Durante sete séculos, tribos celtas dominaram o Sul da Alemanha e amplos territórios na Europa Central antes de se renderem aos romanos.

Um fedor insuportável pairava sobre Le Mormont. O odor a carcaças e cadáveres a apodrecer emanava das valas abertas. Os mortos tinham sido decapitados e os cavalos, vacas e ovelhas sacrificados.  

Atiraram-nos para as valas através de condutas. Ou talvez os tenham enterrado no âmbito de uma cerimónia ritual. É certo que, aqui, aconteceram episódios horríveis. Pelo menos é essa a opinião dos arqueólogos Gilbert Kaenel e Lionel Pernet sobre o que aconteceu neste monte, num local que aparenta ter sido um campo de refugiados celtas junto do lago Genebra, na Suíça.

Até há pouco tempo, Gilbert foi director do Museu Arqueológico Regional de Vaud, chefiando os trabalhos de conservação e restauro das escavações no monte Mormont. Lionel é o seu sucessor. A equipa está a analisar dezenas de milhares de ossos e fragmentos de cerâmica, entre outras descobertas. Os especialistas tentam reconstituir o que aconteceu em Le Mormont há dois mil anos.

Quando os arqueólogos começaram a explorar o monte em 2006, antes de começar a actividade de mineração de greda prevista para o local, descobriram 250 valas. Algumas tinham sete metros de profundidade e outras penetravam na camada de greda, ainda mais abaixo. Continham fragmentos de cerâmica e cálices de bronze, bem como utensílios de ferreiro, machados de carpintaria e mais de 150 mós pouco ou nada usadas. Os investigadores quase não encontraram armas.

No entanto, havia ossos. Muitos pertenciam aos valiosos cavalos importados de Itália que eram um símbolo de estatuto entre os celtas. Também foram encontradas ossadas humanas, correspondentes a cerca de cinquenta indivíduos. Alguns foram depositados em posição de decúbito dorsal e outros foram sepultados sentados. Uma criança parcialmente decomposta fora atirada para uma das valas. Quatro pessoas tinham sido decapitadas. Alguns ossos mostravam marcas de fogo. Vários crânios não tinham mandíbula inferior, pois os celtas removiam-na frequentemente em contexto ritual. 

De início, Gilbert Kaenel e Lionel Pernet pensaram ter encontrado um local de culto em Le Mormont, mas não tardaram a duvidar da sua própria hipótese. Os locais sagrados são construídos para durar, mas, de acordo com a sua investigação, estas pessoas tinham ali vivido poucos meses. Não havia uma colónia a sério, possivelmente devido à inexistência de recursos aquáticos nas montanhas de greda. A água tinha de ser arduamente carregada até ao topo.

O que teria levado esta comunidade a matar as suas valiosas cabeças de gado e a abandonar as ferramentas e as mós? “Tudo isso era essencial para a sua sobrevivência”, interroga-se Gilbert. “Não iriam deitá-las fora sem uma boa razão.”

O arqueólogo conjectura que os celtas fugiram para o topo de Le Mormont num momento de puro desespero – possivelmente todos, excepto os homens capazes de lutar. A sua situação era tão irremediável que eles sacrificaram os seus bens mais importantes e até outros homens numa súplica pela ajuda dos deuses.

Na altura, aproximadamente no final do século II a.C, ventos de mudança varriam a Europa Central. Grupos de cimbros e teutónicos saqueavam o território celta correspondente ao Sul da Alemanha e à Suíça da actualidade. Roma também teve de se defender dos intrusos e, simultaneamente, alargou o seu domínio. Não muito longe de Le Mormont, uma povoação foi abandonada sensivelmente na mesma altura. Teria sido atacada?

Os celtas viviam em comunidades tribais independentes. Não sabemos ao certo se se consideravam uma só comunidade e se desenvolveram um sentimento identitário.

“Foi um período dramático, uma autêntica viragem de época”, resume Gilbert Kaenel. “Assinala o princípio do fim dos celtas.”

