Conhecida por muitos nomes (Matoaka, Amonute ou Rebeca), a mulher powhatan recordada hoje em dia como Pocahontas viveu somente duas décadas, mas a sua acção estendeu-se desde Werowocomoco, na actual Virgínia (nos Estados Unidos), até à Grã-Bretanha, onde se encontra enterrada. Mais extraordinária ainda foi a difusão da sua história, ou melhor, da sua lenda, através de uma infinidade de criações literárias, de pinturas e, sobretudo, do cinema, em particular a célebre produção da Disney estreada em 1995.

Pocahontas manto

Manto de Powhatan, o pai de Pocahontas, constituído por quatro peles de alce com incrustações de conchas. Fotografia de Bridgeman / ACI.

Paradoxalmente, apesar desta enorme popularidade e de se ter tornado um símbolo cultural para as comunidades indígenas e para os norte-americanos, é provável que muitos leitores nada saibam sobre a vida e os êxitos de Pocahontas, já que a personagem real foi muito diferente do que foi mostrado pela ficção contemporânea.

Nascida em 1595, Pocahontas pertencia pelo lado paterno ao povo pamunkey, destacado membro da Confederação Powhatan, um grupo de cerca de trinta povos ou nações que por sua vez faziam parte do grupo linguístico algonquino. O próprio pai de Pocahontas, Wahunsenacawh (também conhecido por Powhatan), foi líder da confederação, o que levou a que a jovem fosse considerada uma“princesa”pelos europeus que chegaram à América do Norte. O colono inglês John Smith, na sua História geral da Virgínia e Nova Inglaterra (1624), falava de Pocahontas com a linguagem reservada à nobreza: quando ela visitou o assentamento de Jamestown para lhes levar comida, ia acompanhada do “seu séquito” e, durante a estada em Inglaterra, foi conhecida como “Lady Rebeca”. Contudo, esta qualificação não corresponde à realidade da organização social e política dos povos ameríndios.

Pocahontas povoado

O povoado no qual cresceu Pocahontas. Em 2003, descobriram-se, no terreno de uma quinta na Virgínia, os vestígios de Werowocomoco, a casa do pai de Pocahontas. Ilustração de Adrian Niu / National Geographic Image Collection. Clique na imagem para ver detalhes.

Invasores europeus

A vida de Pocahontas, tal como a de todo o seu povo, mudou radicalmente em 1607, quando uma centena de ingleses chegados a bordo de três embarcações fundaram a colónia de Jamestown, na Virgínia. Os colonos europeus esperavam conseguir metais preciosos e encontrar uma passagem directa para o oceano Pacífico e para o Oriente, mas ambos os sonhos não tardaram a desvanecer-se.

rio James

Meandros do Rio James. Os colonos ingleses fundaram Jamestown nas margens do rio James, a mais de 50 quilómetros do oceano, com o objectivo de se resguardarem de ataques espanhóis. Fotografia de George Steinmetz / Getty Images.

No continente, acabaram por enfrentar um objectivo muito mais prosaico: cultivar o solo para se abastecerem durante o Inverno. Esse período dramático custou a vida, em poucos meses, a mais de metade dos colonos e impulsionou os sobreviventes a iniciar contactos com os indígenas da zona para obter provisões.

Os powhatan ofereceram-lhes desde carne de caça até nutritivos vegetais. Em troca, mostraram especial interesse em obter cobre, um metal usado na elaboração de utensílios para diversas ferramentas de caça e para cujo fornecimento tinham até então dependido de uma tribo vizinha com a qual estavam em conflito. A chegada de produtos europeus era uma boa forma de diversificar as suas redes comerciais e de não depender economicamente dos seus adversários. Neste sentido, pode afirmar-se que os colonos virginianos e os powhatan tinham motivos parecidos e mutuamente benéficos para estabelecer – embora de forma cautelosa – relações comerciais.

colonos

Em Abril de 1607, chegaram à baía de Chesapeake três navios enviados de Inglaterra pela Companhia da Virgínia. Durante duas semanas, exploraram a zona até dar com uma península na foz de um rio, um local pantanoso e pouco saudável, mas fácil de defender. Baptizaram a colónia como Jamestown, em homenagem ao rei James de Inglaterra. Construção da colónia de Jamestown em 1607, Ilustração.

