Este relato começa há cinco mil anos, no meio de mugidos. A alvorada despertou e surgem no horizonte várias nuvens de poeira, encaminhando-se na mesma direcção.
São uma mensagem: a cerimónia está prestes a começar. Atrás da enorme poeira levantada por milhares de cascos pisando a terra, avista-se rapidamente a silhueta de centenas de chifres de bovinos e a figura estilizada de dezenas de nómadas que avançam lentamente, após uma viagem de vários dias. Os homens têm os olhos fixos na montanha sagrada. Não é a primeira vez que muitos deles participam nesse encontro periódico dos povos da região, mas também não lhes é difícil orientar-se: quase solitária no meio da planície, na bifurcação de dois rios, a colina rochosa com 950 metros de altitude vê-se à distância.
Quando lá chegam, as manadas distribuem-se pelas margens para saciar a sede. Alguns metros acima, nos abrigos rochosos, os pastores têm facilidade em controlar os seus animais, enquanto concluem as transacções comerciais por um produto indispensável para a saúde do gado: o sal transportado pelos homens da costa. Talvez ao entardecer cantem, dancem e partilhem, junto do fogo, as últimas notícias de terras distantes.
Falta, porém, terminar um rito, o mais importante: o dos artistas, ou xamãs, que, decididos a honrar a chegada às suas vidas da vaca doméstica, ser divino e dócil que dá leite e carne e que mudou a vida dos seus donos, decoraram as paredes de cavidades com pigmentos extraídos de seiva de raízes, areia ou poeira de rochas. Não são pinturas decorativas, são venerações. Gestos de adoração para com os seus animais, registados na pedra. Os seus autores são pioneiros: os primeiros pastores-pintores do Corno de África.
Também são mensageiros de um momento histórico. Graças a essas pinturas, sabemos hoje que, há cerca de cinco mil anos, aqueles encontros periódicos no monte solitário, a menos de cem quilómetros de Hargeisa, a capital da Somalilândia – território semidesértico situado no Norte da Somália, autoproclamado independente em 1991 e reconhecido apenas por Taiwan – eram mais do que meras reuniões de pastores. Aquela colina rochosa marca o início de uma nova era para o Corno de África: o momento em que a domesticação das vacas transformou os povos caçadores-recolectores em pastores.
Riqueza arqueológica excepcional
A Somalilândia declarou a sua independência há 30 anos, mas, sem reconhecimento internacional, não é possível fomentar programas arqueológicos de longa duração sobre o seu rico património histórico, no qual se incluem cidades medievais, caravançarais do deserto e belíssimas pinturas rupestres. Mapa: Ngm-E. Fontes: Jorge de Torres; Roger Joussume e Jean-Paul Cros, Art Rupestre Dans La Corne De L’afrique (2022)
1 Cidade medieval de Zeila
2 Cidade medieval de Abasa
3 Cidade medieval de Amud
4 Dhagax Kure
5 Cidade de Bulhar (finais do século XIX ou meados do século XX)
6 Cidade medieval e santuário de Aw Barkhadle
7 Laas Geel
8 Centro histórico de Berbera
9 Sítio medieval de Bandar Abbas
10 Sítio neolítico de Ceel Gerdi
11 Sítio medieval de Siyaara
12 Pinturas rupestres de Dhambalin
13 Forte otomano de Dubar
14 Cidade medieval de Fardowsa (actual Sheikh)
15 Caravançarai de Qalcadda
16 Cidade medieval de Maduuna
17 Necrópole pré-histórica de Shalaw
18 Necrópole de Xiis (séculos I-III)
19 Cidade e sítio medieval de Maydh
20 Pinturas rupestres de Karin Hegaan
As cerimónias antigas desapareceram há muito, mas delas surgiu um tesouro que permaneceu praticamente intacto. Com o passar dos séculos, o deserto secou os rios, os encontros de homenagem à vaca extinguiram-se e a montanha passou a chamar-se simplesmente Laas Geel, “poço para os camelos”, no idioma somali. As pinturas caíram no esquecimento durante cinco milénios… até quase anteontem. Há 20 anos, num achado próprio de outro século, uma equipa de arqueólogos franceses anunciou ao mundo a descoberta de um tesouro invulgar: Laas Geel, as pinturas rupestres mais importantes do Corno de África. Distribuídas por 23 abrigos sob rocha, sobrevivem cerca de quinhentas figuras humanas, de animais e símbolos geométricos num estado de conservação excepcional.