Sete séculos antes, precisamente quando o ferro estava a substituir o bronze como metal mais importante para o fabrico de armas e ferramentas, a Europa assistiu ao nascimento desta nova cultura. Os habitantes de uma região que se estende da Boémia ao Sul da Alemanha e à Borgonha desenvolviam um modo de vida partilhado. Construíram mamoas, praticaram rituais semelhantes, retrataram seres humanos e animais na sua arte figurativa e adornaram as suas roupas com alfinetes. É provável que comunicassem entre si num idioma indo-europeu comum, embora com dialectos diferentes. E passaram por uma revolução tecnológica que lhes deu ferramentas como a roda de oleiro e o moinho manual. Nessa época, a Grécia dominava todo o Mediterrâneo, com ramificações até ao mar Negro. Roma era pouco mais do que uma cidade-estado.

celtas borgonha

Bibracte. A capital dos éduos,  na Borgonha, era um  dos 150 ópidos celtas fortificados, incluindo  um em Manching, junto de Ingolstadt, na Baviera.  Os habitantes prestavam culto aos seus deuses e desenvolviam o comércio. Os artesãos cunhavam moeda e fabricavam jóias. Perto do final da sua época, os celtas eram quase uma civilização avançada. Fotografia: BERTHOLD STEINHILBER/LAIF

Os celtas viviam em comunidades tribais separadas. Os gregos referiam-se a eles como keltoi, os romanos chamavam-lhes gauleses. Não sabemos ao certo se se consideravam uma só comunidade e se desenvolveram um sentimento identitário. Historiadores e arqueólogos concordam que os celtas nunca formaram um império coeso. Muitos investigadores acreditam que os celtas não existiram como cultura individualizada e preferem referir-se a uma cultura da Idade do Ferro – frequentemente denominada Hallstatt e La Tène, numa referência aos sítios arqueológicos da Áustria e da Suíça, respectivamente — mas costumam concordar com o uso da palavra “celtas” como termo generalista para se referirem a uma civilização que se estendia da actual Turquia à Hispânia. Mesmo após o declínio na Europa Central, os celtas floresceram nas Ilhas Britânicas, onde o idioma celta se tornou dominante.

A actividade comercial dos celtas cobria longas distâncias. Integraram o conhecimento e os estilos de vida das culturas do Sul da Europa. Importavam vinho. Os indivíduos com aspirações sociais talvez exibissem cerâmica etrusca e outros objectos mediterrâneos simbólicos do estatuto. Criaram uma classe de elite, enterrando os seus dirigentes em sepulturas extravagantes, com armas e jóias. Foram construtores magníficos e erigiram as primeiras cidades a norte dos Alpes. No entanto, foram o único povo da Europa Central na Antiguidade que não evoluiu de maneira a transformar-se num estado. 

O seu destino também demonstra de que maneira a falta de cooperação, aliada às mudanças económicas, pode derrubar uma civilização. 
“A análise das tribos celtas, frequentemente rivais, impõe uma comparação com os actuais acontecimentos europeus”, diz a arqueóloga Susanne Sievers. “Muitas pessoas concentram-se apenas em si próprias, quando, na verdade, as pessoas são muito mais fortes juntas.” 

Estes primeiros celtas não deixaram uma língua escrita. Para investigar a sua história, é preciso recorrer a relatos de autores contemporâneos, como o historiador grego Heródoto ou o general romano Júlio César. No entanto, as suas obras têm frequentemente motivações políticas e expressam inegável parcialidade. A outra fonte importante é a arqueologia, que recupera mundos desaparecidos através de ruínas de edifícios, sepulturas, alterações do solo, cerâmica e ossos.

Dirk Krausse é arqueólogo do estado de Baden-Württemberg, no Sudoeste da Alemanha. No ponto mais alto de Heuneburg, entre o lago Constança e a cidade de Ulm, ele contempla um enorme sistema de muralhas e trincheiras. Foi construído por celtas há mais de 2.500 anos, para protegerem um povoado junto de um vau do rio Danúbio.

