A peste negra e o seu impacte na Europa Ocidental ficaram gravados na memória colectiva de gerações de europeus, fosse pelas crónicas desses anos, pelas novas e macabras imagens com as quais se representou a morte a partir dessa altura ou até pelas cenas dantescas que aparecem regularmente nos manuais escolares. Dada a forma como muitos imaginam a Idade Média (suja, anárquica, atrasada), a chegada desta epidemia à Europa viria a reforçar os seus preconceitos sobre os séculos finais desta época.

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A actividade do comércio no século XIV contribuiu para a expansão da peste. Miniatura do século XV. Biblioteca Bodleyana, Oxford. Imagem de Oronoz / Album.

 

A catástrofe matou um terço a metade da população do continente e foi em boa medida uma consequência do vasto progresso da sociedade medieval. De facto, a peste negra chegou à Europa através das redes comerciais que se tinham estabelecido entre a Europa e a Ásia desde finais do século XI e que tiveram o seu máximo expoente na política comercial das cidade-estado de Génova e de Veneza, cujos interesses se estendiam do Próximo Oriente à Europa do Norte. O quotidiano dos portos mediterrâneos ou das cidades hanseáticas do Báltico e do mar do Norte, bem como a intensa actividade em feiras, mercados e caminhos, certificam um mundo mais interligado do que poderia parecer à primeira vista e que portanto sofreu com os danos desta epidemia.

 

As origens da pior epidemia de peste da história encontram-se no coração da Ásia. No Norte da Índia e nas estepes da Ásia Central, a peste ultrapassou as suas fronteiras ambientais tradicionais e chegou à Europa graças à vitalidade comercial da época. Fê-lo provavelmente através da Crimeia: em 1346, os refugiados da cidade de Caffa, na sua fuga aos mongóis, levaram a doença para Messina e para outros portos do Mediterrâneo, e a peste disseminou-se sem qualquer travão pelo continente, aproveitando a rede de portos e caminhos e a intensidade do comércio à pequena escala. Decorria o ano de 1347 quando a peste negra entrou na Europa. Em escassos quatro anos, o mundo mudaria para sempre.

 

Os navios de Génova e Veneza
Fotografia de Buena Vista Images / Getty Images

Os navios de Génova e Veneza, cidades comerciais por excelência, introduziram a peste na Europa, que chegou ao Velho Continente a partir do mar Negro. Fotografia de Buena Vista Images / Getty Images.

 

De um dia para o outro, seguiram-se dezenas, centenas e milhares de mortes inexplicáveis nas principais cidades europeias, à medida que pilhas de cadáveres se amontoavam nos cemitérios à espera de sepulturas e as terras ficavam por cultivar porque os camponeses morriam em massa. A morte afectava todas as classes sociais – dos trabalhadores aos mais selectos membros dos círculos aristocráticos. Até as famílias reais viam com temor como a morte lhes arrebatava os seus, sem qualquer cura ou medicamento.

Dançando com a morte

Como se pode perceber o profundo impacte que a peste negra deixou na geração de europeus que a viveu? A época deixou múltiplas imagens de uma nova sensibilidade em relação à morte, que se repete em tudo para que se olha: de repente, os esqueletos descarnados, que passam a representar a própria morte, surgem por todo o lado. Nos murais, nas iluminuras dos manuscritos e das canções, a morte esquelética, com a gadanha na mão, ceifa indiscriminadamente a vida de camponeses, artesãos, abadessas e magnatas e até acaba com a existência do próprio imperador.

Pintura de Giovanni Baleisob

A peste não devastou somente a Europa entre 1347 e 1351. Quando chegou, veio para ficar. Embora não tenha voltado a atacar com a virulência inicial daqueles anos, tornou-se endémica da viagem das sociedades europeias até à sua erradicação definitiva no século XIX. Na segunda metade do século XIV, a Europa enfrentou novos surtos da doença entre 1366 e 1400. O surto de 1374-1375, por exemplo, foi conhecido como a Peste das Crianças, já que grande parte dos mortos daquele período foram crianças ou jovens; juntamente com os idosos, as crianças eram o grupo mais exposto à epidemia. Desta forma, depois de cada nova passagem da peste pela Europa, a população do continente ficava muito diminuída e a doença afectava as gerações mais jovens, dificultando qualquer possibilidade de recuperação demográfica. Na imagem, a pintura de Giovanni Baleisob representa um carro com duas crianças defuntas e uma mãe com o filho morto no seu regaço. 1481. Capela de Sante-Claire, Venanson.

 

As chamadas “danças da morte” são, talvez, a mais elaborada expressão desta nova mentalidade moldada pela hecatombe, pois fixaram no imaginário europeu uma forma muito concreta de representar a morte e os seus efeitos, que ultrapassará os limites do mundo medieval e encontrará algumas das suas expressões mais notáveis nas obras de Hans Holbein, o Jovem, e de Pieter Brueghel, o Velho, já no século XVI.

Oportunidades de fortuna

Paralelamente à presença constante da morte, desenvolveu-se uma tendência vitalista e jovial que percorreu toda a sociedade. Depois da sua chegada em 1347, a doença atacou os europeus em diversos surtos e os sobreviventes celebraram a vida de muitas formas. Talvez a que mais tenha ficado gravada na memória, pela sua beleza formal e pelo seu tom calculadamente naïf e sedutor, seja o Decameron (1349-1352, mais tarde revisto em 1370-1371), do poeta toscano Giovanni Boccaccio.

 

Decameron
Imagem de Josse / Scala, Florença
Decameron

Esta miniatura do século XV recria um episódio do 

, cujos dez protagonistas contam histórias para fugir da terrível realidade. Biblioteca do Arsenal, Paris. Imagem de Josse / Scala, Florença.