Pocahontas deverá ter entrado em contacto com os europeus neste contexto. Como filha do grande chefe powhatan, lidava com os colonos que se queriam estabelecer no território do seu povo. As fontes europeias apresentam Pocahontas a dividir alimentos pelos colonos que ficavam sem comida, o que garantiu a sua lenda como uma mulher bondosa e plena de caridade, emblema dos valores que posteriormente os norte-americanos considerariam essenciais no seu sentimento de identidade nacional partilhada.

Embaixadora indígena

A realidade era muito diferente. A autoridade das mulheres sobre os alimentos não foi bem aceite pelos ingleses, que insistiam em pedi-los aos powhatan errados. As mulheres da sociedade powhatan, tal como em muitos grupos matriarcais, tinham um destacado papel. Só se casavam com indivíduos capazes de mostrar a sua coragem.

Jhon Smith

John Smith. Este marinheiro de origens humildes é uma personagem decisiva nos primeiros anos da colónia de Jamestown. Retrato anónimo do século XVII.

Um homem incapaz de se abastecer por si jamais seria aceitável para uma mulher powhatan. Além de cultivar e preparar os alimentos, cuidar das crianças e fazer ferramentas e tarefas domésticas, incluindo roupa, as mulheres, graças à sua natural força física, construíam igualmente casas comunitárias que protegiam o grupo e sulcavam os pântanos em canoas.

Podiam ser chefes e eram consideradas fontes de sabedoria e autoridade em múltiplos aspectos. Este facto, e não uma bondade feminina inata, explica o protagonismo de Pocahontas nas relações do seu povo com os ingleses.

Pocahontas

Salvo In Extremis. O episódio do capitão John Smith cativo pelos índios e salvo por Pocahontas da morte no último momento, transformou-se numa imagem icónica das origens dos Estados Unidos. Em cima, ilustração de 1874.

Os powhatan esperavam reciprocidade por parte dos europeus, mas estes não cumpriram a sua parte do acordo: embora tenham aceitado a comida que lhes era oferecida, negavam-se a fornecer um fluxo estável de cobre – provavelmente, porque também não o tinham ao dispor. A isto acrescentou-se a posterior expansão das explorações agrícolas inglesas à custa das terras e dos recursos dos indígenas. Esses acontecimentos originaram uma espiral de conflitos e conduziram a décadas de fracassos por parte dos europeus na tentativa de criar uma colónia sustentável e resistente.

Pocahontas não só foi testemunha da deterioração das relações entre o seu povo e os colonos. É muito provável que tenha também participado na negociação do tratado pela parte powhatan. Acompanhou o pai em duas perigosas missões pacifistas para defender os interesses do seu povo e, quando os powhatan declararam guerra aos recém-chegados entre 1610 e 1614, ela própria empunhou as armas e saqueou povoados ingleses, da mesma forma que noutras ocasiões entregou aos colonos o que tinham prometido aos powhatan.

Pocahontas

À chegada dos ingleses, existiam cerca de 15 mil índios powhatan. Viviam em pequenas aldeias, geralmente protegidas por cercado. Sabe-se que acreditavam num deus supremo chamado Ahone, mas temiam sobretudo Okeus, um espírito vingativo que os ameaçava com “tempestades e trovões” se não o apaziguassem ao fazer os sacrifícios devidos. Na imagem, cabana de um povoado Powhatan recriado no sítio histórico de Jamestown.

A dimensão histórica de Pocahontas é, assim, muito diferente da imagem romântica que se associa normalmente a ela. É evidente que os powhatan valorizavam a filha de Wahunsenacawh e que confiavam nela, já que foi encarregada das negociações pela libertação de prisioneiros e pela manutenção das relações pacíficas entre o seu povo e os colonos através da partilha de alimentos.