Heuneburg foi fundada aproximadamente em 620 a.C., durante o período inicial da era celta, no curso superior do Danúbio, num local onde o rio se cruza com uma antiga rota comercial que conduz primeiro ao Neckar e depois ao Reno. Segundo a hipótese proposta por Dirk Krausse, muitas rotas comerciais teriam sido desviadas das regiões a leste para este lugar, de modo a evitar os ataques lançados por nómadas a cavalo. Entre outras, contar-se-ia a Rota do Âmbar, utilizada para transportar a cobiçada resina de árvore fossilizada do mar Báltico para o Sul da Europa. 

A construção [de glauberg] demonstra que os celtas possuíam amplos conhecimentos científicos e observavam os fenómenos naturais durante longos períodos de tempo.

Heuneburg cresceu e transformou-se num entreposto comercial de longa distância através das passagens alpinas de passagem para Itália. No sentido inverso, as mercadorias e as ideias viajaram para norte – por exemplo, o conhecimento especializado necessário para construir a muralha da cidade com tijolos de barro. Nunca se vira nada assim na Europa Central, nem em vastas regiões de Itália. A muralha tinha 750 metros de comprimento e quatro metros de altura e estava revestida com reboco calcário branco. Tinha torres, um caminho de ronda e duas portas.

Dirk olha para o monte onde se erguem alguns dos edifícios reconstituídos. “No máximo, viveram aqui 3.500 pessoas”, comenta. “Roma não era muito maior nessa época e Atenas tinha provavelmente cerca de dez mil habitantes.” 
O arqueólogo está convencido de que o sítio, localizado no Sul da Alemanha, é a famosa cidade celta de Pyrene mencionada por Heródoto. 

No interior das fortificações, os artesãos fabricaram cerâmica requintada. As oficinas, as casas e os armazéns encontravam-se agrupados – um modelo primitivo de vida urbana. As descobertas arqueológicas sugerem um período relativamente pacífico. Apesar disso, registaram-se mudanças misteriosas. O complexo foi reconfigurado, mas os seus residentes abandonaram-no 170 anos mais tarde. Talvez as rotas comerciais mudassem de novo, resultando numa perda de importância da cidade celta e das suas povoações-satélite.

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Por volta de 620 a.C., os celtas construíram Heuneburg junto do Danúbio, no Sul da Alemanha. A sua arquitectura, sobretudo a muralha branca de tijolos (reconstituída em cima), era desconhecida fora da região do Mediterrâneo. Terá o estilo sido importado?

Há um sítio, particularmente fascinante para a equipa de Dirk Krausse, que exemplifica a antiga importância de Heuneburg. O arqueólogo aponta na direcção de duas mamoas de sepultamento, a alguma distância. “Ao entrarem pela porta principal, as pessoas olhariam para o horizonte entre as mamoas e veriam um promontório branco brilhante. É o Alte Burg. Existe uma ligação directa entre ele e Heuneburg.”

É difícil compreender a magnitude daquilo que os celtas criaram há 2.500 anos, quando construíram Alte Burg, que significa literalmente castelo antigo. Aqui, nos Alpes Suábios, utilizaram ferramentas simples para limpar e aplanar um monte semelhante a uma língua, com 340 metros de comprimento e 60 metros de largura — o tamanho aproximado de quatro campos de futebol — e equiparam-no com mais de cem bastiões de apoio. 

Os construtores ergueram então uma muralha ao longo de toda a extensão do complexo: tinha 13 metros de comprimento por dez metros de altura. Na época celta, não havia floresta em redor do Alte Burg. O espigão de calcário erguia-se, branco e luminoso, no seu entorno – um símbolo de autoridade e poder visível ao longe.

De um lado do planalto, há uma mancha florestal densa. Uma vala com cinco metros de comprimento foi escavada há mais de um século. Continha os restos de seis seres humanos, mas os seus vestígios mortais tinham desaparecido. Quando os arqueólogos regressaram para examinar a mesma zona em meados da década de 2000, descobriram mais fragmentos de um esqueleto.