Xavier Gutherz, arqueólogo da Universidade Paul Valéry de Montpellier e líder daquela expedição francesa, ainda sente arrepios ao recordar o dia 4 de Dezembro de 2002. “Percebemos imediatamente que estávamos num lugar extraordinário. Não só pela densidade das figuras, como pela frescura e a cor dos pigmentos. Conheço bem a arte rupestre africana e não existe nada que chegue aos calcanhares de Laas Geel. Devido à sua composição, qualidade técnica e artística e estado de conservação, é o principal sítio de pintura rupestre do Corno de África.”
Os meios de comunicação internacionais, deslumbrados com as pinturas pré-históricas quase intactas, começaram a somar alcunhas para descrever a magnitude do achado: a Lascaux africana, a Altamira da Somalilândia, a Chauvet do Corno de África. Gutherz troça dessas metáforas, mas também sucumbe ao encanto dos artistas pioneiros desta região. “Em Lascaux, Chauvet ou Altamira, falamos do Paleolítico; em Laas Geel, do Neolítico, no período dos primeiros indícios de domesticação de animais, dos primeiros pastores.
É outra fase da evolução humana. A nível puramente estético, de qualidade e riqueza artísticas, são semelhantes, mas este é outro universo.” A semelhança surge também na emoção do encontro.
Animal de trabalho e fonte de leite e carne no deserto, o dromedário é um símbolo de poder na Somalilândia. Os pilares económicos deste povo de tradição nómada são as remessas da diáspora e o comércio de camelídeos, em lugares como este mercado em Hargeisa. No futuro, o porto de Berbera dará acesso ao estreito de Bab al-Mandeb e gerará riqueza.
À primeira vista , a montanha pode parecer um sítio normal. Uma paisagem rochosa e árida, salpicada de arbustos, solitária. Em alguns fins de tarde, é possível avistar grupos de macacos entre as rochas, mas de manhã só se vê um ou outro lagarto despistado que, ao menor ruído, foge depressa para se esconder, ou ouve-se a gritaria das aves que nidificam na montanha, à qual os nativos se referem como shimbir mayay, as aves da chuva da manhã. Porém, quando subimos pela suave ladeira e entramos no primeiro abrigo sob rocha, a magia começa: a primeira visão das pinturas tira-nos o fôlego.
Poucos metros acima da nossa cabeça, encontram-se espalhadas centenas de figuras de cores vivas, todas diferentes, algumas tão próximas que conseguimos tocar-lhes com os dedos: vacas com chifres gigantes, de riscas coloridas no pescoço ou no lombo, humanos em posição de adoração, cabras ou cães em redor… uma arte rica em pormenores que mistura traços realistas, abstractos e até simbólicos. Um festival pictórico com cinco mil anos de antiguidade que se abre diante de uma paisagem prodigiosa: um vasto deserto de rocha e arbustos que se estende para lá do horizonte. Nas encostas da montanha, adivinha-se a cicatriz de uedes sem nome, de rios hoje secos que só transportam água durante a época das chuvas.
Uma pergunta paira no ar. Como foi possível que este tesouro pré-histórico permanecesse intacto até aos nossos dias?
O ancião Moussa Abdi Jama, de 77 anos, que se apoia no seu bastão para subir até um segundo abrigo sob rocha, tem a resposta porque ele próprio o sentiu: o medo dos demónios salvou as pinturas. “Ninguém ousava aproximar-se. Pensávamos que era um lugar maldito, a casa dos djin, os espíritos malignos. Não sabíamos que era valioso.”
Aquele medo incrustou-se na sabedoria popular. Nos povoados vizinhos, ainda hoje, quando uma criança adoece, diz-se que foi enfeitiçada pelos djin de Laas Geel. Pastor de cabras, Moussa tinha 19 anos quando uma tempestade o obrigou a enfrentar a superstição. Naquele dia, o seu rebanho, assustado pelos trovões, refugiara-se nas grutas da “colina maldita” e ele não teve outro remédio senão ir buscá-lo. Ficou sem respiração. “Tinha medo, mas fiquei surpreendido por ver as pinturas. As pessoas diziam que aquelas figuras eram obra do diabo, feitas com sangue de humanos, mas passei a noite ali com as minhas cabras e não senti nada.”
É habitual os pastores nómadas acamparem em tendas como esta, tanto nas imediações de Las Geel como de Dhagax Nabi Galay. Costumam ser construídas com tecido, peles e até plásticos e têm a forma de igloos. Os materiais utilizados são leves para poderem ser montadas e desmontadas em poucas horas e carregadas sobre o dorso dos animais quando as famílias se deslocam.