Pocahontas mapa

Expulsos das suas terras. No fim do século XVI, o pai de Pocahontas unificou sob a sua égide o conjunto de povos powhatan a leste da baía de Chesapeake para formar um pequeno “reino” chamado Tsenacomoco. Os 15 mil habitantes viviam em dezenas de povoados dedicados à caça, pesca e à agricultura de subsistência. Em 1607, uma centena de colonos ingleses instalou-se numa península desabitada. Apesar da mortalidade causada pela fome e pelas infecções, em cerca de 15 anos chegaram seis mil europeus vindos de Inglaterra. A este fluxo demográfico, que não deixou de crescer, somou-se a expansão das culturas de tabaco e de gado, o que em poucas décadas expulsou os indígenas das suas terras ancestrais. Mapa de NG Maps.

É provável que esta actuação de Pocahontas tenha relação com o episódio central da sua vida. No fim de 1607, o líder da colónia, John Smith, foi capturado pelos powhatan e, segundo ele próprio relatou, Pocahontas salvou-o da execução. Talvez este episódio possa ser entendido no contexto ritual powhatan de aceitação de Smith como irmão e aliado.

Matrimónio ou rapto?

Mais do que sua salvadora, Pocahontas teria sido a sua guia cultural na cerimónia powhatan de aceitação de estranhos. Já foi anteriormente dito que Pocahontas foi testemunha e participante da guerra aberta que o seu povo e os colonos mantiveram entre 1610 e 1614. Como intermediária entre ambos, Pocahontas participou na defesa dos termos do acordo comercial entre os powhatan e os ingleses. Foi precisamente o desempenho desta função que deu azo ao famoso episódio do “casamento” de Pocahontas e John Rolfe, um dos principais colonos de Jamestown, em 1613. Na visão tradicional e romântica norte-americana, o acto simbolizaria o encontro e a fusão entre europeus e indígenas, mas pode ser visto de forma diferente na perspectiva indígena.

Pocahontas

Em 2014, quando os Estados Unidos celebraram o 400.º aniversário do casamento de Pocahontas com Rolfe, os críticos indígenas rejeitaram a visão utópica de uma powhatan virginal apaixonada por um pioneiro branco. Citando William Strachey, administrador colonial de Jamestown, e a tradição indígena, estes críticos asseguram que Pocahontas, antes de ser capturada pelos ingleses em 1613, já se juntara ao filho do chefe da nação potomac e tinha tido um filho com ele. Embora não se descarte que Pocahontas decidisse trocar o seu primeiro par por Rolfe, o seu provável casamento forçado aparece como sinal de violência colonial e patriarcal que continua a afectar os Estados Unidos. Na imagem, John Rolfe e Pocahontas. Óleo de James Glass. 1845.

As circunstâncias que conduziram a este enlace estão relacionadas com o conflito armado entre índios e ingleses que eclodira em 1610. Em 1613, o colono Samuel Argall entrou no rio Potomac de barco, à procura de cereais.

Pocahontas

O baptismo de Pocahontas. Em Washington, no Capitólio, pode observar-se um óleo de grandes dimensões (3,6 x 5,5 m), intitulado O baptismo de Pocahontas, realizado pelo pintor da Virgínia John Gadsby Chapman em 1840. Num edifício de arquitectura senatorial, Pocahontas aparece ajoelhada perante uma pia baptismal, vestida de branco e rodeado por legisladores e colonos, além do seu irmão e de outros membros da sua família. No quadro, Pocahontas é representada com traços caucasianos e com um vestido branco, associado no Ocidente à pureza, à juventude e ao papel de princesa. A obra de Chapman faz parte de uma série de pinturas preservadas no Capitólio que ilustram o mito fundacional dos Estados Unidos. Neste sentido, o baptismo de Pocahontas representa a propagação do cristianismo pela América do Norte e, portanto, a conquista espiritual dos índios pelos europeus e o direito destes últimos sobre as terras colonizadas. Além disso, a eleição de mulheres para simbolizar o renascimento de uma América cristã relembra o uso da figura feminina para representar os valores mais apreciados no Ocidente, como a justiça, a liberdade e o comércio.