Os investigadores tentam resolver o mistério. Seria Alte Burg um local de culto? Dirk Krausse formulou uma hipótese ousada: segundo ele, os habitantes de Heuneburg não só utilizaram técnicas de construção de muralhas urbanas vindas de Itália, mas também importaram o espectáculo das corridas de quadrigas. Além de um Circo Máximo celta, seria o Alte Burg também um espaço para rituais, incluindo sacrifícios humanos? Serviriam as competições para unir os celtas da região e transmitir-lhes a noção de identidade partilhada? Dirk acha que isso é possível, mas adverte que “não sabemos muito sobre a maneira de pensar e o sistema de crenças destas pessoas. Ainda há muito por descobrir”.  

Enquanto Heuneburg era construído, um sítio celta imediatamente a norte da actual Frankfurt já ganhara proeminência: o planalto de Glauberg, que se ergue entre os montes.

Os especialistas em botânica antiga conseguiram reconstruir a paisagem, devolvendo-lhe o aspecto que poderia ter na época celta. Perceberam que a zona não era muito diferente então. O museu local tem aliás uma fachada de vidro com vista para a paisagem ondulante da região de Wetterau, intercalada com manchas florestais. “Também deveria ser uma zona florestal nessa época”, diz Axel Posluschny, director de investigação em Glauberg. O sítio tinha várias explorações rurais familiares, bem como algumas aldeias de maiores dimensões, rodeadas de zonas de cultivo da cevada, trigo (da especialidade Triticum monococcum), espelta e lentilhas. A policultura era provavelmente utilizada para minimizar o risco de um fracasso total das culturas. Os arqueozoólogos identificaram ossos de cabras, porcos e galinhas. Foram encontrados vestígios de corça e de coelho. “A ementa era bastante variada, mas a caça não representava um grande papel”, diz Axel Posluschny.

Havia três indivíduos enterrados no sopé do Glauberg. Os arqueólogos que estudaram as suas sepulturas descobriram fragmentos de esqueletos, bem como uma colecção invulgarmente rica de artefactos: espadas, um escudo, pontas de lança, braçadeiras e colares dourados e duas canecas de bronze com vestígios de hidromel. Os investigadores também descobriram a estátua de um homem de arenito, com dois metros de altura, no sopé do monte. A estátua tem uma coroa de azevinho que, curiosamente, se assemelha, às orelhas do Rato Mickey. Esta escultura singular tornou-se um símbolo do sítio. 

Os arqueólogos de Glauberg ficaram ainda mais impressionados com o fosso gigante e o “caminho processional” perfeitamente alinhado com a posição do grande lunistício. Este evento astronómico, durante o qual a Lua nasce no seu ponto mais meridional, ocorre apenas a cada 18,6 anos. O que significa? “As muralhas e os fossos destinam-se a impressionar”, diz Axel Posluschny. “Mas o conhecimento é sempre poder e este sítio simboliza esse poder. Também nos mostra que os celtas possuíam amplos conhecimentos científicos e observavam os fenómenos naturais durante longos períodos de tempo.”

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Glauberg. O complexo sagrado, com duas mamoas de enterramento, muros e um caminho processional, abre perspectivas sobre a região fértil de Wetterau, na Alemanha. Esta área de agricultura intensiva remonta à época celta. Produtos de subsistência como a cevada, as lentilhas, trigo e espelta foram aqui cultivados. GEORG KNOLL/LAIF

Essa tarefa caberia possivelmente aos druidas. No entanto, sabe-se muito menos sobre eles do que os fãs da actualidade afirmam. O cronista e filósofo grego Posidónio descreveu estes homens misteriosos. César menciona os deuses que eles procuravam contactar (Mercúrio, Minerva, Marte), mas os celtas propriamente ditos não deixaram qualquer informação. Os druidas transmitiam sempre o seu conhecimento através da tradição oral. Não há documentos, nem evidência arqueológica da existência de líderes espirituais. Não há sepultura que o indique, mas os locais sagrados e sacrificiais sugerem a existência de uma classe sacerdotal organizada.