O anúncio formal da descoberta só aconteceu no século XXI. Começou com um bastão, uma garrafa de água e uma mochila carregada de paixão. No ano 2000, o somali Mohamed Ali Abdi, carregado com pouco equipamento, iniciou uma viagem a pé que mudou a história da arqueologia do Corno de África. Dormindo ao relento, suportando um sol abrasador e com pouco dinheiro, Ali Abdi, apaixonado pela arqueologia, embora sem formação académica, começou a caminhar com a convicção dos antigos exploradores. “Tinha ouvido lendas sobre um lugar mágico, guardado por figuras estranhas na parede, e pensava que talvez houvesse um tesouro com milhares de anos escondido, mas nunca pensei em encontrar algo tão maravilhoso.” Aos 61 anos, Ali Abdi lembra-se bem do fim de tarde em que, iluminado pelos últimos raios de sol, deparou com aquela que, veio a saber mais tarde, seria a descoberta da sua vida. “Há sete dias que caminhava. Montei acampamento no sopé de uma colina e, enquanto aquecia o jantar, peguei no binóculo. Pareceu-me ver uma entrada na parede de pedra e vi sombras que pareciam pinturas. Fiquei com o coração acelerado. Deixei a comida ao lume e saí a correr montanha acima.”
Segundos mais tarde, diante dos seus olhos, visíveis apesar da penumbra, havia centenas de pinturas rupestres. Sentou-se numa pedra e chorou de emoção. “Em seguida, apercebi-me do seu valor e de que esse seria o meu grande legado. Sequei as lágrimas e desenhei esboços no meu caderno. Estava maravilhado, mas sabia que deveria ter cuidado, por isso não contei a ninguém. Durante dois anos, guardei segredo.”
Preocupado com a degradação a que as pinturas poderiam ser sujeitas se houvesse um anúncio público e desordenado, Ali Abdi só mencionou o seu achado em cartas que enviou às equipas arqueológicas italianas e francesas que trabalhavam em sítios dos países vizinhos – na Etiópia e em Djibuti. Depois de lhes comunicar a sua descoberta, implorou-lhes que estudassem as pinturas. Não foi fácil convencê-los. Por fim, em 2002, aterrou no país a equipa francesa de Gutherz, ainda um pouco incrédula perante as apaixonadas descrições daquele rapaz teimoso e entusiasta. Jubilado aos 72 anos e a partir da sua França natal, Gutherz recorda a sua primeira visita a Laas Geel: “Foi uma emoção muito forte. Chegámos ao fim da tarde e passámos a noite sem dormir, pensando que estávamos prestes a ver algo extraordinário. É a descoberta mais bonita que vi na vida. Uma coisa destas marca-nos para sempre.”
O arqueólogo Jorge de Torres que, juntamente com Alfredo González Ruibal, co-dirigiu entre 2015 e 2020 uma equipa do Instituto de Ciências do Património na Somalilândia, o único projecto arqueológico a longo prazo desenvolvido no país, acrescenta um matiz essencial para entender o valor da região: “Nem consegui acreditar quando vi as pinturas de Laas Geel pela primeira vez. Não só pela sua qualidade e estado de conservação, mas também pelo local onde se encontram. Essas pinturas estão ali, em frente do vale, intencionalmente. É uma espécie de Capela Sistina dos nómadas do Neolítico. Só que na Capela Sistina entra-se num templo que nos prepara para o que se vai ver e aqui não. De repente, encontra-se uma montanha solitária e deparamos com pinturas maravilhosas. E sim, Laas Geel é incrível, mas é apenas a jóia da coroa de um país rico em sítios excepcionais.”
No centro de Hargeisa, capital da Somalilândia, os cambistas resguardam-se atrás de montanhas de notas da moeda local que é também um símbolo. Autoproclamada independente da Somália em 1991, a Somalilândia funciona: além de ter uma Constituição, exército e bandeira, possui moeda própria.
A descoberta de Laas Geel não representou apenas o maior ponto de referência da arqueologia na Somalilândia, pois atraiu também a atenção para a riqueza de um território por explorar, atravessado durante milénios por caravanas de nómadas que salpicaram a região com arte rupestre. Enquanto países vizinhos como a Etiópia ou o Djibuti foram muito mais estudados (especialmente o primeiro), a instabilidade política em solo somali relegou para o esquecimento as jóias do passado de um território de importância capital para o mundo. Embora possa parecer um local distante ao olhar ocidental, o Corno de África fica na encruzilhada das rotas comerciais mais importantes do planeta. Às suas costas, chegaram, ao longo dos séculos, comerciantes ávidos do incenso africano ou de carapaças de tartaruga, provenientes das rotas do Mediterrâneo através do mar Vermelho, da península Arábica, da Pérsia e até das distantes Índia ou China, empurrados pelas monções do oceano Índico.