 

A história é muito conhecida: dez jovens fogem aos danos provocados pelo surto de peste negra em Florença e refugiam-se durante dez dias numa vila dos arredores. Cortam contacto com o mundo exterior numa interpretação muito moderna do que ainda hoje se faz nas quarentenas. Para se distraírem, as sete mulheres e os três homens que formam o grupo juntaram um total de cem relatos – uns cómicos e outros transcendentais, alguns eróticos e outros engenhosos. O resultado final foi uma espécie de tela literária maravilhosa, simbolizada pela evasão destas personagens que fantasiam sobre os prazeres da vida e sobre as possibilidades que oferece uma nova sociedade, ao mesmo tempo que o mundo se desmorona.

Vale a pena lembrar que, uma vez superada a mortalidade inicial, a peste negra trouxe quase tantas oportunidades como desgraças. A Europa anterior aos efeitos da epidemia encontrava-se no auge de um ciclo expansivo. A população do continente crescia há muitas gerações a um ritmo considerável, embora os recursos não se mostrassem em consonância com tal.

Já antes do aparecimento da peste na Europa podem ser encontrados os primeiros sintomas de esgotamento, que vão desde o decréscimo da fertilidade das novas terras lavradas e dos ciclos de más colheitas até à espiral de colapsos financeiros de várias coroas e de importantes mercadores que tiveram lugar no início do século XIV em algumas zonas da Europa. A crise produtiva de 1333 foi também uma realidade durante todo o século. Nesse sentido, a epidemia chegou na pior altura possível: a Europa estava então densamente povoada e mal alimentada.

 

As grandes crónicas de França
As grandes crónicas de França

A chegada da peste à Europa em 1347 coincidiu com os primeiros compassos da Guerra dos Cem Anos. Meses antes de a doença ser detectada em Messina, ingleses e franceses já tinham empunhado as suas espadas em Crécy, a primeira batalha campal desencadeada pelo lado inglês. Seguir-se-iam as de Poitiers em 1356 e a de Azincourt em 1415. A peste e a guerra cavalgaram juntas durante o século XIV. Ao desastre provocado pela epidemia juntaram-se os efeitos dos combates nos campos de batalha franceses, escoceses, italianos, castelhanos ou aragoneses. Os anos da segunda metade do século XIV registaram uma escalada sem precedentes das lutas entre as potências europeias, que agravaram os efeitos da crise demográfica. Na imagem, esta miniatura da obra 

 reconstitui a batalha de Crécy, em Agosto de 1346, em que os arqueiros ingleses destruíram a cavalaria francesa.

 

Passado o inferno dos anos 1348-1351 e enterrados os mortos, a peste negra deixou um cenário muito diferente. As cidades passaram de uma paisagem dantesca de acumulação de mortes e de terror colectivo (basta olhar para o grande volume de testamentos redigidos durante aqueles anos) para um ambiente de oportunidades. A mão-de-obra escasseava e os salários eram constantemente renegociados devido à escassez de trabalhadores especializados.

As oligarquias urbanas viram este facto como um problema: as tentativas dos governos para limitar os salários ou controlar o luxo indicam que, depois da peste negra, o problema das cidades europeias não era tanto combater a pobreza, mas sim controlar as novas formas de riqueza.

Fortunas inesperadas

A vaga de mortes provocada pela epidemia teve outro efeito inesperado no plano económico: a concentração da riqueza nos sobreviventes.

 

Igreja de São Roque Veneza

 

Igreja de São Roque. No século XV, ergueu-se em Veneza este templo, consagrado ao santo protector da peste. A cúpula e a abside são originais. O restante foi renovado no século XVIII.

Aqueles que perdiam os seus familiares, afastados ou próximos, começaram a receber as heranças dos defuntos. Tanto no campo como na cidade, as propriedades concentraram-se e o dinheiro encheu algumas bolsas como nunca antes sucedera.

Numa sociedade emocionada pelo impacte da morte súbita, esta injecção de dinheiro materializou-se numa expansão sem precedentes do luxo: a arte sumptuária, a ourivesaria ou as festas da corte tornaram-se expressões deste fenómeno e modificaram-se também as formas de entender o trabalho e o comércio.

Campos abandonados

No campo, a grande mortalidade favoreceu as expectativas dos camponeses. Apesar de a peste ter tido um impacte maior nos ambientes urbanos, o despovoamento afectou em muito as terras de cultivo por duas razões: os danos provocados pela doença e o êxodo para as cidades. Inúmeros campos foram abandonados e os camponeses sobreviventes tiveram à sua disposição novas terras, muitas das quais apresentavam-se com menos obrigações feudais do que os terrenos onde já trabalhavam.

A segunda metade do século XIV e boa parte do século XV foram épocas definidas pela tensão entre camponeses, cada vez mais conscientes dos seus direitos sobre a propriedade, e pela relutância em satisfazer as antigas cargas senhoriais.

Avisados do risco associado à diminuição das rendas provenientes das suas terras agrícolas, alguns proprietários ripostaram, por vezes com violência. A nova situação no campo não passou despercebida aos investidores urbanos que viram uma oportunidade de negócio na compra de terras. O parâmetro de riqueza medido pela extensão das propriedades começou a alterar-se.

Todas estas alterações económicas exacerbaram as tensões sociais. Por toda a Europa, questionavam-se as velhas relações de poder, fosse por parte dos artesãos da lã florentina, dos camponeses da remensa catalães, dos integrantes dos movimentos antifiscais ingleses ou das jacqueries francesas. E até no âmbito religioso a peste produziu repercussões, com o aumento das propostas mendicantes e rigorosas. Quando o pó levantado pela peste negra pousou finalmente, a nova paisagem europeia tinha uma fisionomia bem distinta.

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