Para a investigadora Susanne Sievers, “os druidas eram provavelmente os académicos do seu tempo. Estudavam astronomia, juntamente com política e economia. E eram conselheiros dos governantes”. É possível que essa seja a razão pela qual participaram em grandes projectos de construção. Talvez os seus conselhos fossem procurados para o planeamento do caminho processional de Glauberg, bem como em assuntos de guerra e paz. Isso também pode ter acontecido aquando do saque de Roma, um acontecimento com consequências dramáticas para celtas e romanos.

A derrota celta não foi apenas uma vitória militar romana. antes do início do século i a.C., os romanos já tinham estabelecido províncias no sul de frança.

Desde muito cedo que os guerreiros celtas ofereceram os seus serviços a outros exércitos, incluindo as forças romanas. Os comerciantes traziam informação sobre os luxos do Sul. Atraídos por relatos sobre melhores condições de vida e provavelmente empurrados por maus anos agrícolas devidos à deterioração das condições climáticas, dezenas de milhares de celtas reuniram-se por volta de 400 a.C. para se encaminharem para sul, atravessando os Alpes.

Chegaram a Roma em Julho de 387 a.C. Encontraram ruas e praças desertas. Vários milhares de habitantes tinham fugido, deixando os idosos, as mulheres e as crianças amontoados nas suas casas. Os invasores celtas apoderaram-se do Fórum, pilharam a cidade e massacraram os moradores remanescentes. Contudo, a legião romana não se rendeu e, após um longo combate, expulsou os invasores. A humilhação de terem sido ameaçados na sua própria terra permaneceu profundamente enraizada na sua memória – talvez da mesma forma que o 11 de Setembro faz parte da memória colectiva dos norte-americanos. O acontecimento marcou a relação entre romanos e celtas até à derrota final dos celtas, 330 anos mais tarde.

Entretanto, os centros económicos celtas mais importantes floresceram no sopé dos Alpes orientais. A razão foi o sal. Nos vales altos de Hallstatt e em Dürrnberg, o sal encontra-se perto da superfície. O sal é essencial para os seres humanos e para o gado, sendo utilizado para temperar os alimentos, preservar a carne e curtir couro. Dürrnberg fica nas proximidades da zona navegável do rio Salzach, através do qual o “ouro branco” era transportado para comercialização.

Holger Wendling conduz ao longo de uma estrada rural pelos montes baixos, apontando para a esquerda e para a direita. O director do Departamento de Investigação de Dürrnberg do Museu Celta Hallein, sabe exactamente onde as pessoas viviam – em aldeias e explorações rurais. Dürrnberg é estudado há décadas. Sendo um centro do comércio de sal, Dürrnberg vendia o produto a toda a Europa Central. Era uma “espécie de zona económica especial de mineração e outras indústrias”, diz Wendling.

A extracção mineira exigia muita mão-de-obra e dependia do investimento da abastada classe dirigente. O sal era usado para outras finalidades, além da preservação da carne. Também conservou artefactos deixados para trás pelos celtas. No interior da montanha, os arqueólogos descobriram sapatos de cabedal com atacadores bem preservados, bem como excrementos humanos. Uma análise fecal mostrou que os mineiros consumiam leguminosas e cereais e que muitos padeciam de parasitas como lombrigas e fascíolas hepáticas. Apesar disso, algumas pessoas viviam até aos 80 anos. Aproximadamente em 1573, mineiros da época descobriram restos de dois seres humanos nos poços.