Como resultado da importância da região como entreposto comercial, há vários sítios arqueológicos onde se encontraram pulseiras da Índia, frascos de perfume de Alexandria, cerâmica persa ou porcelana chinesa, mas também vestígios de cidades medievais ou da época colonial. Além de, evidentemente, arte rupestre de primeira categoria.
Na colina de Dhagax Kure, 40 quilómetros a oeste de Hargeisa, escondem-se, sob enormes blocos de granito que parecem caídos do céu, pinturas de dezenas de vacas ao estilo de Laas Geel, além de girafas, serpentes e figuras humanas, dispostas num caos excepcional. Há que avançar pelo meio de rochas escuras, por vezes formando túneis e cavidades naturais, para as encontrar. Como em Laas Geel, a perspectiva do deserto a partir da colina é fabulosa. O guia Ismail Abdul, de 67 anos, é parco em palavras porque não precisa de mais: “E aqui está outra das jóias da arte pré-histórica mundial.” A lista de tesouros rupestres da Somalilândia parece interminável: Dhambalin, Dhagax yo Gobaad, Dhagax Nabi Galay…
Para o matemático Jama Musse Jama, activista e director do Centro Cultural Hargeisa, existe apenas uma razão para que um legado rupestre deste calibre, encabeçado por Laas Geel, não seja ainda Património Cultural da UNESCO: a política. “É um escândalo, um triste escândalo.”
Em finais da década de 1980, o ditador somali Siad Barre bombardeou os dissidentes independentistas do Norte e destruiu a cidade de Hargeisa. Desde então, a Somália sucumbiu a uma espiral de violência e jihadismo enquanto a Somalilândia reconstruiu a capital e consolidou as suas instituições.
A história recente marca o desencontro. Depois de se unir à Somália, liberta da colonização italiana na década de 1960, a Somalilândia, com um passado britânico, fartou-se que os clãs do Sul açambarcassem o poder e, em 1991, autoproclamou-se independente para tomar o seu próprio rumo, de sucesso e desenvolvimento, ao contrário do Sul somali, estagnado em guerras, caos e desgoverno. Seguiram caminhos opostos. Enquanto a Somália é hoje um país em reconstrução, dilacerado pela violência e pelo jihadismo, a Somalilândia é uma das democracias mais estáveis de uma região atordoada. A Eritreia, o Djibuti, a Etiópia, a Somália ou o Sudão do Sul balançam entre guerras ou ditaduras atrozes. A Somalilândia reivindica ser um território pobre, mas pacífico, com um parlamento sólido, o seu próprio passaporte, exército, bandeira e moeda. É um país sem o ser: um Estado no limbo há 30 anos.
E esse limbo é o perigo. “Laas Geel e outros sítios merecem ser protegidos internacionalmente”, sublinha Musse. “No entanto, a estupidez dos políticos põe em risco um lugar extraordinário. Nem a Somalilândia permitiria que a Somália abordasse a UNESCO em seu nome, nem a Somália – único Estado com capacidade legal para apresentar a candidatura – tem interesse em reforçar a rival. E a comunidade internacional lava as mãos para não debilitar o frágil governo somali.”
Além das rivalidades, a Somalilândia também não fez o seu trabalho: com poucos profissionais locais formados e um mercado negro de antiguidades descontrolado, os esforços das instituições são lentos. Está quase tudo por fazer: em Maio, o Museu Horn de Património Digital, criado pela arqueóloga sueco-somali Sada Mire, do University College de Londres, entregou o primeiro projecto de lei para proteger o legado da Somalilândia.
Quando falamos sobre as disputas nos gabinetes, o arqueólogo autodidacta mais famoso do país, Ali Abdi, encolhe os ombros. Ele continua a dedicar-se à sua missão: descobrir jóias do passado. Antes de se despedir, olha de soslaio e baixa a voz, como os bons contadores de histórias. Guarda um segredo: “É possível que ainda existam, na Somalilândia e na vizinha Puntlândia, tesouros arqueológicos inimagináveis por descobrir”, assegura, com um sorriso maroto. “Outra Laas Geel escondida?... Quem sabe?”