pirógas em portugal

A piroga monóxila é extraída a partir de um só tronco. A opção garante robustez e coesão. A mais antiga que se conhece terá cerca de 10 mil anos. Nas pirogas mais antigas, usavam-se instrumentos de pedra ou rochas afiadas. Várias guardam evidências do uso de fogo para a debitagem do interior. Nem todas as pirogas navegaram. Num exemplar encontrado no rio Lima em 2003, a madeira estalara e o projecto foi interrompido precocemente. Ilustração: Anyforms. Fonte: Francisco Alves (2013), “A Tradição Monóxila Náutica em Portugal e no Brasil”.

Novas pirogas monóxilas encontradas em Portugal ajudam a explicar os primórdios da navegação.

Em 1889, o arqueólogo Sebastião Estácio da Veiga era um homem fatigado. Tinha 71 anos e ligara-se quase acidentalmente ao tema, apesar de trabalhar na Subinspecção Geral dos Correios e Postas do Reino. Todas as carreiras passam por um momento definidor. No caso de Estácio da Veiga, esse momento ocorreu no Inverno de 1876, uma estação terrível no Sul de Portugal, durante a qual as tempestades e cheias redesenharam o litoral. Perante as notícias de artefactos submersos que emergiam depois das cheias, o governo deulhe instruções para fazer um levantamento dos tesouros arqueológicos. Dessa recolha, nasceram as “Antiguidades Monumentais do Algarve”, publicadas até ao ano da sua morte, em 1891.

Um dos debates na arqueologia europeia de então prendia-se com a navegação humana – quando começara e com que embarcações? “Grosso modo”, lembra o arqueólogo Francisco Alves, “há jangadas, canoas de pele ou couro, canoas de casca e canoas ou pirogas monóxilas. Ora, são estas que aparecem no registo arqueológico. E começaram por aparecer a Estácio da Veiga.”

Na verdade, o historiador não chegou a observar nenhuma piroga. Para sua frustração, chegou tarde de mais. As duas pirogas de que tomou conhecimento – a norte de Peniche e perto do estuário do rio Mira – foram destruídas e queimadas para lenha antes de ele chegar. No terceiro volume das “Antiguidades”, queixou-se que “a incúria dos indiferentes deixou completamente estragar.” Antes, em 1876, um colega, Silva Ribeiro, comunicara-lhe a observação de uma piroga revelada pelo recuo da maré numa camada de lodo aluvial. Quando Silva Ribeiro voltou para recolhê-la, nada restava.

Tardou um século até nova descoberta reavivar o interesse pelo tema. Em 1985, emergiram os restos de uma piroga do século X ou XI d.C e, onze anos mais tarde, foram encontradas mais duas (séculos VII/IX e VIII a X d.C.). O grande achado, porém, demorou um pouco mais. Em 2002, no rio Lima, foram detectados vultos no leito fluvial. Os trabalhos arqueológicos coordenados por Francisco Alves permitiram descobrir, entre 2002 e 2003, dois exemplares inesperados. Ambos datavam da Idade do Ferro (séculos V a II a.C.) e estão preservados há mais de uma década em solução aquosa para evitar a deterioração. “Pela primeira vez, tínhamos pirogas in situ e eram muito mais antigas do que as restantes”, diz. Provava-se, por fim, que também em Portugal se começara cedo a utilizar esta embarcação, como aliás referira o geógrafo Estrabão, na transição do século I a.C. para I d.C., contando que “para as marés altas e pântanos usavam-se embarcações de couro, porém, hoje, até as talhadas num só tronco são já raras”.

Em 2008, foram encontrados fragmentos de mais uma piroga no rio Lima. Contando com as duas observações indirectas de Estácio da Veiga, há portanto oito vestígios destas embarcações no território. Em 2013, Francisco Alves publicou um artigo, comparando as tradições monóxilas de Portugal e do Brasil. “Discute-se se a tradição foi levada para ali por europeus ou se nasceu independentemente, por poligénese”, diz. “Aceito o princípio de que comunidades humanas com recursos naturais e técnicas idênticas podem encontrar soluções técnicas semelhantes, pelo que é possível que as populações indígenas construíssem as embarcações antes da chegada dos europeus... Mas um facto é um facto: e no Brasil ainda não se descobriu nenhuma monóxila em contexto arqueológico pré-colonial.”

Na Primavera de 2014, os arqueólogos já não se queixam (tanto!) da incúria dos indiferentes. Duas pirogas medievais foram recuperadas, graças a uma parceria do Museu Nacional de Arqueologia (MNA) com o Museu de Arqueologia Subaquática de Cartagena e empresas privadas de transporte e seguros. Depois da impregnação em solução aquosa e transporte para Espanha, foram secas por liofilização. “Foi uma parceria virtuosa entre entidades públicas e privadas”, diz António Carvalho, o director do MNA.