Ao parar no povoado de uma tribo aliada descobriu que Pocahontas estava ali de visita. Argall conseguiu enganá-la para que subisse a bordo da sua embarcação e levou-a para Jamestown, com a intenção de a usar como refém para que os powhatan devolvessem sete colonos entretanto capturados. Em Jamestown, Pocahontas converteu-se ao cristianismo e, pouco depois, casou-se com John Rolfe. Não se sabe se o fez de livre vontade, aceitando a proposta sincera de Rolfe, ou se pelo contrário terá sido forçada a tal de forma violenta ou por chantagem. Alguns académicos defenderam que ela terá sido violada por Rolfe e talvez por outros colonos, e retirada à força da Virgínia – o que parece plausível perante a ausência de documentação que confirme o seu matrimónio. Depois, foi exibida em cruéis espectáculos públicos em várias cidades britânicas, antes de morrer prematuramente por doença ou até por envenenamento. Não seria estranho terem-na levado à força da Virgínia: o navegador Martin Frobisher levara anteriormente três inuit para Inglaterra contra a sua vontade em 1577 e estes também faleceram ali.

A viagem de Pocahontas para Inglaterra

Em qualquer dos casos, devem ser considerados os benefícios que a união formal da filha de um grande chefe com um colono inglês traria aos powhatan: quer tivesse casado por sua própria vontade, por afecto ou por sentido de dever, o casamento de Pocahontas com Rolfe deve ser percebido num contexto muito concreto – o de cumprimento do dever perante o seu povo. O amor é um critério europeu e moderno do matrimónio e a componente romântica só surgiu nos últimos dois séculos.

Pocahontas

Pocahontas foi recebida por James I em 1617 no salão Banqueting House, a única parte ainda preservada de Whitehall. Fotografia de Alamy / ACI.

Tal como a rapariga bem sabia, o seu casamento reforçaria as obrigações que ambos os povos tinham pactuado no que tocava às relações comerciais e em relação à soberania territorial. Não é casualidade, portanto, que a sua união ficasse conhecida por “trégua de Pocahontas”.

Fruto do casamento com Rolfe, em 1615, Pocahontas teve um filho e, em seguida, foi para Inglaterra juntamente com o marido. Ali visitou distintas cidades, assistindo a recepções e funções teatrais, transformada num espectáculo para o público britânico. Em 1616, várias gazetas inglesas dedicaram-lhe artigos e relataram as suas actividades, publicando também desenhos e gravuras com a sua imagem.

É muito eloquente que não existam artigos sobre Rolfe nem sobre o filho de ambos, Thomas. O exotismo de Pocahontas como princesa “índia” ou “selvagem” casada com um plebeu espantava e escandalizava aqueles com quem se relacionava. A Companhia da Virgínia aproveitou esta notoriedade para enfatizar os progressos alcançados na “civilização” dos povos indígenas que povoavam os territórios que projectava colonizar.

Pocahontas tornou-se o símbolo de uma colonização prometedora, tal como o seu casamento com o colono John Rolfe e o seu filho foram um símbolo de êxito da colonização inglesa.

Índia

Malinche e Sacagawea. Pocahontas não foi a única mulher indígena cuja história foi distorcida e que adquiriu cores românticas em benefício dos colonizadores europeus. Entre elas contam-se Malinalli ou Malinche, que esteve com Hernán Cortés durante a conquista do México, e Sacagawea, uma índia soshone que acompanhou Lewis e Clark na sua expedição de leste a oeste dos Estados Unidos (1804-1806). Na imagem, Sacagawea indica a rota correcta a Lewis E Clark. Óleo de N. C. Wyeth. 1930.

Por seu turno, ela continuou a agir em benefício da sua comunidade. Embora lidasse com os ingleses, não deixava de lembrar as suas obrigações a quem ela acreditava que tinha algum poder sobre a colónia virginiana. Muito mais tarde, John Smith recordou que, quando a encontrou numa recepção em Plymouth, Pocahontas contou quão feias foram as promessas quebradas pelos colonos e rogou-lhe que obrigasse o seu povo a cumprir os acordos.

Embora não exista documentação dos seus encontros com o rei James I, com quem se reuniu em duas ocasiões, pensa-se que Pocahontas terá apresentado as mesmas queixas. A dúvida, essa, ficou para sempre: teria Pocahontas recebido do pai a missão de moldar as relações internacionais do seu povo?

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