outorga títulos de propriedade aos quilombos cujos membros já ocupam a terra e possuem menos de 80 hectares cada. A lei foi contestada, em nome de grupos industriais e ambientalistas, e sob o argumento de que recompensa os ocupantes por se apropriarem ilegalmente da terra. No entanto, à medida que a lei é aplicada na maioria dos estados, há esperanças de que ela possa conduzir uma velha batalha a um final vitorioso, permitindo ao Estado investir em escolas e centros de saúde, coisa que não pode fazer enquanto a sua existência for contestada.
Falámos com Maria do Rosário Costa Cabral pouco depois de a lei ser assinada. Ela sacudiu a cabeça em sinal de aprovação, com vigor. “Já não era sem tempo”, afirmou.