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Hunsrück. Aproximadamente em  50 a.C., muitos celtas viviam em ópidos, mas a maioria eram agricultores. Na região alemã de Hunsrück, os arqueólogos reconstituíram o povoado de Altburg no alto do monte, com as suas casas com estrutura de madeira e outras edificações.  As famílias guardavam vacas, porcos, ovelhas  e cabras nos espaços abertos. BERTHOLD STEINHILBER/LAIF

É provável que os comerciantes de Dürrnberg fornecessem também sal a Manching, que era então a maior cidade a norte dos Alpes e um dos exemplos mais conhecidos de um ópido. Os arqueólogos usam este termo para designar povoações fortificadas construídas pelos celtas nos séculos II e I a.C., que aliavam a vida secular à espiritual, com residências, lojas e espaços sagrados.

Susanne Sievers, investigadora do Instituto Arqueológico Alemão, trabalhou durante mais de 30 anos em Manching, junto de Ingolstadt,  reconstituindo a vida local. Depois de entrarem pela muralha da cidade, erguida por volta de 125 a.C., os visitantes encontravam uma povoação de cariz aparentemente rural. Os moradores tinham um modo de vida complexo, hierarquicamente organizado e com divisão do trabalho. Cunhavam moeda e controlavam uma vasta rede comercial com os romanos e outros povos. Exprimiam-se por escrito em latim. Aperfeiçoaram o fabrico dos metais e do vidro. O número de habitantes poderá ter superado a fasquia dos dez mil, agrupados em pequenas unidades, cada uma ocupando uma área com cerca de cem metros quadrados. “Os celtas estavam no limiar de uma civilização avançada”, explica Susanne Sievers.

De súbito, a sua sorte mudou.

Sensivelmente na mesma altura em que o grupo celta procurou refúgio em Le Mormont, os residentes de Manching fortificaram a porta oriental, mudando o acesso à sua cidade. Talvez esperassem inimigos do Norte: cimbros e teutónicos foram forçados a abandonar as suas próprias povoações na península da Jutelândia, provavelmente devido a maus anos agrícolas. Talvez os inimigos fossem outros grupos celtas. Iniciou-se assim uma longa fase de declínio: um inventário arqueológico sugere que Manching comprou menos ânforas e fabricou menos peças cerâmicas fortificadas com grafite, que seriam importadas.

Talvez as rotas comerciais deixassem de ser seguras. Os residentes de Dürrnberg também passaram por uma crise nessa mesma época. Será que o seu sal já não podia ser transportado em segurança, conduzindo ao colapso dos seus mercados de exportação?

Cerca de 50 a.C., a porta oriental de Manching ardeu e nunca foi reconstruída. Ainda mais relevante é o facto de os residentes nunca terem removido os escombros.

Na sua obra escrita mais famosa, César referiu-se à campanha militar contra os celtas desta época como Guerras da Gália. Combateu contra os seus inimigos do Norte a partir de 58 a.C. Estavam em jogo o seu poder sobre os territórios gálicos, bem como a sua fama, glória e o seu futuro enquanto político. A vergonha, senão mesmo o trauma, da derrota de Roma três séculos antes ainda não tinham sido esquecidos. Para os celtas, tudo estava em jogo. Conseguiriam viver em liberdade ou tornar-se-iam mais uma província romana, juntando-se aos seus reinos distantes nos actuais territórios da Tunísia e da Líbia, zona ocidental da Turquia e da Península Ibérica?

A batalha decisiva travou-se no Verão de 52 a.C., em Alésia, na região oriental de França, onde o líder celta Vercingetórix se barricara com dezenas de milhares de guerreiros. César e as suas tropas construíram um gigantesco anel de fortificações – estruturas de madeira e trincheiras – que cercavam eficazmente o seu alvo. Só então, numa época de grande angústia, Vercingetórix conseguiu unir grupos celtas isolados e rivais. Uma força com cerca de 20 mil guerreiros de toda a Gália acorreu a socorrê-lo. Seguiu-se uma batalha feroz, mas os celtas acabaram por se render às tropas romanas, tacticamente superiores e bem treinadas. César descreveu a derrota celta com quatro palavras sucintas: “Vercingetorix deditur arma proiciuntur” ou “Vercingetórix rendeu-se, as armas foram depostas”.

A derrota celta não foi apenas uma vitória militar romana. Antes do início do século I a.C, os romanos tinham fundado províncias no Sul de França, fortalecendo os laços económicos com determinadas zonas da Gália. O comércio de vinho e de outros produtos aumentou. Algumas aldeias celtas centrais floresceram como entrepostos comerciais mesmo após o final das Guerras da Gália. O progresso revelou-se tão lucrativo para os comerciantes romanos como para os celtas.

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Inglaterra. A cruz celta (exemplar proveniente do  condado inglês de Kent) é um símbolo comum  na arte sacra medieval, estando associada às  Ilhas Britânicas. O gaélico ainda é amplamente falado em algumas regiões. É um legado  da cultura europeia primitiva.  BERTHOLD STEINHILBER/LAIF

No entanto, como descobriu Sabine Hornung, arqueóloga e professora na Universidade de Saarland, o mesmo não se passou em todo o lado. A fortaleza do monte de Otzenhausen, na região ocidental da Alemanha, começou por ser um povoado de pequenas dimensões. Por volta de 100 a.C. aumentou de tamanho, tornando-se um grande centro, mas 50 anos depois, entrou em declínio e poderá ter sido abandonado. Hornung crê que os seus moradores talvez partissem devido à fome causada pelos romanos ou perdido a sua ligação ao progresso devido à localização geográfica marginal do povoado, no território oriental do Treveri celta.

Mudanças económicas ocorridas no período tardio resultaram numa migração generalizada. As comunidades mudaram-se para novos centros, à semelhança do que hoje acontece, quando as pessoas se deslocam das zonas rurais para as grandes cidades. 

Regiões inteiras foram abandonadas, talvez não devido a mortes epidémicas, como alguns investigadores propõem, mas porque as pessoas perderam os seus meios de sobrevivência. 

As Guerras da Gália terminaram com a derrota militar dos celtas. No entanto, eles não tardaram a ser integrados na vida romana e não foi difícil para os romanos integrar os celtas. Os membros da elite celta prosperaram particularmente nesta nova era, a avaliar pelas suas sepulturas. “Por que haveriam de ser inimigos dos novos governantes?”, pergunta Sabine Hornung. As classes mais altas teriam influenciado o resto da população.

Os arqueólogos imaginam que a viragem para a cultura galo-romana se fez à custa do modo de vida celta, mas essa transição foi gradual. 
Os romanos trataram de tudo com habilidade. “Permitiram que muitas cidades celtas mantivessem uma administração própria. Também os deixaram conservar os seus locais e objectos sagrados e autorizaram a realização de assembleias de líderes tribais, mas as decisões finais eram suas”, diz o arqueólogo especialista no Império Romano Günther Moosbauer, morador na cidade bávara de Straubing. No âmbito da sua estratégia, “criaram fóruns, mercados que vendiam produtos romanos como tecidos, lamparinas e vinho. Dessa forma, conseguiram convencer os celtas das vantagens do estilo de vida romano”. 

Com base nos seus achados, os investigadores podem agora descrever com maior exactidão a maneira como os celtas viviam, as suas realizações e a forma como desapareceram. Apesar disso, muitas questões sobre esta cultura ancestral permanecem em aberto. Há hipóteses que aguardam confirmação. Seria o Alte Burg uma arena de circo celta primitiva e Le Mormont um campo de refugiados? Maquinaria pesada está a escavar a montanha de calcário no sítio suíço onde há poucos anos os arqueólogos descobriram ossos e peças de cerâmica.

No caminho de regresso, descendo o cume de Mormont, Gilbert Kaenel, o investigador dos celtas residente em Lausanne, conduz ao longo de uma estrada estreita na encosta posterior do monte. À sua frente, a cordilheira do Jura ergue-se sob o sol brilhante. Dentes-de-leão florescem nos prados. Bosques dispersos avistam-se aqui e além. O ambiente é sereno. O arqueólogo olha para a esquerda e para a direita, mostrando um sorriso travesso: “Quem sabe o que mais se esconde aqui?”.